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Coluna

Ella só quer amar

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Ella, a personagem, incorpora as muitas mulheres negras que conheci, escutei, li e me afeiçoei. - Rennan Peixe / Direção de Fotografia de Íyá Dúdú
Ella, uma mulher negra, tinha sede de viver que não sabia por onde começar suas mudanças.

Já me deparei com tantas Ellas, a atriz, a cantora, a professora, a da música de Juliana Ribeiro e tantas outras que não têm este nome, mas caberiam perfeitamente na história que vou contar. Ella, a personagem, incorpora as muitas mulheres negras que conheci, escutei, li e me afeiçoei. Mas é também as muitas mulheres históricas que já não estão mais entre nós, mas permanecem em nós nas histórias vividas, contadas, transmitidas de geração em geração. Esse texto em suas primeiras linhas era para falar de amores, daqueles que transformam tudo. Mas, os dedos falavam pelas memórias subterrâneas, como uma espécie de reinvindicação. Quem sabe a partir destas memórias a gente consiga inventar outras formas de amar. É preciso elaborar o passado que se repete, assim estaremos livres para viver o amor que não cerceia posto que sempre foi e será abundante...

...Ella, uma mulher negra, tinha sede de viver que não sabia por onde começar suas mudanças. O coração sinalizava que era tempo de amar e se deixar ser amada. Estava cansada das auto-proibições que se impôs para se relacionar, estava cansada do que ouvia ao seu redor sobre amor político. Eram tantas vozes: “não pode ser branco”; “tem que ser um pretinho para perpetuar nossa gente, hein?!”; “É de esquerda?”; “No mínimo universitário, né?”. Ah! Quer saber, se tiver ensino médio já tá valendo, se a pessoa souber falar... tem que trabalhar também, mas é tanta gente desempregada. Não, trabalho não pode ser critério, mas que pelo menos a pessoa ajude nas tarefas domésticas, tenha noção do quanto estamos sobrecarregadas. O nosso inconsciente é povoado por coletivos que ora nos salvam, ora nos colocam em perigo. E tudo depende de como escrevemos nossa história em meio a tantas vozes.

Como era cansativo pensar em todas estas coisas e ela só queria viver, sentir que estava viva. Só queria alguém em quem confiar o seu coração, alguém para abraçar à noite antes de dormir e de manhã antes de levantar para trabalhar, alguém para rir à toa, alguém que não seja mais um trabalho, mais uma violência, mais um que lhe faça de objeto, de mãe ou de providência.

O mundo da paquera mudou, e ela se rendeu aos aplicativos de relacionamentos. Não criou expectativas, mas ficou curiosa com as descrições que as pessoas faziam de si. Algumas fúteis, outras sem sentido, outras engraçadas e outras que julgou interessantes. Com os dedos nervosos, arriscou algumas curtidas. Como o mundo mudou, parece que os homens negros estão interessados em mulheres negras. Será? Uma euforia tomou-lhe conta. Há tempos ansiava por encontros. Não precisava dar em nada, mas que fossem bons.

Sua última relação tinha sido com um homem branco, que, apesar de muito apaixonado, não sabia receber um não, queria que ela coubesse em seu ideal de amor romântico. E como uma criança mimada, inventava brigas sem sentido. No fundo, parece que ele queria controlá-la, tê-la somente para si. Ela perdeu o tesão porque queria ser mulher, amante e não mãe de gente grande, não quer educar gente adulta. Há muito tempo entendeu que não tem que ser babá, nem ama de leite de ninguém.  Essa figura quase mítica da mãe preta parece povoar o imaginário dos homens, sobretudo de pessoas brancas, como se tivéssemos que corresponder às necessidades alheias.

“Enfim, um date com um homem negro!” Ouviu de uma amiga. Apesar de ter lhe doído escutar isto, não diminuiu a sua empolgação. Uau! Ele tinha um papo muito bom, universitário, de esquerda, feminista. Ô glória! Tão educado, parecia ter noção de limite, de espaço, não avançava o sinal, não grudava nela. Ops! Primeiro encontro na cama e deu merda. Ele deixou a camisinha dentro dela e ela só percebeu dias depois e aquela informação foi como uma bomba na sua cabeça. Bate coração, boca seca, dor de barriga, mal estar instalado. Será que estou grávida? Era só o que pensava. Até fazer o teste se perguntou: como ele não tinha percebido isso?

Tentou justificar para si mesma, ele não parecia ser mal caráter, estava muito cansado e homens negros estão muito vulneráveis, frágeis, estão morrendo muito cedo ou estão sendo mortos. Eles também precisam ser acolhidos em seus sofrimentos, já são pintados demais de algozes. Decidiu dar mais uma chance ao cara interessante e educado. Passado algum tempo, se encontraram novamente. Na cama, outra vez, o golpe inesperado. Ele tirou a camisinha enquanto a penetrava e depois gozou fora. Foi tão rápido que ela pensou não ser verdade o que acabara de acontecer. Ficou sem reação. Foi para o banheiro lavar-se tão transtornada que sentiu-se culpada pelo que aconteceu. Voltou para cama como se nada tivesse acontecido, tratou o sujeito com todo carinho que poderia oferecer, mas por dentro dela havia uma guerra. Até hoje segue sem dizer nada para o sujeito interessante e educado.

Educado para quê? Me parece que todo invasor e colonizador chega muito sedutor, trazendo coisas interessantes para os gentis até se apossar e devastar uma terra, até marcar o território como sendo seu. No fundo foi isso que aconteceu. A maldição do colonizador se reproduzindo no amor romântico e no coito. O estupro fundou também este lugar que chamamos nação, civilização. Urge que pactuemos outros marcos de co-existência, estes violentos já produziram adoecimentos e catástrofes demais. Que outros registros povoem nosso inconsciente. Ainda haveremos de perguntar quem são os homens que gostam de e amam verdadeiramente as mulheres negras. Porque Ellas só querem amar!

Edição: Gabriela Amorim