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Os escombros do Brasil e a ressureição da crítica

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" Faz tempo que nos reservamos o direito de não sermos críticos e até mesmo de ativamente advertir aqueles que insistiam em sê-lo. " - Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil
Ironicamente o otimismo cego é a sina da ruína de hoje e de outrora

Eu faço parte da (des)afortunada geração daqueles que nesta década de 2020 entraram na casa dos 30 anos de idade. Essa geração no Brasil, e talvez no mundo, possui uma característica muito específica: até bem pouco tempo atrás, só tinha experimentado vitórias.

Na década de 1990 eu era demasiado jovem para entender, ou mesmo registrar, o que foi o ataque neoliberal à jovem democracia brasileira. Vagamente me recordo da reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998. A eleição do primeiro governo Lula em 2002 já me é muito mais próxima, mas seu real significado só seria transparente muitos anos mais tarde.

Em 2008, em meados do segundo mandato de Lula, eu entrava na universidade e, mesmo com a crise financeira global, o futuro do Brasil ainda parecia fadado ao sucesso. Minha geração viveu, na sua grande parte, a sequência de vitórias do campo progressista, e nada, a não ser o aprofundamento do desenvolvimento do país nos moldes fundados pelo PT, se anunciava no horizonte.

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As jornadas de junho de 2013 se apresentaram apenas como mais um passo nessa direção: a intensificação da superação das desigualdades sociais, o amadurecimento e a intensificação da democracia, o avanço das pautas progressistas. Uma trajetória de ascensão que nos permitia até mesmo falar em revolução e pensar a política nacional à esquerda do PT.  

Na época, o Movimento Brasil Livre (MBL) não era mais do que uma distorção, fruto da falta de prática da musculatura política que entrava em movimento. Apesar dos múltiplos sinais de alerta, o otimismo era sentimento geral e a crença que venceríamos a disputa contra o oportunismo político era difundida.

Onda de retrocessos

Essa geração – ou ao menos a parte dela com a qual me identifico – não sabia o que era perder, nem concebia que seria possível que, depois de tantos avanços, a versão mais grotesca e radical da direita brasileira pudesse reassumir a hegemonia política e conduzir uma desconstrução do país e do Estado tal como assistimos desde o golpe de 2016 até a calamidade pública do governo de Jair Bolsonaro (PL).

Assistimos incrédulos o circo de horrores se desdobrar diante dos nossos olhos com absurdos cada vez mais delirantes. A geração criada no otimismo e na esperança se tornava rapidamente melancólica. Descobrimos o que era perder, e perder feio. E não nos enganemos, seguimos, se não perdendo, ao menos numa entrincheirada defensiva.

Certamente a vitória de Lula novamente em 2022 foi um alívio, mas um que mal disfarça o fato de que, apesar de tudo que aconteceu no desgoverno anterior, quase foi uma derrota. E cá estamos novamente, embriagados no otimismo, como se tudo não tivesse sido mais do que um infortúnio, um desvio.

Podemos nos dar ao luxo de acreditar que simplesmente entramos numa máquina do tempo, voltamos sete anos atrás e estamos apenas retomando algo que foi suspenso? Impossível. O mundo, o país e nós, já não somos os mesmos.

Não foi apenas um pesadelo do qual acordamos para retornar a nossa rotina usual. Não cometamos erro tão banal. É necessário agora, mais do que nunca, estarmos alertas e criticamente conscientes. É chegada a hora de exercitar algo que talvez tenhamos negligenciado por muito tempo no nosso frenesi de boa esperança: a crítica.

Não é uma escolha, mas uma necessidade

O crítico é o chato, o estraga-prazeres, o pessimista, aquele que “torce” para não dar certo, o cara do copo meio vazio. Pelo menos é essa a imagem padrão difundida do crítico. Do que decorre que, com raras exceções, ninguém quer desempenhar esse papel. Entretanto, a crítica não é uma escolha, mas uma necessidade que se impõe pelo movimento do real. Não atender a essa necessidade pode até ser uma decisão, nem sempre consciente, mas que em nada alivia o imperativo do concreto.

Faz tempo que nos reservamos o direito de não sermos críticos e até mesmo de ativamente advertir aqueles que insistiam em sê-lo. E o fizemos no momento em que a necessidade da crítica nos era mais importante. Recapitulemos: em 2016, sofremos um golpe vexatório e não era o momento de ser crítico porque o campo progressista se encontrava sob ataque, era momento de coesão.

