E a caravana passou

Mulheres da caravana: Respondem com amor e atitude diante da violência dos homens

Em região de tradição patriarcal e machista, mulheres são voz ativa na agricultura familiar, na produção acadêmica

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A caravana encerrou o mês da mulher, símbolo de força de quem planta amor e colhe direitos, igualdade e liberdade
A caravana encerrou o mês da mulher, símbolo de força de quem planta amor e colhe direitos, igualdade e liberdade - Cláudia Motta/RBA/TVT | Ricardo Stuckert

A marca da Caravana Lula pelo Sul do Brasil não foi a violência. Apesar de acontecimentos que alguns veículos escolheram para suas manchetes, o amor que une famílias e comunidades inteiras na lida pela subsistência diária foi preponderante, em número e grau. E gênero. E nesse quesito as mulheres sobressaem no cenário, numa combinação de força, doçura, competência e preparo profissional.

Foram 21 cidades percorridas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, durante dez dias. Nesse período, os constantes ataques à comitiva, promovidos – adivinhe – por grupos minoritários formados por homens brancos, traçaram uma linha divisória entre dois mundos: um, cada vez mais atrasado e que quer tomar para si as cores de uma bandeira nacional que no fundo prezam menos que a de seus estados; o outro pincelado de verde, amarelo e vermelho, a cor que simboliza a paixão, nesse caso pela vida.

Não fosse isso, o que explicaria essa intensa participação delas, idosas, jovens, mães com crianças de colo – que dividem o zelo diário com a casa, os filhos, o trabalho, com atuação social e política – numa sociedade ainda marcada por um machismo doente e virulento?

Aos 79 anos, Madalena Paim já tem sua terra. Mas está no acampamento Dom Tomas Balduíno, em Quedas do Iguaçu, para ajudar os filhos a garantir as suas: Antonio tem 48 anos e Adriana, 23. Acorda às 5h para trabalhar, cuida da casa, ajuda no acampamento, faz pão para vender. “A gente enfrenta a violência, vai levando a vida, não tem o que fazer, não podemos desistir e não quero que meus filhos desistam.”

“As mulheres têm coragem efetiva, aqueles homens, valentia verborrágica”, define a senadora Gleisi Hoffmann, a primeira presidenta de um dos principais partidos políticos do mundo. “As mulheres têm uma coragem que constrói saídas concretas”, afirma, lembrando que muitas das 21 cidades visitadas pela caravana estão em regiões muito pobres. “E nessa escassez, elas assumem o protagonismo. Sem ser bufonas, sem ser temerárias.”

Não por acaso, os principais programas sociais dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff tinham seus contratos firmados com as mães de família. “O Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família foram importantíssimos para o empoderamento das mulheres”, lembra a única mulher senadora eleita pelo Paraná.

A agricultora Maria Fátima Sala, de Ronda Alta (RS), é uma delas. Aos 56 anos, ela relata a força que veio dos programas sociais hoje sob ameaça. “Foi essencial para nós, pequenos agricultores. Conseguimos casa, investimento, um avanço na agricultura familiar. E graças à minha luta, comecei a atuar no sindicato rural e a me libertar do machismo, hoje sou uma pessoa livre. Mas a gente sente que tem muitas mulheres que não podem tomar sua própria posição ainda.”

Essa liberdade, lembra Gleisi, foi fundamental para muitas se deixarem inclusive casamentos violentos. “Como diz o próprio presidente Lula, muitas permaneciam casadas somente porque precisavam do dinheiro para sustentar seus filhos. Quem sabe até, se do outro lado, no meio dos agressores, tinha desses maridos abandonados, com ódio da gente por isso.”

