Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

'O sistema de segurança pública no RS anda na contramão de um Estado socialmente aceitável'

Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos também questiona a opção pela privatização dos presídios  

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Temos uma ameaça muito grande, principalmente nas questões fundiárias", avalia Júlio Alt, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH/RS) - Foto: Fábio Alt

Porque os “direitos humanos” são mal vistos por parte da população no Brasil? O que explica isso? Qual o papel dos programas sensacionalistas que exploram crimes e dramas da população mais pobre, investigando, julgando e condenando antes da Justiça ser ouvida, na construção de uma má imagem dos direitos humanos e dos seus defensores?

:: Conferência Estadual de Direitos Humanos enfatiza a importância de políticas públicas ::

Na véspera dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, estas são questões que exigem respostas. São algumas das perguntas que Júlio Alt, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH/RS), responde nesta conversa com Brasil de Fato RS.

Acompanhe:   

Brasil de Fato RS - Por que o termo “direitos humanos” virou pejorativo perante boa parte da população? 

Júlio Alt - Parece até que a questão dos direitos humanos é exclusivamente penal e que nós atuamos somente na defesa dos direitos humanos da população prisional. E mesmo essa defesa dos direitos humanos da população prisional faz muito sentido. Uma pessoa sofre uma pena de reclusão e a pena é estar em um espaço fechado e não poder exercitar a liberdade plena devido ao cometimento de um crime. Essa pessoa não deve ser penalizada por outras questões além da reclusão. Por isso, os direitos humanos também atuam na área da população carcerária. 

Os países que tratam seriamente os direitos da população são os que possuem índices avançados de desenvolvimento humano

Então, a partir daí, tornou-se a luta por direitos humanos algo pejorativo. Mas a atuação no campo dos direitos humanos ocorre em nível mundial, com acordos mundiais e acordos dos quais o Brasil é signatário. Nossa própria Constituição enaltece a dignidade da pessoa humana.

Os países que tratam seriamente os direitos da população civil são aqueles que possuem os índices mais avançados de desenvolvimento humano. Neles, a população consegue exercitar melhor a participação na vida pública, e também o controle e o aprimoramento das esferas estatais. 

BdFRS - Qual o papel dos programas sensacionalistas de rádio e TV na construção dos direitos humanos como algo ruim? 

Júlio Alt - Muitas vezes percebemos que  há uma incompreensão sobre o tema dos direitos humanos, Acho que a mídia tem que ter algum tipo de responsabilidade pela sua opinião. Pessoas que estão no início de um processo de acusação - talvez até sejam inocentes - já estão sendo pré-julgadas pela mídia. 

Alguns setores da mídia fazem um desserviço para a comunicação

Isto nos preocupa. Da forma como alguns setores da mídia atuam fazem um desserviço para a comunicação. Não tem a responsabilidade que deveriam ter na medida que (no caso das emissoras de rádio e TV) possuem uma concessão pública. Tem que trazer o contraponto. 

BdFRS - O Brasil é um dos países que mais mata defensores dos direitos humanos. O que explica isso? 

Júlio Alt - Temos uma ameaça muito grande, principalmente nas questões fundiárias. Boa parte desses defensores de direitos humanos estão em territórios reivindicados por determinadas comunidades, seja numa associação de moradores, seja numa comunidade quilombola, ou num assentamento. Ali sofrem ameaças por setores poderosos. 

Podemos verificar, por exemplo na publicação anual do relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/6354-conflitos-no-campo-brasil-2022, o quanto esse assunto é grave. Já criamos mártires por causa dessa questão. E acreditamos que ela acontece (a violência contra os militantes dos direitos humanos) em parte pela falta de atuação estatal. Tanto uma investigação quanto a própria investigação interna desses órgãos de controle da segurança pública que nos parece que não acontece. Ou se acontece é algo pouco prático, e quase que fantasioso. 

