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DICA DE LEITURA. A Batalha no Vale do Sol, de Mari Mendes

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A atual geração oferece caminhos em comparação à geração anterior de prosadores no país - Pedro Carrano
O texto de Mari Mendes tem como eixo a luta em uma ocupação urbana por moradia

O futuro da literatura – e da literatura brasileira -, é incerto, como a própria leitura de ficção na sociedade atual, cada vez mais veloz e de linguagens fragmentárias. Nem por isso, a literatura seja menos necessária em nossas vidas e na compreensão da sociedade brasileira contemporânea.

Novos autores e autoras têm surgido, muitos deles cujas obras têm como pano de fundo o Brasil moldado no turbilhão da crise após o golpe de 2016, nos anos de desmonte dos governos Temer e Bolsonaro, acentuado com a crise social, política, econômica e sanitária da pandemia de covid-19 – o que entra em contradição com as políticas de inserção na educação do período anterior dos governos do PT. Desse choque, a literatura apresenta hoje um panorama rico de trabalhos vindos da periferia, saraus, jovens poetas, e também narrativas ficcionais que têm exposto o tema da luta de classes. Vemos jovens autores oriundos da periferia, caso, por exemplo, de José Falero, autor de “Os Supridores” e “Mas em que mundo tu vive?”.

A atual geração oferece caminhos em comparação à geração anterior de prosadores no país, se pensarmos no papel da Itamar Vieira Jr, autor de Torto Arado, ao trabalhar com a visão de mundo das comunidades tradicionais e em resistência. Recomenda-se também "A Ocupação", de Julian Fuks.

Insiro também nesta perspectiva o trabalho "Batalha no Vale do Sol" (Expressão Popular, 2023), da autora Mari Mendes, de Sorocaba (SP). Insiro o meu próprio desafio ao escrever Com os Ossos Abertos, romance que também inicia com um despejo forçado em área de ocupação.

O desafio para esse contexto autoral é como atingir a precisão de linguagem, a construção de personagens e a capacidade de apresentação do conflito como conseguiu, por exemplo, um José Lins do Rego (1901 - 1957) ao descrever a decadência da monocultura e dos engenhos? O desafio é grande de busca de precisão entre a linguagem e a denúncia histórica, como o que alcançaram o peruano Manuel Scorza, em "Bom Dia para os Defuntos", Roberto Gomes, em "Os Dias do Demônio", para citar somente alguns exemplos não tão distantes no tempo de obras que retrataram conflitos entre as classes sociais. Num resgate histórico de eixo mais longo, quem esquece a empatia e a forma como "Os Sertões" de Euclides da Cunha vai impactando o leitor na medida em que o escritor/jornalista adentra no conflito?

O texto de Mari Mendes tem como eixo a luta em uma ocupação urbana por moradia, que é o centro gravitacional das personagens e suas principais questões e conflitos: o machismo, o trabalho não pago de cuidado, reservado às mulheres da periferia, as contradições vividas na realidade, mesmo em meio à tentativa de modificação desta realidade, a sobrecarga, a liderança da ocupação, a violência contra a mulher. Tudo é trabalhado num ritmo que anotei no meu caderno de anotações como “polifonia da quebrada”, com o uso de vários personagens e recursos.

Enredo

Dividida em três livros, no primeiro deles conhecemos o percurso, em primeira pessoa, de Madalira, jovem que vive a opressão no interior da família e das primeiras relações com homens, até entender o sentido de se somar a uma luta coletiva pela terra.

Depois, o “Livro de Levita” envereda por elementos de realismo fantástico, recordando Gabriel García Marques, quando a autora trabalha com a religiosidade popular, em dois polos, sempre com riqueza de abordagem e trabalho de linguagem: seja retratando a linguagem do neopentecostalismo, seja no personagem Saimon, que passa a levitar e tornar a ocupação atraente para a sociedade do espetáculo. Com isso, Mendes trabalha com o elemento da espiritualidade construída no imaginário popular no Brasil, no seu elemento contraditório. João Ubaldo Ribeiro, em “Viva o Povo Brasileiro” já defendia a ideia de que há um preconceito das elites, buscando associar a crença popular ao fanatismo, como ocorreu nas revoltas de Canudos e do Contestado. A mesma criminalização que conhecem atualmente muitas áreas de ocupação.

“Não teve tempo de conhecer o alvo de seu ressentimento. Justamente naquele dia Talisca acordou Madalira mais cedo: O levita foi embora. Eu resolvi levantar cedo para tratar das coisas da Tenda e quando saí, o levita já ia mais alto do que a bandeira do movimento. Foi subindo e subindo e virou um ponto só, até que desapareceu. Ainda caiu uma garrafa de uísque do meu lado no chão. Era o uísque da oferenda do povo - piscou algumas vezes O que eu faço agora? Madalira deu de ombros”, página 83.

No “Livro no vale do sol”, terceiro livro e capítulo final, a autora estende o fio tenso que acompanha toda a vida de uma ocupação por terra, quando as lideranças se deparam com um despejo forçado, em terreno pertencente à massa falida, voltada para especulação financeira. Se no meu livro “Com os ossos abertos” é um despejo forçado que dá a partida para todo o enredo, no Batalha no Vale do Sol o despejo forçado traduz aquilo que é: a síntese da desigualdade, do racismo, da exploração no Brasil, o expulsar famílias para um amanhã incerto e sem qualquer sinal de caminho ou garantia. A angústia dos dias de ameaça do despejo remonta ao trauma do despejo da ocupação Pinheirinho, em janeiro de 2011, em São José dos Campos (SP), à época sob o governo Alckmin.

Muitas vezes usando de linguagem ágil e atenta às formas, construções e gírias da periferia, nos diálogos dos personagens, Mari Mendes ajuda a consolidar um contexto importante, derrubando o senso comum que permeava a literatura sobre a abordagem dos temas sociais recair apenas em panfletarismo.

O temário do cuidado, do trabalho não pago na vida das mulheres permeia muito bem todo o livro.

“Se cuidar era também um trabalho, que outra coisa ela fez da vida senão trabalhar? Um trabalhar fora e dentro de casa. Um trabalhar sem fim. Buscou o terço dentro da bolsa, e acabou encontrando o ramo dado por Madalira mais cedo. Rogou por coragem e sabedoria”, página 109.

O livro é intenso e curto, com ritmo de novela. Os conflitos são apresentados diretamente. O trânsito de personagens também é marcante, ficando inclusive aberta a possibilidade (ao menos para o leitor) de uma continuidade e transformação em uma saga.


Jovem autora de Sorocaba (SP) faz sua segunda publicação / Divulgação

 

Edição: Lucas Botelho