Sabotagem persistente

As agressões a que se refere Gleisi perseguiram a caravana desde o primeiro dia, em Bagé (RS), tendo entre as principais vítimas justamente mulheres. Na forma de xingamentos com palavras de baixo calão sempre dirigidas a elas – com foco em Gleisi, na ex-presidenta Dilma Rousseff e na deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). Ou de agressões físicas que atingiram também homens como o padre Idalino Aflen, em Foz do Iguaçu, o ex-deputado Paulo Frateschi e o professor Abel Karezek, em Chapecó, mas foram mais profundas contra elas. Em Cruz Alta, Ieda Alves, Daniele Mendes, Suzana Ritter e Deise Miron foram covardemente agredidas. Em tratamento contra um câncer, Deise, recebeu tantos chutes que teve de ser internada com hemorragia no rim.

A professora Ziguue Timm, professora, coordenadora do sindicato rural na região de Chapecó (SC), enfrentava de peito aberto agressores absurdamente próximos na praça onde se realizou o ato no sábado (24). “Viemos de manhã para ajudar na montagem do caminhão de som, do palco. E aí veio o pessoal Movimento da Ditadura Cívica Militar e colocou dois tratores na praça. Fomos pedir para tirar porque a praça estava reservada para receber o ato com o Lula”, conta.

“Eles não atenderam e ameaçaram, dizendo que hoje ia rolar sangue, que aqui em Chapecó já se queimou uma igreja, se matou muita gente. Pessoas incitando o ódio, não sabem lidar com essa diferença.” Ziguue não se abalou. “Vai ser difícil, mas não podemos deixar essa onda conservadora tomar conta. Temos uma cultura da paz, de saber conviver com a diversidade. Não somos iguais, mas temos de ter tratamentos iguais, na questão de falar, opinar e ser ouvido.”

Só eles não iam dar conta

Mas na Vila Cooptar, município de Sarandi (RS), nada disso acontece. As mulheres têm reconhecimento por seu papel fundamental na sociedade e ganham até mais pelo trabalho que realizam, em casa ou na Cooperativa de Produção Agropecuária Cascata. A Vila é um dos assentamentos dentro da Fazenda Anoni, que tem em uma mulher, a agricultora Roseli Seleste Nunes da Silva, sua maior referência.

Um grupo de 15 famílias trabalha a terra de forma coletiva na Na Vila Cooptar: produz grãos, hortaliças, leite, e toca uma pequena agroindústria, com abatedouro e frigorífico de bovinos e suínos. Cada cooperado tem seu posto de trabalho e no final do mês é feita a distribuição igualitária do que se ganha, sem distinção de idade ou sexo. As mulheres, no entanto, têm um incentivo: recebem uma hora por dia pelo trabalho doméstico, contada como se fosse trabalho na cooperativa para aliviar a carga em casa.

“Só eles não iam dar conta. A cooperativa tem 28 anos de existência e sempre precisávamos da mão de obra da mulher. E a gente não queria ficar só em casa, também queria trabalhar para ajudar a cooperativa a crescer e a coisa se fundamentar”, explica Ana Maria de Bortoli, de 49 anos.

“No início formamos uma ciranda infantil, para as mulheres poderem trabalhar, aí ficavam uma ou duas mães para cuidar as crianças. A mão de obra era escassa, tanto no frigorífico como em outros setores da cooperativa. A gente tinha de contribuir para poder crescer. Hoje já temos nossos filhos trabalhando na própria cooperativa”, comemora. “E é isso que a gente quer: construimos isso pra eles, trabalhamos de sol a sol para eles e queremos que eles continuem tocando isso que a gente implantou.”

Os avanços não pararam. Após a ciranda infantil, foi criado um refeitório no local de trabalho para todos poderem ajudar mais na produção. “Almoçamos juntos e retornamos para o trabalho mais tranquilos. Se ficamos em casa, além de fazer almoço, tu tem outras coisas para cuidar, que aqui ninguém tem empregada. Nós que fazemos tudo e os companheiros desde o início são parceiros tanto no serviço da cooperativa como no trabalho em casa.”