Em 2018, a possibilidade da desastrosa eleição de Bolsonaro também exigia que o momento crítico fosse postergado diante da gravidade da situação; ao longo dos quatro anos de desgoverno completo, a oposição era necessária, mas a crítica deveria esperar a retomada de tempos “normais”.

Em 2022, derrotar o bolsonarismo era a tarefa mais urgente e tudo foi sacrificado no altar da luta antifascista, incluindo, claro, a crítica. Vencida as eleições, ficou claro que o bolsonarismo nada tinha de derrotado e, portanto, era – e ainda é – imperativo a defesa da democracia na figura do governo atual e, mais uma vez, a crítica deve esperar.

Pois bem, nisso já se vão quase sete anos em que a atividade crítica encontra-se paralisada, esperando a hora correta.

Você, leitor, pode ter acabado de concluir pela completa alucinação da linha de argumentação proposta até aqui, afinal de contas, como assim em um dos momentos mais polarizados da história da política brasileira não tem atividade crítica se tudo o que vemos são ataques e perseguições das mais diversas?

Falência da crítica

Nada mais conveniente para a falência da crítica do que o seu simulacro. De novo, a crítica, aquela digna do nome, a que se aprofunda nas raízes dos problemas e nos limites do nosso tempo, não é mero sabor do momento, mas imperativo do real. Retornemos ao nosso período de embriaguez otimista para melhor compreender aquilo que nos falta desde então.

A ascensão do campo progressista nos anos dos governos do PT se deu ainda sob a égide e os marcos postos dentro de uma sociedade capitalista, bem como seu horizonte de realizações se conformava nesse quadro: mais produção, mais consumo, maior “bem-estar” rumo ao “desenvolvimento econômico socialmente e ambientalmente equilibrado”.

O aprofundamento dos avanços sociais pouco, para não dizer nada, tinha na sua perspectiva a superação das principais contradições do modo de produção capitalista, pelo contrário, contava com sua reprodução infinita. Pois bem, a reprodução infinita de tal ordem de coisas não se sustentava como ainda não se sustenta. A crise do capitalismo exigia alguma resolução que foi suprida com a ascensão da direita radical e o consequente aumento dos graus de exploração e humilhação da classe trabalhadora.

Se, bem como disse a presidenta Dilma, o golpe é misógino e em grande parte isso se dá porque ele foi dado contra a classe trabalhadora, composta majoritariamente por mulheres. E quando a direita foi para o ataque, nós nos entrincheiramos na defensiva, quase como numa aceitação tácita de que era a vez do outro lado jogar.

O horror tal como todos conhecemos e reconhecemos se instalou. Horror esse talvez mais bem representado nas milhares de mortes fruto da excepcional gestão do “não-coveiro” e no retorno do Brasil ao mapa da fome. O resto é bônus do espetáculo: quanto menos pão, mais circo.

Entretanto, isso não acendeu a chama da crítica radical na esquerda institucional. Muita indignação, muita carta de repúdio, muita live. Mas tudo no maior respeito ao decoro institucional da democracia de direito, afinal de contas servimos ao Estado e não ao povo. Assim passamos do golpe sem fundamento institucional, mas “politicamente” legitimado para o governo sem fundamento político e social, mas institucionalmente legitimado. E o jogo seguiu.

E agora cá estamos, mais uma vez na nossa vez de fazer a jogada. O que temos a apresentar? Infelizmente, nada de novo. Como se tudo não tivesse passado de um sonho, de um delírio coletivo do qual acabamos de acordar.

Democratas novamente

Vamos comemorar o crescimento econômico, as vagas de emprego, o superávit primário! Vamos mediar o inconciliável! Pronto! Finalmente temos um governo minimamente racional para nos ajudar a navegar no naufrágio irracional do capitalismo global. Ao menos seremos consumidores mais felizes e inclusivos na fila para comprar o último tanque de oxigênio da moda.

Não há futuro possível, justo ou injusto, dentro do quadro do modo de produção capitalista e, infelizmente, talvez a hora da crítica já tenha passado porque já não haja mais retorno. Talvez seja por isso que esperamos ansiosos que o próximo boletim econômico nos traga boas notícias da saúde financeira e econômica do país: isso alimenta o sonho delirante da reprodução capitalista e é a única saúde que ainda é possível almejar.

Ironicamente o otimismo cego é a sina da ruína de hoje e de outrora. Agora, só a urgência do chamado: da morte à ressurreição da crítica. Não resta nada a fazer.

 

Marcos Gustavo de Melo é economista, doutor em economia pelo Cedeplar/UFMG, mestre em geografia e membro do Instituto Economias e Planejamento.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Larissa Costa