No conceito da necropolítica há pessoas que podem ser descartadas e outras não

Precisamos de reformas no sistema institucional da segurança pública, que, em boa medida, reproduz ainda normas da época da ditadura civil-militar.


"Precisamos de reformas no sistema institucional da segurança pública, que, em boa medida, reproduz ainda normas da época da ditadura civil-militar" / Foto: Fábio Alt

BdFRS - A ideia que fica é que nem todos os seres humanos merecem tais direitos… 

Júlio Alt - O ministro Sílvio Almeida, no seu livro Racismo Estrutural, traz um pouco desse debate. Através do biopoder de (o pensador francês Michel) Foucault, da necropolítica de (o teórico camaronês Achille) Mbembe consegue verificar como, no Brasil, uma parte da população pode ter os seus direitos civis e direitos humanos não garantidos. Enquanto isso, a outra parte da população ou de países consegue ter  seus direitos mais assegurados. No conceito da necropolítica há pessoas que podem ser descartadas e outras não. 

No Brasil, isso acontece tanto pela fragilização das políticas sociais quanto pelo fato delas não alcançarem a ponta, a população que mais precisa. Gera um conflito muito grande e também uma incompreensão da sociedade sobre a forma como vamos conseguir fazer o estado chegar nesses locais.

BdFRS - Sobre isso, no sistema carcerário há muitas violações de direitos humanos…  

Júlio Alt - Estivemos no Presídio Central de Porto Alegre, atual Cadeia Pública de Porto Alegre, em vias de desocupação total, acompanhando denúncias de todo o tipo. Fatos históricos que não foram resolvidos pela falta de consenso. Agora, estamos debatendo a privatização do sistema carcerário. O que traz a ideia mercadológica para a pessoa privada de liberdade e todos os desdobramentos que virão. Além de não trazer benefícios à população carcerária, poderá trazer um imenso prejuízo ao estado. 

Parte dos crimes relacionados ao tráfico retroalimentam o encarceramento em massa

Acreditamos em outras construções possíveis a serem feitas no âmbito das decisões do poder público. Também para repensarmos os tempos de pena e incentivarmos a política de alternativas penais. Sabemos que parte dos crimes relacionados ao tráfico retroalimentam o encarceramento em massa. 

E, ainda, pensamos sobre o cumprimento de prazos para a revisão dos processos de execução criminal. As pessoas permanecem mais tempo do que deveriam no regime fechado.

O que vemos é o que o sistema de segurança pública no Rio Grande do Sul anda na contramão de um estado socialmente aceitável.


 "Visitamos três bairros em três cidades no Vale do Taquari e verificamos um total desajuste das políticas públicas estaduais, federais e municipais" / Foto: Carolina Colorio

BdFRS - A Declaração Universal dos Direitos Humanos está completando 75 anos. Que evolução aconteceu depois de sete décadas? 

Júlio Alt - Temos nos esforçado para avançar nessa questão de “Qual mundo queremos?” Daí, começamos a refletir sobre o conceito de “desenvolvimento” como algo central na agenda dos direitos humanos. O desenvolvimento se torna “desenvolvimento sustentável” no conceito mundial, com a proposta de que se não for “sustentável” não traz desenvolvimento. 

No caso dos Objetivos do Milênio, a partir de 2015 passamos a entendê-los como ODS, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. É o esforço para propor uma sociedade que consiga respeitar acordos de direitos humanos, de direitos ambientais e de direitos sociais. 

Não conseguimos compreender a razão pela qual a diversidade e a nossa história não é contada nas escolas

BdFRS - Se os direitos humanos fossem ensinados desde a escola, que transformações poderiam trazer? 

Júlio Alt - De certa forma, essa questão já está legislada. Poderíamos estar prevendo a aplicação da educação em direitos humanos nas escolas. Temos no Conselho uma comissão temática de educação e direitos humanos. Ela faz essa cobrança aqui no Rio Grande do Sul. 

