Rio Grande do Sul

Coluna

E então, o E da questão

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Argentina foi pioneira na região ao ingressar o X nos documentos de identificação, junto ao F e ao M - Imagem: Reprodução/BL Magazine
Linguagem não sexista extirpa vício de considerar O homem como sinônimo de representação humana

E porque esta coluna se chama Diálogos Feministas, este texto conversa com a última coluna da nossa querida amiga mariam pessah, que nos alegra com mais um ano de sua existência e tanto nos invoca, trazendo suas inquietações para desacomodar as normatividades que nos foram impostas desde quando nos escapa a memória. Lida como uma mulher cis, ela foi a primeira pessoa que conheci que, parafraseando Monique Wittig, disse “eu não sou uma mulher, me recusei a sê-lo, sou uma lésbika polítika”. No entanto, sempre esteve nas manifestações e espaços discutindo feminismos e direitos das mulheres, construindo alianças e pontes, sustentando o incrível Sarau das Minas, fomentando o reconhecimento da literatura feita por mulheres e identidades dissidentes do patriarcado. Ela e Cuca (Clarisse Castilhos) são parte da incrível núclea afetiva que construí ao longo da última década em Porto Alegre, e ambas são a própria encarnação do continuum lésbico descrito brilhantemente por Adrienne Rich.

Em nossas conversas, há tempos, temos problematizado o E como um artigo generalizante e o apagamento das identidades não binárias, e a necessidade de diferenciar a linguagem neutra de gênero, linguagem inclusiva e a tal neutralidade de gênero. Percebemos que há confusões, o que é natural e esperado, uma vez que a imposição do binário de gênero é uma condição fundamental da colonização patriarcal, e leva um tempo para que as pessoas consigam pensar “fora da caixa”, ao invés de buscar a “caixinha” correta. O patriarcado, sempre importante lembrar, é a instituição mais antiga que nos atravessa, e fala pela boca e ações das pessoas.

Logo, para além da confusão, também temos observado má intenção, rechaço e violência quanto ao questionamento da binariedade de gênero, inclusive por mulheres cis feministas. Como, de modo amplo, esta identidade sequer é reconhecida pelo Estado brasileiro - salvo alguns estados que, via judiciário e Defensoria Pública, realizam mutirões de retificação da certidão de nascimento, o que possibilita a alteração dos demais documentos a partir de então, não sem desgaste, pois os distintos sistemas de informação não contemplam o “sexo” para além de feminino ou masculino - não há a possibilidade de penalização dos discursos de ódio enquadrados como crime de transfobia. A hostilidade e ridicularização desta pauta política fica reduzida à “liberdade de expressão” e “opinião pessoal”, assim como foi considerado, um dia, o crime de racismo. Eufemismo moral conveniente à superestrutura patriarcal, ou será que a cisgeneridade é tão frágil como a masculinidade, ao ponto de ser tóxica por temer o apagamento das mulheres?

Sim, a não binariedade é uma identidade de gênero, talvez um termo guarda-chuva que abarque, burocraticamente, a multiplicidade do espectro de experimentações e autopercepções fora das classificações homem e mulher. Na Argentina, país pioneiro na região quanto ao reconhecimento destas identidades como direito humano, o X ingressou, nos documentos de identificação, junto ao F e ao M, assim como o artigo E inaugura, nas línguas latinas, tal perspectiva junto ao A e ao O. A cisão e ampliação do maior encontro feminista do mundo, que ocorre anualmente naquele país há 36 anos, revela a questão colocada para os feminismos contemporâneos: seus sujeitos, identidades e pautas múltiplas que se interseccionam na análise dos efeitos do patriarcado.


Na Argentina, maior encontro feminista do mundo ocorre há 36 anos / Reprodução

Linguagem inclusiva é aquela que contempla a todas, todos e todes, reconhecendo identidades que se afirmam dentro e fora do binário de gênero, nomeando-as. Linguagem neutra de gênero, ou linguagem não sexista consiste em extirpar o vício de considerar O homem como sinônimo de representação humana, como visto em muitos textos de antigamente e ainda hoje, infelizmente. Um exemplo de uso sexista da linguagem é a identidade visual do governo do Rio Grande do Sul vigente na gestão Sartori, cujo slogan era “Todos pelo Rio Grande”, mesmo tendo sido elaborado um manual pela Secretaria de Políticas para Mulheres do estado na gestão anterior. A extinção da secretaria e a afirmação institucional do gênero masculino provaram qual a ideologia que se afirmou durante aqueles anos e que essa disputa segue viva: neste ano de 2023, o Supremo Tribunal Federal considerou ilegal a lei estadual de Rondônia que proibia o uso da linguagem não sexista no âmbito da educação pública, por considerá-la danosa ao aprendizado da norma culta do português. A decisão criou jurisprudência para invalidar mais de 30 projetos de lei com o mesmo teor, a estratégia que a bancada conservadora utiliza, por exemplo, para emplacar o aberrante Estatuto do Nascituro.

Não temos, todavia, decisão que garanta o direito de reconhecimento das identidades não binárias em todas as unidades federativas do país de maneira regular, e não excepcional. A burocracia para retificação dos documentos é imensa e exaustiva, implica gastos consideráveis e não nos livra dos constrangimentos na esfera pública, mas expressa clara e explicitamente os privilégios cis e binários. Por isso tenho e temos nos posicionado de maneira crítica ao uso do artigo E como sinônimo de linguagem neutra, para visibilizar o problema: ainda que a linguagem nos contemple, isso não é tudo, necessitamos cidadania, o que significa sustentar os tensionamentos junto ao Estado. Já imaginou, por exemplo, o impacto que a possibilidade da existência não binária pode ter junto às pessoas intersexo? Quantas mutilações genitais de bebês e crianças podem ser evitadas se as famílias puderem registrá-las, simplesmente, como não binárias?

Por fim, nada disso é uma invenção, mas reconhecimento ontológico e descolonizado: não faltam registros antropológicos de cosmologias e vivências fora do binário por essas terras de Abya Yala, estamos simplesmente resgatando-as.

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Marcelo Ferreira