Homem nenhum vai oprimir

Ana Maria conta que as pessoas estranham. “É diferente porque nós mulheres nos impomos e lutamos pelo nosso lugar, nossos direitos. E eles, nessa questão desses anos todos e da própria luta viram que é por aí mesmo, eles precisam de nós. Tanto que hoje na administração da cooperativa só tem um homem. E a gente sente que tem gente que vem de fora e ‘bah, vou ter de negociar…(risos). É estranho, mas é uma conquista nossa e não paramos por aí não, conquistaremos muito mais, o direito da mulher sempre.”

Além da hora a mais que recebem, elas têm direito a uma folga a cada 15 diais. “Eles compreenderam que o trabalho feito em casa também é um trabalho que tem de ser remunerado. E se não puder eu folgar, pode ser ele: eu fico trabalhando na cooperativa e ele fazer os trabalhos em casa.”

Os filhos são criados nessa mesma linha. “Minha filha sabe que homem nenhum vai oprimir ela. E não quero que meu filho homem oprima a companheira dele. Não existe mais esse negócio de mulher que não possa se virar, comandar e tocar até um país. Teve a Dilma aí, que foi tirada, E hoje certamente o arrependimento está vindo.” Ana viveu na cidade por 21 anos, até que um frei da pastoral convidou-a para conhecer o acampamento. Foi quando conheceu o marido Gessur Bortoli, de 55 anos. “Brinco que o frei foi nosso cupido.”

Débora Makoski Francelino, 19 anos, também deixou para trás a cidade e hoje dá aulas no acampamento Dom Tomás Balduíno, em Quedas do Iguaçu. “Eu me sinto muito orgulhosa por estar lutando por algo que acho que todos os jovens deveriam estar, presentes em algum movimento social”, afirma. “É um orgulho e tanto fazer parte do MST porque é algo que a gente está conquistando para nós, para o Brasil, para estar melhorando tanto na alimentação, quanto na educação”, diz a jovem professora, defensora da agroecologia e do manejo sustentável da terra.

Fabiana Braga, 23 anos, neta e filha de assentados, conta que seu bebê, Fábio, de 2 meses, aumentou ainda mais seu ânimo para a luta. A jovem foi para o Dom Tomás Balduíno em 2015. Participava da juventude do MST quando foi presa, em novembro de 2016, na Operação Castra, que teve por objetivo criminalizar o MST, acusando seus integrantes de terrorismo. A Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP), também foi alvo da violência da operação.

“Diziam que aqui tinha um grupo armado, o que é mentira. Nos acampamentos do MST é proibido arma de fogo. Essa operação chegou para nós com muita violência, não só para quem foi preso, mas todas as famílias daqui, que sabem como funciona os acampamentos do MST. Apesar de toda violência da operação, não vou fugir da luta, nunca fugi, então não vai ser agora. Muito pelo contrário: só serviu para nos dar muito mais força e lutar ainda mais pelos nossos direitos, seguir em frente e nunca desistir.”

Ciência da integração

Aluna da Universidade Federal Fronteira Sul, Micheli Becker, 24 anos, também não abandona a luta. Nesse caso, por mais conhecimento, que também liberta. Depois de concluir os cinco anos de curso de Engenharia de Aquicultura, está agora terminando o mestrado na Universidade Federal Fronteira Sul, campus de Laranjeiras do Sul. A UFFS local funciona dentro de um assentamento, o Oito de Junho, em terreno doado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Criada em 2010, a UFFS tem campi em todos os estados do Sul.

“Sou de Querência do Norte, noroeste do Paraná, de um assentamento do MST. Estava trabalhando na brigada do movimento, e uma mulher falou sobre a existência da UFFS. Naquela época, era mais um sonho, a gente não tinha nem sede própria, nada. Foi em 2011. Passei de primeira chamada, e vim para cá. Com o passar do tempo, a gente conseguiu vir para esse lugar, que é o nosso bloco definitivo. Aí consegui terminar a Engenharia e entrar no mestrado.”

