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Dica de Leitura I Adriana Lomar e as permanências do passado histórico

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A partir de Prêmio Kindle de Literatura 2022, revela um Brasil fruto da violência, do estupro, do mandonismo - Pedro Carrano
Num percurso que recorda Luiz Gama, Ébano parte em busca dos estudos para formar-se advogada

Narrativas históricas sempre têm muitos desafios.

A relação entre a criação ficcional e a objetividade da História, por exemplo, é um deles. A adequação da linguagem de um período determinado e a escolha do que pode interessar à narrativa e à construção dos personagens; o fio que conduz o olhar sobre o passado a partir do tempo presente.

Porém, principalmente, o desafio de estabelecer a conexão necessária, no caso do Brasil e da América Latina, de um passado colonial com os detritos, marcas e permanências até hoje presentes na sociedade.

O romance “Ébano sobre os canaviais”, 238 páginas, de Adriana Vieira Lomar, publicado pela tradicional editora José Olympio (comprada pelo grupo Record), a partir de Prêmio Kindle de Literatura 2022, revela um Brasil fruto da violência, do estupro, do mandonismo, do patrimonialismo, de uma ordem social competitiva que não superou e carrega a sociedade estamental – para trazer aqui à tona o Florestan Fernandes de “A burguesia brasileira”.

Com linguagem direta, parágrafos e capítulos curtos, a autora encaixa fios narrativos a partir da chegada de José, menino pobre que embarca de Porto, em Portugal, rumo ao Brasil e é acolhido por uma família de abolicionistas, críticos ao escravismo. “andam traficando meninos como tu, de origem pobre, para trabalhar nos engenhos como feitores”, página 22.

Mais tarde, sua vida vem a se cruzar com a de Ébano. Filha de Kina e Chisulo, capturados e escravizados na bacia do Congo – mostrando o  atropelo na prática das leis de proibição do tráfico de escravizados vindos da África. Kina passa por toda a tortura e estupro do proprietário do engenho, em Pernambuco, enquanto Chisulo conhece o cárcere e a humilhação.

Alforriada, num percurso que recorda Luiz Gama, Ébano parte em busca dos estudos para formar-se advogada, ainda que isso venha à custa de muito preconceito, do racismo que a obrigou a distanciar-se dos filhos e dos negócios de José. Mas partia em busca da possibilidade de defender o pai.

“Enquanto isso, na metrópole Recife, Ébano conseguiu rever a pena do pai. Ele não ficaria preso até a morte, e sim apenas mais quatro anos”, página 222.

A diegese de Lomar ainda traça uma continuidade no presente, na personagem Maria Antonieta da Nóbrega Torres, tataraneta de José e Ébano, que vive da renda da antiga propriedade do latifúndio, até que se vê na necessidade de mudar sua vida diante da crise.

“Desesperada e sem dinheiro, Maria Antonieta teve que tomar as rédeas da própria vida. Funções antes delegadas passaram a fazer parte da rotina: cuidar da louça, da roupa e da arrumação da casa”, página 100.

No livro, a autora capta as relações de classe, gênero e raça, mesmo quando a aparência do discurso não as revelam, nas relações entre patrões e trabalhadores, e mesmo nas relações contraditórias no interior do abolicionismo. E ressalta também a própria hipocrisia nas relações no interior da casa grande, numa narrativa de violência, angústia e estupro. Com pouco espaço para imagens poéticas e ambientação exterior, talvez justamente pelo peso e dureza do enredo.

Para Ébano e José, a busca e a dívida com o pai e com o passado, como algo pesado, adquire significado simbólico e histórico no romance. O próprio peso do passado (e do presente) no Brasil. O peso carregado por Maria Antonieta. O peso enfrentado pela autora. E por todos nós.

Edição: Lucas Botelho