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Guerra cultural em uma sociedade contraditória: uma resenha e um desafio

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Filme Cabaré Eldorado: Alvo dos Nazistas traz um retrato ainda pouco conhecido sobre a comunidade queer na Alemanha pré-nazista - Divulgação
O processo de vitória das políticas nazistas não foi num contexto de homogeneidade na Alemanha

Está em exibição o documentário “Cabaré Eldorado: Alvo dos Nazistas”, filme da Netflix que traz um retrato ainda pouco conhecido sobre a comunidade LGBTQIA+, que é denominada de “queer” na película, na década de 1920 e início da década de 1930 em Berlim, na Alemanha. Trata-se de uma obra dirigida por Benjamin Cantu, que também escreveu o roteiro junto com Felix Kriegsheim. “Cabaré Eldorado: Alvo dos Nazistas” é um documentário de qualidade, com uma pesquisa substancial sobre vários personagens, movimentos e desdobramentos políticos daquele período histórico, dentro e fora do partido nazista alemão e que apresenta aspectos surpreendentes que permitem uma reflexão sobre a histórica recente, sobre o momento atual do Brasil e do contexto mundial.

Uma percepção errônea que muitas pessoas têm sobre a ascensão e consolidação do nazismo na Alemanha é que teria sido um processo linear, paulatino, cumulativo e que progressivamente permitiu uma visão de mundo se estabelecer de forma coesa na sociedade. O documentário mostra que durante o período de 1920 e início de 1930, até a chegada de Hitler ao poder em 30 de janeiro de 1933, havia dezenas de clubes e espaços queer em Berlim, uma produção de publicações sobre e para esse público, havia igualmente uma mudança nos valores na Alemanha para uma sociedade mais aberta, plural, diversa e com tolerância aos homossexuais. Havia inclusive uma iniciativa pioneira no mundo, o Institut für Sexualwissenschaft, que funcionou entre 1919 e 1933, quando foi destruído pela juventude nazista que o invadiu, depredou e incendiou os mais de 20 mil livros da instituição. O nome traduzido pode ser Instituto para o Estudo da Sexualidade, ou Instituto de Pesquisa Sexual, Instituto para a Sexologia ou Instituto da Ciência da Sexualidade. O Instituto era liderado por Magnus Hirschfeld, que desde 1897 dirigia o Wissenschaftlich-humanitäres Komitee ("Comitê Científico-Humanitário"), que realizava pesquisas e militava pelos direitos dos homossexuais e transgêneros com base em conhecimentos científicos. Hirschfeld publicava também o periódico científico Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen e consolidou uma biblioteca única sobre amor e erotismo pelo mesmo sexo.

O processo de vitória das ideias e das forças políticas nazistas não foi num contexto de homogeneidade cultural ou ideológica na Alemanha, mas se deu em profundo conflito, numa sociedade estratificada, diversa e contraditória. Na verdade, a contradição é o que caracteriza os diferentes processos humanos em todos os momentos de sua história, num complexo campo de disputas simbólicas que, a depender dos movimentos políticos, podem ter desenlaces completamente diferentes mesmo tendo situações iniciais similares. Não há “predestinação”, ou escatologia, ou “destino manifesto” nas civilizações humanas, em um suposto processo compreendido e identificado com uma linearidade de acontecimentos que necessariamente terão determinados resultados.

Essa contradição alemã nas décadas de 1920 e 1930 se dava no campo do comportamento sexual, mas também no campo da política. A Alemanha, antes da ascensão nazifascistas desastrosa, vivia a República de Weimar, com uma constituição democrática, direitos sociais avançados para a época e com forças políticas progressistas, os sociais-democratas e os comunistas, que durante um momento pareciam ser hegemônicas. Estas não lograram êxito pela sua divisão política, que as enfraqueceu para se contrapor ao monstro da extrema direita fascista. Os nazis souberam galvanizar a insatisfação com a crise econômica, o desemprego, a inflação e depois a crise de 1929. E com o erro da indicação de Hitler para o cargo de chanceler pelo então presidente da época, Paul von Hindenburg, os nazis forjaram o incêndio do parlamento alemão, o Reichstag, encenaram que se tratava de uma tentativa de golpe comunista e a partir daí promoveram o fechamento do regime e uma ditadura.

Já vinha sendo forjada pelos nazifascistas a estratégia de promover a desordem, a insegurança e o ódio desde a década de 1920. As suas milícias, tendo a “SA” (tropas de assalto) à frente, chegaram a 4,5 milhões de pessoas que se dedicavam a promover a baderna, a insegurança, os linchamentos públicos de judeus e de opositores políticos, criando um sentimento de insegurança que somado à insegurança econômica era utilizado no discurso autoritário que prometia a ordem e a segurança.

