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Visto de dentro, 2013 pode ser tudo

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Manifestantes que lutavam pela tarifa zero em Belo Horizonte em junho de 2013 - Foto: Midia NINJA
Começa equivocada qualquer análise que se acredite definitiva das jornadas

 

Há dez anos faltou cartolina no Recife. Não é uma figura de linguagem. Quando as chamadas jornadas de junho chegaram a Pernambuco, muita coisa já tinha acontecido. As primeiras manifestações convocadas pelo Movimento Passe Livre (não confundir) em São Paulo, que denunciavam um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, cresceram em tamanho e em diversidade de pautas. 

A multiplicidade de quereres e sujeitos envolvidos era tanta que se poderia dizer que cada pessoa que foi às ruas tinha sua própria reivindicação. Moradia, saúde, corrupção, mobilidade, liberdade de expressão. Um par de meninos virou meme com um papel onde se lia “Protesto dos cheira cola”. Cada qual levava sua mensagem num cartaz individual. Algumas pessoas curtiam. Outras pessoas copiavam o texto tornando-o seu, compartilhando. Se você levasse uma faixa, não encontraria uma pessoa de mãos livres pra segurar do outro lado. Quase não havia palavras de ordem que pudessem ser entoadas coletivamente. 

Na multidão que literalmente parou a cidade (sim, até o comércio fechou) tinha de tudo. Profissionais de saúde, promotores, estudantes, pessoas sem emprego, gente de ONG, a turma da educação. “Apenas” representações partidárias não pareciam bem vindas. Um alerta? Uma oportunidade?

Em 2013 fazia tempo que eu estava nas ruas. Cotidianamente participava de protestos pela valorização do SUS, pela causa indígena, pela reforma agrária, pela legalização da maconha, pela democratização da comunicação. Para muitas pessoas que estavam ao meu lado, aquela era uma oportunidade de finalmente ‘empurrar aquele governo para a esquerda’ na medida em que uma turma que não se organizava politicamente, que não participava dos nossos movimentos, resolveu também sair de casa. Na época, escrevi artigo, convoquei gente e vi um monte de amigos que nunca haviam se juntado a mim chegando junto. No dia do primeiro e maior de todos, participei da cobertura ao vivo da Universitária FM, que dedicou a grade inteira à movimentação. 

Que se diga, o mundo efervescia. Naquele início da década de 2010 a gente já tinha visto Primavera Árabe, Occupy Wall Street e mais um monte de insurgências com maior ou menor índice de sucesso (por ‘sucesso’ entenda-se “o que se queria naquele momento”). Pra muita gente que militava na esquerda, existia uma esperança real de se avançar. Já estávamos passando do décimo ano da gestão do PT, que nunca negou sua característica de coalizão. Governabilidade, correlação de forças, paciência histórica eram palavras que na época incomodavam tanto quanto explicavam. Alguns avanços imediatos, embora tímidos, nutriam essa esperança.

Em São Paulo, o governador Geraldo Alkmin e o prefeito Fernando Haddad anunciaram a revogação do aumento da passagem. Em Brasília, entre outras ações, Dilma Rousseff lançou o programa Mais Médicos, que revolucionou a atenção básica em milhares de municípios do país. Respondendo ao que se chamava de “crise de representatividade”, sugeriu uma constituinte exclusiva para a reforma do sistema eleitoral (pelo qual continuei nas ruas) que fracassou.

Depois disso, bom lembrar, a presidenta se reelege numa campanha dura, em que os movimentos sociais (muitos que estavam nas ruas em 2013 e até antes disso), têm participação fundamental. Isso tudinho pra dizer que é difícil saber quando começou a dar ruim. E se a turma da esquerda tivesse conseguido dialogar melhor sobre nossas pautas para quem era recém chegado? E se a gente tivesse conseguido mais consensos sobre em que focar? E se aquele povo todo se interessasse em permanecer organizado por direitos?

 Há quem diga que perdemos uma oportunidade histórica de fazer revolução. Há quem diga que nunca deveríamos ter aderido às manifestações. Antes disso, pergunto outra coisa: e se o fluxo de informação no Brasil não fosse monopolizado por um punhado de grupos econômicos com interesses políticos bem sabidos? 

Embora as redes sociais (especialmente o Facebook e o Twitter) fossem o principal canal de mobilização, o senso comum sobre os atos foi sendo moldado aos poucos, menos pela internet e mais pelos meios de comunicação de massa. As edições de programas noticiosos daquele tempo renderam um monte de estudos na academia. Desde um Datena que mudou frase de enquete ao vivo tentando manipular a população, pra depois mudar de discurso, até um Jornal Nacional que ia, aos poucos, editando a mensagem para que se adeque aos interesses dos seus donos e pares. 

Um dos maiores alvos de críticas de quem foi às ruas, a Globo acabou se tornando uma espécie de tradutora enviesada do que a multidão cacofônica pedia. Assim, protestos com centenas de demandas foram aos poucos se transformando em “contra a corrupção”, ou mesmo “contra a corrupção do petê”. Daí pra um monte de gente desavisada (além dos nada bobos que organizaram) vestir verde-amarelo e ir pedir um impítima na praia foi um pulo. 

Pré-2016, as manifestações que pediam o afastamento da presidenta, normalmente aos domingos, tinham convocatória e cobertura de carnaval. A transmissão ao vivo que durava o dia inteiro num tempo em que menos de metade da população tinha qualquer acesso à internet. Com muito menos visibilidade, a gente também se mobilizava contra o golpe. Mas numa sociedade mediada pelos meios de comunicação, a foto (ou a ausência dela) às vezes vale mais do que o fato.

Também por isso é importante evitar o autoflagelo que muitas vezes aflige nossas organizações quanto àquela época. Não foram poucos os grupos de luta por direitos que surgiram naquele mesmo “caldo” (vide o Ocupe Estelita, aqui no nosso quintal). Também não são raras as pessoas que começaram a participar mais da política nos anos seguintes. Se “eles” tiveram os Kims e os Holidays, nós tivemos as Sâmias e as Talírias, além desse humilde escriba que hoje luta por direitos na Câmara Municipal do Recife.

Com tantas nuances e perspectivas, começa equivocada qualquer análise que se acredite definitiva das jornadas. De minha participação, não me arrependo. Tal qual há dez anos, sigo defendendo a legitimidade de um governo eleito para resguardar e fortalecer a democracia brasileira. E sigo na tarefa de criticá-lo e participar das lutas necessárias para que ele avance cada vez mais. O resto é aprendizado.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga