Bahia

Coluna

O indígena, o europeu, o africano

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A comida resultou na nossa singularidade, dentro da nossa diferença. - Slow Food Brasil
O tripé fundador da mesa brasileira e a outra face da globalização

Começo este texto falando sobre globalização; o processo de integração mundial que tem no sistema capitalista a sua base. Aí é a hora que você me pergunta: E eu com isso? E eu te respondo: Isso é, também, sobre você. Mire e veja, o Brasil foi inventado na primeira fase da globalização, quando a nau invadiu os nossos mares e olhos Outros caminharam para transformar em palavras as coisas.

O primeiro contato se deu pelo olho e pela língua. Ora, mas não é da língua que fala que eu estou falando e sim da língua que prova. A comunicação [ou diálogo mudo] se deu pela troca do que se usa e do que se come. Daí caminhou Caminha; chamando mandioca de inhame [por causa do contato antecessor com os povos de África], chamando caiçuma de vinho, sempre em um movimento de traduzir aquilo que não seria traduzível. Em um movimento não pacífico, a globalização penetrou as fronteiras da cultura, e o europeu viu nos insumos originários possibilidades de substituição para promover o que entendiam como uma boa mesa.

Farinha de mandioca, goma, puba, misturou-se com os desconhecidos ovos [das desconhecidos galinhas]; peixes que eram temperados basicamente com pimenta, misturou-se com a cebola e especiarias asiáticas; o doce que era exclusivo do mel, foi substituído pelo açúcar; o gringo trouxe o coqueiro, a compota, o óleo, o gado…

"E aí chegaram os negros, com toda sua tradição", e ensinaram à mulher indígena a técnica da extração do leite de coco. A mão negra substituiu a farinha de amêndoas por coco ralado e transformou o brisa do lis [português] no quindim [brasileiro]; os negros muçulmanos transformaram o milho brasileiro em cuscuz; as vísceras do boi ganharam espaço no cardápio nacional; e a moqueca que era assada, envolvida em folhas, ganhou leite de coco, dendê, panela e nunca mais foi a mesma.

E mais ou menos assim, nem tão assim, nem tão assado, foram sendo integrados os elementos culturais dos donos desta terra, do Outro colonial e dos vizinhos de África. Em um movimento antropofágico, mantivemos o que nos interessava [a farinha é um bom exemplo], pegamos do outro aquilo que queríamos e inventamos o que entendíamos como uma boa mesa. Nossa comida já nasceu globalizada, em um caldeirão cunhado pelo aço da diferença.

Finalizo este breve texto, que facilmente se transformaria em resma, com uma frase de Milton Santos: "A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une".

A comida resultou na nossa singularidade, dentro da nossa diferença.

*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim