Rio Grande do Sul

Coluna

A pele que habito tem cor: quando uma antirracista realiza que é branca

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"Por incrível que pareça, descobri muito recentemente que sou branca. Agora sei que sou branca" - Reprodução obra de Salvador Dali
Conhecer não é saber. Hoje, este saber se impôs a mim, não há mais como refutá-lo

Aproveitando a proximidade da data desta coluna com o dia 25, Dia Mundial da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e Dia Nacional de Celebração da Memória de Teresa de Benguela, escolhi falar sobre branquitude. Por incrível que pareça, descobri muito recentemente que sou branca. Agora sei que sou branca. Apesar de recente, não foi uma descoberta repentina.

Na verdade, data de pouco mais de um ano, minha primeira crise de perplexidade com esta questão da minha cor. Eu estava prestes a lançar meu último romance, em cuja narrativa havia a presença de personagens brancas e negras. Tive o privilégio de contar com a contracapa de Ana dos Santos, que me chamou a atenção para o fato de que somente os corpos das personagens negras eram descritos, e que o título de um dos capítulos, onde elas eram majoritárias, tinha a infelicidade de ser “As outras”. Não consegui argumentar nada, apenas agradeci e acolhi sua recomendação: “faça algo com isso”, e fiz. Descrevi todos os corpos brancos, e mudei radicalmente o título do capítulo, aliás para outro bem mais pertinente ao texto. Foi traumática, esta descoberta. Mas sou muito grata à Ana, por ter feito de mim alguém mais civilizada.

Cresci em uma vila do bairro Partenon onde as pessoas negras eram maioria, brincando com crianças negras, tanto na minha rua quanto na escola. Minha família perdeu o estatuto de sócia do clube da rua em frente, que pertencia à Vila dos Brancos, porque quando festejou o aniversário de uma de minhas irmãs, acolheu ali convidados/as negros/as, nossos/as grandes amigos/as.

Havia uma placa, na entrada daquele clube: “Proibida a entrada de pessoas de cor negra”. Na verdade, perder o título de sócios, naquele contexto, até era enobrecedor. Então estávamos do lado certo. Era assim que as coisas aconteciam. Tudo era muito óbvio: a vila que nos interessava não era a do clube da rua em frente à nossa. Claro que com o tempo a vida foi me ensinando que o que mais tínhamos em comum com nossas amizades vizinhas era o fato de sermos pessoas de classe não privilegiada, que tinham que dar muito duro para sobreviver. No mais, ninguém nos barrava em lugar nenhum. Até mesmo nos postos de atendimento de saúde, nosso lugar na fila era sempre o melhor, o que nos dava vergonha.

Quando meus irmãos mais velhos foram estudar como bolsistas em uma escola católica privada das imediações, foi chocante a informação de que não havia nem mesmo um aluno ou aluna negra na escola. Na igreja, também não se via ninguém de outra cor, no cineminha de domingo à tarde ou no parquinho de diversões do bairro, também não... por onde andavam? Mesmo assim, até então prevalecia a ideia de que estávamos todas as pessoas no mesmo barco, os perrengues das nossas famílias eram parecidos, e isso construía uma espécie de teoria de que nada nos diferenciava umas das outras, como se tivéssemos a mesma cor. Éramos, ao contrário do dito racista da época, “brancos de alma negra”.

Passadas tantas décadas, pois já sou uma mulher antiga, eu ainda sustentava esta leitura, se não mais da minha família, pelo menos a meu respeito. No entanto, sou obrigada a reconhecer que sempre estive equivocada. Sim, eu conhecia a diferença entre nossas cores. Eu fazia parte de uma família branca, minhas amigas e amigos faziam parte de famílias negras. Mas eu nada sabia sobre essa diferença. Conhecer não é saber. Hoje, este saber se impôs a mim, não há mais como refutá-lo. E assim como devo à Ana dos Santos minha primeira evolução civilizatória, devo também à Taiasmin Ohnmacht, minha colega na clínica psicanalítica, este passo à frente que pude dar na direção do reconhecimento da minha branquitude.

Recentemente, eu argumentava, em uma situação de trabalho, que me parecia um absurdo, o que estudantes negras precisam passar nas instituições de ensino nas quais elas são cotistas. Obviamente que sei que cotas não se discutem, nem ações afirmativas, aprendi muito com Jeferson Tenório. Mas eu sustentava que era um absurdo, essas instituições não terem rigor de controle da mentalidade colonialista que produzia situações constrangedoras para essas estudantes (e para estudantes homens negros, também), transformando o que são ações afirmativas em um mecanismo segregacionista. Isso precisava ter fim! Afinal, ações afirmativas não são ações de concessão! Chega das pessoas brancas se colocarem no lugar dos que estão “concedendo” algo às pessoas negras!  Ela me respondeu: “Compreendo tua preocupação, mas tua posição é tutelar e desnecessária”.

Cresci muitos anos, ouvindo isso. E cresci muitos anos mais ouvindo o que ela me disse há poucos dias, quando retomávamos o assunto: “Pois é, para as pessoas brancas, essa racialização é algo muito novo. [...] Quando as pessoas brancas pensam em dizer algo sobre o racismo, esquecem, muitas vezes, o que as pessoas negras já disseram sobre isso”. Depois de ouvir dela esta generosa e rigorosa observação, fui aos textos de Lélia Gonzales e Sílvio Almeida, e me causou um grande alívio, ver o quanto eu já estava civilizada, o quanto eu já me sabia branca. Isto ressignificou, para mim, o dia 25 de julho.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.    

Edição: Katia Marko