Para que o governo estadual implemente e aplique a educação em direitos humanos nas escolas. Também a educação indígena e afro-americana. Não conseguimos compreender a razão pela qual a diversidade e a nossa história não é contada nas escolas. De forma que a gente consiga compreender como foi a nossa colonização, quem são as populações originárias, o que é a diáspora africana. 

Brasil de Fato RS - Como que se avalia a questão dos direitos humanos aqui no estado? Como o Conselho incide sobre a questão? 

Júlio Alt - Não há plano de direitos humanos no estado. Portanto, avaliamos ainda como uma política a ser instituída, em processo de instituição e fortalecimento. Temos um conselho com diversas entidades. São 24 instituições eleitas, e também atores públicos. O que faz com que o Conselho induza uma política de participação pública democrática. Conseguimos apreciar, votar e encaminhar as questões prementes. 

Temos presentes no Conselho, o campo da terra, o campo indígena, a população LGBTQIA+ representada, as entidades vocacionadas através da fé que atuam em demandas importantes com populações fragilizadas com fé na sua atuação. Também entidades relacionadas aos direitos da criança e do adolescente, da educação, entre outras. Elas trazem as demandas para o Conselho. 

A especulação imobiliária se choca com os direitos dos indígenas e dos quilombolas

BdFRS - Quais são as principais violações identificadas no estado quando se fala em direitos humanos? 

Júlio Alt - Há, por exemplo, questões sobre o racismo. E também contra a população negra e indígena. Devido a esses grandes temas, temos a atuação de duas comissões, uma que enfrenta a questão do racismo institucional, e a outra que trabalha a perspectiva de direitos da população indígena. 

As comunidades indígenas estão ou ameaçadas por não conseguirem seu total direito à terra ou pelo entorno, aquilo que ameaça o modo de vida dessa população. Não são muito diferentes as questões quilombolas. A população quilombola está espalhada por todo o Rio Grande do Sul e, a partir do golpe de 2016, houve uma paralisação dos órgãos que trabalham essas temáticas.  

Temos o caso do Quilombo Kédi, por exemplo, e também da população Kaingang do Morro de Santana. A especulação imobiliária se choca com esses direitos. 

Em três cidades do Vale do Taquari verificamos um total desajuste das políticas públicas com as demandas

BdFRS - A Missão de Monitoramento de Direitos Humanos visitou o Vale do Taquari que sofreu grandes perdas humanas e materiais com as cheias. O que a Missão, que é integrada por várias entidades, constatou lá? 

Júlio Alt - Visitamos três bairros em três cidades no Vale do Taquari e verificamos um total desajuste das políticas públicas estaduais, federais e municipais com as demandas de quem está sofrendo com as enchentes e com a ameaça de novas enchentes também. Verificamos ali um total descaso - não sei se podemos chamar de descaso, mas talvez seja esse mesmo o termo – relacionado ao acesso das pessoas às questões mais básicas. O Estado, muitas vezes, fecha a porta ou coloca uma questão burocrática na frente da vida daquela população. 

:: Missão de Monitoramento no Vale do Taquari é marcada por relatos que expõem série de violações ::

BdFRS - No caso da Missão, os principais problemas apontados foram educação, moradia e assistência social....

Júlio Alt - Sim, referente à moradia, a preocupação das pessoas é (saber) onde vão morar já que não podem mais habitar boa parte daquele território que pode ser alagado novamente. A resposta dada pelos municípios, a princípio, foi a construção de novas habitações. É algo que demora bastante, tendo em vista todas as questões legais que perpassam isso. Não há uma atuação como deveria estar acontecendo quanto à agilização de soluções. 

BdFRS - O estado tem um déficit de funcionários públicos, o que também prejudica ...

Júlio Alt - Observamos uma total deficiência do poder estadual para conseguir atender as próprias demandas do estado. E quando surge uma questão emergencial não sabemos como encarar. 


Edição: Ayrton Centeno