Ceará

Coluna

Fabulações de um movimento que em curva vira dança***

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‘Anje da guarda’ de Galdino. - Foto: Lívio Pereira
Curva Galeria. Vem conhecer esse projeto de letramento cultural na periferia de Juazeiro do Norte.

Alguns dias atrás participei de um momento potente para a fruição artística cearense, a reabertura da Curva Galeria, espaço voltado para a difusão das artes visuais que faz parte do complexo Quebrada Cultural, que também reúne teatro, cinema, horta e cultura alimentar, ação social, oficinas e muitas outras ações com foco na população ali do bairro Triângulo, em Juazeiro do Norte, onde se localiza, mas aberta também para outro grande território marginalizado da cidade que é o bairro João Cabral. A Curva se faz na fronteira entre esses dois territórios que, historicamente, são de onde saem diversas expressões de nossa cultura como o reisado, bacamarte, lapinha, caretas e tantas mais.

Esse dia especial foi coroado com a exposição coletiva ‘Pode entrar – encontros na curva’, que juntou trabalhos de Anália Lobo, Dextape, Galdino, Indja, Punan, Tainah Amaral, Wandealyson Dourado e Wesley Freitas. Todas e todos integrantes do coletivo que toca o projeto Quebrada Cultural. Uma exposição que (re)apresenta todas estas pessoas como fazedores de arte, muito além do trabalho de gestão e produção que cada uma toca para fazer a Quebrada existir e seguir afetando o seu entorno.

É um momento de reabertura, pois a galeria tinha sido fechada para reforma e reestruturação por meio de um edital de manutenção em que foram selecionados. Trabalho que só pode ser finalizado, pois o grosso do trabalho braçal foi feito pela própria equipe da Quebrada, sendo contratada pessoas de fora apenas quando era algo que ninguém do grupo sabia fazer. Foi reparo elétrico, reboco, pintura, marcenaria e mais uma ruma de coisas para deixar a Curva Galeria pronta para receber uma sequência de exposições que já adornam seu calendário. Fiquemos atentos!


‘Era tudo Rio’; ‘A força e a fluidez das águas’ e ‘Um rezo, um rito’, de Tainah Amaral. / Foto: Lívio Pereira

Mas voltando para a exposição, o que mais me chamou atenção foi a multiplicidade de linguagens e técnicas de cada artista e de como as curadoras Tainah Amaral e Wandealyson Dourado fizeram a costura dos trabalhos. Um diálogo que poderia por vezes ser impensável se mostrou muito virtuoso e permitiu que artes visuais, confeitaria, música, instalação e performatividade coabitassem o mesmo território imaginativo.

Dada a brevidade dessa coluna não tenho como comentar com profundidade todos os trabalhos, mas não poderia deixar de comentar os que mais me instigaram. Quero começar pelo trabalho ‘Anje da guarda’, de Galdino, que é um artista que vem do teatro e das cênicas. A peça é uma brincadeira entre bi e tridimensionalidade, está pendurada como uma pintura, mas as cores, linhas e poética pulam em sua direção, lembrando uma tradição da cerâmica em que cenas do cotidiano são representadas em sua tridimensionalidade, mas feitas para serem penduradas na parede.

Galdino faz uma releitura da imagem sacra do anjo da guarda, refletindo como seria se ele tratasse como igual todos os corpos dissidentes de gênero. Podemos refletir sobre o direito a fé que muitas vezes é negado para corpos que estão fora do padrão normativo.

Já os trabalhos ‘Era tudo Rio’, ‘A força e a fluidez das águas’ e ‘Um rezo, um rito’, de Tainah Amaral, nos traz para o debate de quais corpos são permitidos existir. Cores, traços, formas e grafismos sobre o papel branco apontando para sua ancestralidade indígena, uma mirada para suas origens e reconexão que nos mostra o quão estamos desconectados, distantes dos que nos fizeram ser o que somos. Será se não deveríamos todas e todos olhar para nossa ancestralidade, sobretudo nós, brancos, que herdamos tantos privilégios frutos da violência de nossos antepassados contra corpos indígenas e negros? A obra de Tainah é como mato, que teima em existir, em furar o concreto e o asfalto. Ela nos diz sobre resistência, mas nos diz mais ainda sobre beleza e conexão, sobre autoconhecimento.

E, por fim, comentar a instalação ‘Quem sustenta?’, de Wandealyson Dourado, que traz para o espaço expositivo um pilar em construção, traçando um paralelo entre as regras, tácitas ou institucionalizadas, que nos são impostas socialmente e o que isso nos marca enquanto indivíduos. Quem sustenta todas essas normatividades representadas no concreto armado que Wandealyson nos apresenta? Como se retroalimentam essas construções simbólicas?


‘Quem sustenta?’, de Wandealyson Dourado. / Foto: Lívio Pereira

O convite está feito – Pode entrar – e vem conhecer esse projeto de letramento cultural na periferia de Juazeiro do Norte, pois a abertura de caminhos se dão nos – encontros na curva – que estão permeados de diversidade poética, fabulações de mundo, construindo novas realidades e rompendo com as normatividades.

Quem foi na abertura pôde comer um pouco da arte e dos sonhos da Quebrada Cultural, no bolo performance de Wesley Freitas, que adoçou nossas bocas e inspirou sonhos de um amanhã melhor, fazendo coro a esses novos ares que o Brasil respira, mas quem não foi não fique triste, pois mesmo sem bolo ainda vale a visita na Curva Galeria, tenho certeza que ela lhe levantará inúmeras questões, que aqui só pude levantar algumas poucas dado o espaço da coluna.

Para mais informações sobre as atividades da Curva Galeria é só acessar seu intagram https://www.instagram.com/curva_galeria/ e para mais informações sobre outras atividades da Quebrada Cultural é só acessar o link https://www.instagram.com/quebradaculturalt/

*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

***Esse título foi apropriado do texto de parede da exposição que é assinado pelas curadoras Tainah Amaral e Wandealyson Dourado

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Edição: Francisco Barbosa