Bahia

Coluna

Quem tem fé não só vai a pé, atravessa mares e sobrevive, e Oxalá que nos abençoe

Imagem de perfil do Colunistaesd
A igreja foi construída e é lavada há séculos por mãos pretas - Manu Dias/GOVBA
Não é absurdo imaginar que na construção daquela igreja tenha algum fundamento de nosso povo preto

“Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos voduns, ela disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o que podia ser dito” (Ana Maria Gonçalves).
 

Estamos em janeiro. Na Bahia, no calendário da cidade de Salvador as “Lavagens” abrem o verão e a temporada de festas populares. Mas, quem vem à Bahia – e talvez alguns baianos – não sabe o que estes momentos de junção de gentes e de alegria representa, além dos momentos festivos. Abri o texto com uma passagem do livro “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves. Por ter estado na Lavagem do Bonfim dias antes de ter começado a leitura e ter lido esse trecho dias depois da lavagem, fiz uma associação livre de imagens na minha cabeça e tudo parecia fazer muito sentido. Agradeço ao moço que satisfez a minha sede de ler tal livro.

Ter sobrevivido a uma travessia traumática de dias, submetidos às condições degradantes, expostos a todo tipo de violência e adoecimento, de ter vivido no limite entre vida e morte, dor e fé, chegar em terras estrangeiras com vida é mesmo um milagre. E em qualquer fé, seja na Europa ou em África, um milagre precisa ser agradecido. Os nossos antepassados não perderam a fé em seus deuses, mesmo quando não tinham mais forças para abrir a boca ou ficar de pé. Kehinde, a narradora da história, depõe sobre essa travessia que nos marca, sem mesmo ter passado por ela, a travessia primeira. E só sabemos parcialmente do que aconteceu porque tivemos aqueles que testemunharam tempos e transmitiram o que podiam dizer, o que conseguiram dizer, apesar de tudo.

Significantes são tão poderosos, e a fé nos deuses parece ser este significante que adquire um poder ainda maior para os sujeitos, em momentos de grandes impactos em suas vidas. Sobretudo de perdas, desenraizamento, deslocamento forçado, disjunção de vínculos significativos, cenário de horror e incertezas em relação ao presente e ao futuro.

A fé não é apenas uma operação psíquica, orgânica que produz efeitos de cura ao entoar orações. É também luta pela sobrevivência posto que algo se fortalece, as palavras são carregadas de sentido que movimentam os neurônios e a capacidade de resposta ao vivido, algo se transmite para que a vida continue. É aceitar a condição e não se conformar com ela, é produzir movimentos que nos levem a outro estado que nos aproxime da graça.

Voltando à Lavagem do Bonfim, quem segue os cortejos muitas vezes não sabe que as águas de cheiro carregadas em quartinhas pelas baianas e que lavam as escadarias da igreja, são águas de alegria em gratidão a Oxalá pela sobrevivência de uma travessia sem volta.

A Lavagem do Bonfim existe porque há uma história de sobrevivência na travessia de um português comerciante de pessoas escravizadas, mas também de pessoas escravizadas que chegaram com vida da travessia em terra estrangeira. O comerciante ergueu uma igreja para o santo católico senhor do bom fim em agradecimento pelo bom fim de uma travessia pelos mares que quase lhe tirou a vida. E ordenava que a lavassem para render-lhes homenagens. Mas foram as pessoas escravizadas que construíram a igreja e a lavavam – e lavam por séculos –, porque para elas a homenagem é para Oxalá que espantou a morte. E é legítimo que desloquem esse sentido porque este templo foi erguido por mãos africanas. Contam os mais velhos que na impossibilidade de cultuar seus orixás, voduns e inquices nossos antepassados de África assentavam estas energias em santos católicos. Então, não é absurdo imaginar que na construção daquela igreja tenha algum fundamento de nosso povo preto. A casa foi feita para convidar Oxalá! Para ter a proteção de Oxalá num destino tão incerto e dilacerante.

E para chegar lá, o cortejo não segue um trajeto aleatório. As pessoas saíam a pé – e saem – de um ponto da cidade em que está localizada a Igreja de nossa senhora da Conceição da Praia, o terminal marítimo onde barcos atracavam e atracam até hoje, o forte de São Marcelo e o Mercado Modelo. Onde as pessoas escravizadas, que sobreviveram aos tumbeiros, chegavam e ali mesmo eram vendidas para donos de engenho. É deste lugar que partem em direção à igreja de nosso senhor do Bom Fim. Num cortejo debaixo de sol escaldante para agradecer a Oxalá pela vida, pelo bom fim de uma travessia mortífera.

A igreja católica sabendo das intenções do povo preto em relação à lavagem, proibiu que entrassem na igreja e fechou as suas portas. Mas, a fé em Oxalá, a alegria de ter sido salvo na travessia e escapado da morte – que só aumentou com o passar dos anos –, fez com que o povo preto e seu cortejo ganhassem proporções e dimensões incontornáveis pelo poder colonial da igreja. E depois de séculos, é a nossa alegria que ainda lava a sujeira colonial e derruba simbolicamente as portas da igreja, ou melhor, abre as portas da casa de Oxalá que insistiram em fechar.  

O cortejo que se repete por séculos é para que jamais esqueçamos da força que temos, da capacidade que temos de transformar um acontecimento de morte em possibilidade de vida, em continuidade da existência de tudo que nos dá sentido, para que jamais esqueçamos “da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos”.

Êpa! Babá.

Edição: Gabriela Amorim