O processo de contradição então estava no campo político, do comportamento e dos costumes, mas também atravessava a cultura e o meio acadêmico e jurídico, que assistia ao florescimento de grandes pesquisadores nas Ciências, nas Artes, na cultura ao mesmo tempo em que havia uma militância obscurantista que desprezava a cultura, os cientistas e os acadêmicos e defendia uma volta a um passado idílico e inexistente de ordem, simplicidade e conservadorismo, com base na família tradicional, na parte da religião conservadora aliada ao nazifascismo e na arte pré-contemporânea. Muitos cientistas, artistas, filósofos fugiram da Alemanha na época, e outros países se beneficiaram disso, como os físicos Erwin Schrödinger e Max Born ou o bioquímico Hans Krebs, além evidentemente de Albert Einstein. Certamente essa fuga impediu a Alemanha de desenvolver a primeira bomba atômica, o que poderia mudar o rumo da guerra.

Ao analisar o Brasil hoje e vários outros países encontramos os mesmos elementos de ataque às liberdades individuais e de comportamento, de racismo, de destruição das instituições democráticas, de tentativa de golpes, desestabilizações e captura do Estado por milícias e grupos criminosos. Basta ver o que foi o 8 de janeiro com a invasão da Praça dos Três Poderes em Brasília e a captura de parcelas do Estado por grupos ligados ao crime organizado das milícias (a exemplo do Rio de Janeiro, dentre outros). Perdura uma intensa disputa cultural por um projeto de sociedade e o fim das eleições de 2022 não significou o fim da guerra cultural que continuará por um bom tempo.

O momento atual não é de um fim das adversidades e dos conflitos na sociedade brasileira, assim como grande parte da civilização ocidental se encontra numa situação de contradição, de disputa de projetos de civilização, de valores, atitudes, de posicionamentos, que pode resultar em retrocessos com perda da Democracia, da justiça social, do combate à desigualdade e com o agravante que vivemos uma crise ecológica com o “antropoceno” que as atuais forças nazifascistas mundiais fazem questão de negar, na esteira do negacionismo científico que tanto caracterizou os fascistas de outrora.

Na Espanha fascista de Franco, que enterrou a República Democrática e se mantinha pela força das hordas ignorantes e incultas que atacavam a Ciência e a Cultura e promoviam a violência, tivemos um exemplo de como funcionam até hoje os fascistas no Brasil e seu negacionismo. Em 1936, no salão de honra da Universidade de Salamanca que estava lotado, havia estudantes e professores, mas também os falangistas – os fascistas espanhóis. Um dos oradores, o fascista Francisco Maldonado, defendeu um ataque contra a Catalunha e o País Basco dizendo que eram “anti-Espanha e tumores no sadio corpo da nação”. Maldonado disse que “o fascismo redentor da Espanha saberá como exterminá-los, cortando na própria carne, como um decidido cirurgião, livre de falsos sentimentalismos”.

Ele foi aplaudido pelos falangistas da plateia que gritaram o lema da Falange: “Viva la muerte!”. Seguiu-se a reação do então Reitor de Salamanca, Miguel de Unamuno, que corajosamente contradisse o discurso então hegemônico na Espanha, dizendo não aceitar que na Universidade saudassem a morte com “um brado necrófilo e insensato”. Os falangistas então passaram a gritar “Abaixo a inteligência! Viva a morte”. Outra versão diz que os gritos foram “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”.

O Reitor Unamuno não se intimidou e, mostrando a coragem que deve estar em todos aqueles que defendem um mundo mais justo socialmente e democrático, disse: “Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo sacerdote! Vós estais profanando este sagrado recinto. Tenho sempre sido, digam o que digam, um profeta de meu próprio país. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito.”

Cabe aprender com o passado para não o repetir, levando-se em consideração as especificidades brasileiras. Vale perceber a importância de cuidar da Economia, da geração de empregos, de diminuir as desigualdades sociais, de acabar com a fome. Trata-se também de disputar mentalidades, visões de mundo, cultura e valores.

Nada mais adequado do que ver a Escola, a Educação, a Cultura, as Artes e as Universidades como espaços privilegiados da formação de uma nova cultura, de novos valores civilizatórios, que contribuam para uma Sociedade que se oriente pela razão, pelo Direito, pela inteligência, pela tolerância e pela riqueza da diversidade. Nesse tronco comum da Ciência, da Cultura, das Artes e da criatividade deve-se perceber como é desafiador e complexo entender e incidir na realidade social e cultural contraditória em que nos encontramos para construir uma verdadeira Democracia, substantiva, sem desigualdades sociais, fome ou miséria, com soberania e espaço para todos.

Edição: Gabriela Amorim