Rio Grande do Sul

Coluna

O silêncio trágico sobre meninas e mulheres

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"Já é hora de abrirmos a boca e falar bem alto do que nos concerne, de irmos para a rua cobrar medidas legais para proteger nossas meninas da tragédia da gravidez precoce" - Reprodução de obra de Gustav Klimt
É urgente que nos perguntemos para que serve essa indiferença anestésica?

Cada vez tenho tido menos tempo para as redes sociais, mas nunca abro mão de percorrê-las, pois entre as asneiras e bobagens com que ali nos deparamos, sempre há alguma coisa de relevante ou de impactante, que nos faz parar para pensar. Foi o caso de uma postagem que li há poucos dias, onde uma mulher, dessas que realmente acredita que a terra é plana, apresentava o caso de uma menina de 12 anos incompletos, com seu bebê de poucos meses no colo, na foto (o que é aberrante, pois se trata de uma menor de idade), para mostrar como ela conseguia ser uma boa mãe. Confesso que nem consegui terminar de ler o texto, pois meu estômago não me permitiu, passei mal.

Menos de 24 horas depois, estou aguardando minha vez na agência bancária, e uma mulher, com sua filha pré-adolescente, conversa com outra mulher. Em um dado momento, a interlocutora pergunta diretamente à menina sua idade e em que escola está estudando, ao que ela responde “Tenho quase 13 anos, e não estou estudando neste momento, nem sei se volto”. “Por quê?” Pergunta a senhora, espantada: “Porque estou grávida de 4 meses, e não sei se vai dar pra seguir estudando”. Depois de um silêncio sepulcral, a mãe faz este comentário: “Pois é, tivemos alguns problemas na família. Sabe como é, quando a gente menos espera, alguém em quem a gente confia é capaz de tudo. E cochicha: “Foi meu companheiro, já mandei embora”. Desisti de ser atendida, não suportei mais aquela situação social tão triste e dolorosa. Quando estava saindo, pude olhar nos olhos da menina e ver estampado neles o horror ao que lhe acontecia. As duas mulheres já haviam mudado de assunto, falavam do BBB, este famigerado moedor de senso crítico.

Em 2002 trabalhei em um bairro sensível da cidade, em um centro de acolhimento para crianças no turno inverso à escola. Anexo ao centro havia um albergue para adolescentes grávidas e recém mães. Ali pude escutar e ver o que era o sofrimento daquelas meninas. Ali tive uma ideia mais clara do que era o desespero humano. Desde então, tenho estado atenta a este problema, que é um verdadeiro câncer em nossa sociedade. E se falo em câncer, é sem exagero nenhum, pois 21 anos depois, temos estatísticas terríveis, como por exemplo a de que 75 por cento dos estupros ocorridos por dia no Brasil (em média 8 por minuto), têm como vítimas meninas de menos de 13 anos.

Como pode uma mulher, em nome de princípios religiosos, pretender que uma menina de menos de 12 anos possa se sair bem como mãe, se para mulheres adultas esta é uma tarefa das mais difíceis e sofríveis? Como pode uma mãe se contentar em mandar embora o abusador da filha, e não se ocupar intensamente da gravidez precoce de sua menina?

Penso aqui naquela menina de 10 anos que em 2021, grávida de seu padrasto que abusava dela desde seus 6 anos de idade, deu entrada em um hospital para fazer um aborto legalmente previsto. Foi recusada, e violentamente acusada de tentativa de assassinato pelas senhoras evangelistas, que invadiram o hospital. Foi preciso que um grupo de feministas enfrentasse aquela legião de evangélicas furiosas e as tirasse de dentro do hospital. Ao que tudo indica, ninguém mais moveu uma palha. A garota precisou sair do hospital no porta-malas de um carro, para não ser talvez apedrejada, e só conseguiu ser atendida em um hospital de outro estado. Detalhe: ela estava agarrada a seu ursinho de pelúcia,verdadeiro talismã das crianças contra o medo.

Nem vou falar da juíza aqui do RS que convenceu uma menina de 10 anos a sustentar sua gestação. Com certeza continua firme no seu posto.

Por isso pensei em propor uma reflexão sobre esta verdadeira aberração social que é a maternidade precoce e a naturalização do estupro em nosso país, herança dos anos de chumbo que vivemos entre 2016 (golpe de Estado) e 2022, quando valia tudo. Mas de fato, este é um problema muito antigo em nossa cultura. O mais triste de tudo é que quase nada se diz sobre isso, como se não fosse um problema coletivo.

Fenômeno trágico, este silêncio. Até quando a sociedade vai ficar, como aquela mãe da agência bancária, mais preocupada com o BBB do que com o que acontece com as meninas no Brasil inteiro?

Esta atitude de indiferença é a mesma que acontece com as mulheres em situação de violência e com o feminicídio: é problema de cada mulher e das feministas, o resto da população não tem que se incomodar com isso. Como se realmente não estivéssemos todas, todos e todes implicades até o pescoço em cada caso de abuso, estupro, violência e feminicídio. 

É urgente que nos perguntemos para que serve essa indiferença anestésica? Que tanto horror ao feminino, ao infantil e à sexualidade? Já é hora de abrirmos a boca e falar bem alto do que nos concerne, de irmos para a rua cobrar medidas legais, políticas e educativas de maior eficácia para proteger nossas meninas desta tragédia. Um estuprador de meninas e mulheres, um espancador, ou um assassino, e uma sociedade indiferente e anestésica se equivalem exatamente. Chega de silêncio!

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA e presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.         

Edição: Katia Marko