Rio Grande do Sul

Coluna

Ouço água cair

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"Ouço água cair, ouço o barulho da água caindo, ouço e vejo a água se acumulando. Ouço não só ela caindo, como também se alastrando" - Foto: Gustavo Ghisleni/AFP/Metsul Meterologia
Como deter esse genocídio do povo palestino e esse ecocídio, não só do RS, mas da Terra toda?

que medo tanta água
que medo tanto fogo
pessoas humanas e não humanas
num grito só
fome e sede
pontes sendo arrancadas pela correnteza.
casas boiando, outras queimando.
pode a inconsciência matar?

Ouço água cair, ouço o barulho da água caindo, ouço e vejo a água se acumulando. Ouço não só ela caindo, como também se alastrando. E ouço gritos. Gritos de vidas humanas e não humanas.

Penso nas pessoas tendo que fugir de suas casas, seja pela água, seja pelo fogo.

Fisicamente estou no Rio Grande do Sul, mas meu coração e a minha consciência também estão junto ao povo palestino, e penso no barulho das bombas e do fogo que não cessa.

E eu fico com uma dor esdrúxula na minha alma.

E eu quero que vocês também fiquem com essa dor, com essa raiva de tanta água e de tanto fogo. Tanta água que não pode apagar tanto fogo. Queria voltar a ser criança, olhar nos olhos da minha mãe e perguntar, por quê? Por que essa água não pode apagar esse fogo? Por que ninguém pode fazer algo e um pouco mais para deter o massacre contra um povo, o massacre contra Gaia, contra nossa Terra que é um ser vivo? E está gritando de dor. As chuvas que caem nesses dias são tantas lágrimas que alguns seres inumanos não querem ver nem ouvir.

O que será feito de tantas chaves? Chaves de casas que foram arrastadas pelas correntezas, que foram implodidas pelas bombas. Chaves de casas submersas no Vale do Taquari, no Vale do Rio Pardo.

As imagens das pessoas tendo que abandonar seus lares, suas árvores, suas hortas, animais, passam em looping em mim.

Ontem, num jornal, davam dicas de como levar os bichinhos junto. Sempre penso em Violeta, meu gato que é muito medroso, e penso se chegada à necessidade, eu conseguiria pegar ele e leva-lo e me pergunto o que se passa com tantxs Violetas no caminho.

Ontem de noite eu ouvia a chuva cair e cair e cair e cair. Ouvia ela chegando com tanta intensidade e pensava, aqui é água, lá é o fogo e as bombas. Nos dois lugares o barulho se instalando, um barulho ensurdece-dor.

Tragédias, ambas, que podiam ter sido evitadas.

Mas ainda o agronegócio é considerado trabalho e o desmatamento é bem-visto por alguns. E o sionismo ainda não entrou formalmente na coluna do ruim.

O desmatamento. O des-matamento. Matamento. Matança. Taí, na sua raiz. Arrancar e matar as árvores, arrancar e matar homens e mulheres e crianças. Estuprar como ferramenta de “guerra”.

Nada de tudo isso é uma guerra, é um massacre.

São governos de direita querendo acumular para si.

Eu sou anarkista, não entendo de cercos e fronteiras. Acredito em ser com os mares, com os rios e com as montanhas, como nos ensinam nossos povos originários. Nós somos natureza. Por isso dói tanto. Não é por mim que choro, é por nós. Nós todxs.

Como parar e deter esses massacres?

Como deter esse genocídio do povo palestino e esse ecocídio, não só do RS, mas da Terra toda?

São governos de direita e grandes empresas, cada vez mais poderosas, querendo acumular para si. Os sionistas querem se apropriar das terras, expulsando um povo que estava antes, com as suas raízes, suas memórias, seus cemitérios. Eu sou judia, mas não acredito nessa solução.

Os fazendeiros desMatam para pôr mais bois e mais bois e mais bois. Será que o vegetarianismo e o veganismo não deveriam de ser movimentos mais importantes hoje? Sim, eu também gostava de comer carne, mas se as pessoas fossem reduzir as quantidades, isso já ajudaria. Precisamos mais consciência do todo. Não estamos sós.

Os animais não estão ao nosso serviço, as árvores não estão a nosso serviço. Assim como as mulheres não estamos ao serviço dos homens.

Enquanto escrevo a chuva continua a cair.

Enquanto escrevo as pessoas palestinas, sobretudo, crianças e mulheres continuam a ser perseguidas, assassinadas.

Se o mundo fosse feminista, aconteceriam esses gecocídios?

Vou visualizar uma chave como símbolo de abertura, de mudança, de esperança, de um dia poder voltar a entrar na própria casa e abraçar as figueiras daqui, as oliveiras de lá.

Comecei este texto com umas ideias escalonadas que postei ontem nas redes. Quem sabe terminar este texto hoje convidando vocês a pensarmos o que podemos fazer para reverter esta realidade.

Enquanto isso, o barulho d’água martela em nós, lembrando que precisamos agir. JÁ.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.   

Edição: Katia Marko