A estudante enxerga um futuro promissor na agroecologia. “Meus pais têm produção de arroz orgânico, certificado pela Rede Ecovida. Na Rede Ecovida, não se busca simplesmente um produto orgânico, e sim um produto agroecológico, porque leva em conta essa questão do social. Para mim, poder estar estudando o que os meus pais já faziam na prática foi uma oportunidade de ouro.”

A mestranda explica que agroecologia é ciência. “Propõe pensar os problemas que a gente vive na sociedade, principalmente a intensificação da produção, de forma holística. É conseguir ver o todo do problema, com uma visão macro, para poder discutir, junto com os agricultores, formas de resolver, levando em consideração todo o custo social, ambiental, que isso pode ter para o restante da população.”

Micheli mora em Laranjeiras, dividindo aluguel da casa com amigos. Ela vê na região Sul, ainda, uma forte presença de uma sociedade patriarcal, na qual normalmente é o homem que responde pela família. “Só que, na agroecologia, dentro da Via Campesina, a gente tem uma coisa muito assim: quando a vida está ameaçada, quem sai à luta é a mulher. Porque não havia mulheres no enfrentamento contra o Lula? Porque elas viram que ele colocou comida na mesa, melhorou a educação para os filhos, sentem no dia a dia as melhorias mais do que o homem, que está preocupado normalmente em aumentar o patrimônio da família.”

A senadora Gleisi Hoffmann concorda. “Apesar de muitos avanços, o machismo persiste, e ainda subjuga muitas mulheres, é cultural. O capitalismo é patriarcado. A gente não pode perder um minuto de atenção com a luta. Qualquer coisa, retrocede”, diz, lembrando tanto a reforma trabalhista de Temer, quanto a da Previdência, têm aspectos mais prejudiciais para a condição feminina.

A atuação da oposição, notadamente das parlamentares mulheres, obrigou o governo a recuar. As futuras gerações agradecem e se fortalecem para a luta que nunca termina, em cada momento de seu cotidiano.

Que o diga a agricultora de Nova Erechim Ilse Pierozan Foppa, 47 anos. Filha de pequenos produtores rurais, Ilse tornou-se uma das lideranças entre as mulheres camponesas da região. Coordena o sindicato local de agricultura familiar. Casada há 27 anos, tem dois filhos, duas netas. Uma vida em comunidade.

Maneja a gaita com a mesma habilidade com que maneja a terra. Com o instrumento, anima as mobilizações. “Infelizmente ainda existe muito machismo. É uma batalha árdua contra a violência, pois há mulheres sendo massacradas todo dia por serem mulheres. A mulher é considerada ‘menos’ – na política, na sociedade, na família, nas organizações. Então a gente lutar a cada dia para buscar igualdade entre mulher e homem, na renda, no trabalho, no reconhecimento da sociedade.”

Futuro promissor

Kelly Valmorbida, agricultora familiar de 27 anos, tinha no colo a filha Eloá Maria, de 3 meses e meio. Alheia ao som alto durante o ato em Nova Erechim (SC), num domingo (25), a bebê sorria. “Ela já está acostumada com a luta.”

Assim também é a pequena Sofia Câmara, que completou 8 anos no dia 19 de março. E como presente pediu ao pais, Carolina e Alexandre, conhecer o ex-presidente Lula. Ela dizia ser a única em sua escola, em Chapecó, a defender o petista. Desejo atendido, leu para ele uma carta: “Estou aprendendo cada dia mais sobre a política e me torno cada dia mais sua fã”. E assinou: “#LulaEuConfio e #NãoSouPrincesaSouRevolucionária”.

“A Sofia é uma menina extraordinária mesmo. Ela diz que não quer ser princesa e sim revolucionária”, conta a mãe. “Amamos e cultivamos leitura, valores e princípios que podem ajudar a melhorar mundo. Ela ama Frida Kahlo, Malala, Dilma, Elis, Clarice Lispector. Enfrenta problemas na escola, por isso. Mas acreditamos que estamos no caminho certo. Fico feliz em poder ajudar a plantar uma semente para as mulheres. Temos poderes maiores do que imaginamos.” 

Edição: Redação