Especial | Entre fronteiras, em busca da Terra Sem Males

Indígenas reivindicam território tradicional às margens do Rio Paraná, em áreas que foram tituladas irregularmente

Júlia Rohden e Matheus Lobo

O movimento contra a demarcação de terra indígena em Guaíra e Terra Roxa, no extremo oeste do Paraná, sustenta a ideia de que os indígenas são paraguaios que querem se aproveitar do Brasil, invadindo terras e acessando programas sociais. Essa tese ganhou força no início deste ano com a produção de um dossiê que acusa a Fundação Nacional do Índio (Funai) de fraudar documentos indígenas. As denúncias foram encaminhadas à Polícia Federal (PF) na tentativa de suspender o processo demarcatório.

Um dos responsáveis pelo relatório é o secretário de Segurança Pública de Guaíra, Edson Manoel Auler. Ele conta que as denúncias partiram de uma abordagem corriqueira da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na ponte Ayrton Senna, ligação entre Paraná e Mato Grosso do Sul. “Foram abordadas vans paraguaias e solicitaram a identidade de todos, mas declararam que não tinham. Como não estavam com documento, era transporte irregular, o motorista responsável foi abordado. Quando jogou a responsabilidade no condutor do veículo, ele colocou a mão no bolso e tirou identidades igual um baralho, paraguaias”, descreve o secretário. O episódio teria acontecido em 17 de dezembro de 2017.

Como algumas das pessoas abordadas também tinham Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI), no Brasil, o dossiê foi montado para reforçar a tese dos “índios paraguaios” e denunciar supostas irregularidades da Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai de Guaíra. “Essas pessoas vêm do Paraguai, procuram o escritório da Funai e se auto-declaram indígena. Automaticamente o funcionário da Funai, orientado por alguém, que nós não sabemos se são de ONGs internacionais, quem está por trás disso, fornece o RANI, que é um registro de nascimento indígena. É um documento que você se autodeclara indígena com 50, 60 anos. E o cara da Funai faz isso. De posse do Rani, a pessoa comparece ao cartório de registro de nascimento, e o cartório é obrigado a fornecer certidão de nascimento como naturalidade do município que a Funai bem quis colocar”, sustenta o secretário de Segurança Pública de Guaíra, Edson Manoel Auler.

Em entrevista ao jornal O Presente, de Cascavel, cidade a 140 km de Guaíra, o delegado da PF Marco Smith declarou que os inquéritos devem seguir pelo menos até o fim do ano. A notícia afirma que "uma das alegações dos próprios indígenas, para a demarcação, é de que esse entorno foi habitado pelos seus ancestrais e, por isso, lhes pertencia. Contudo, se os registros forem de fato falsificados, esse argumento cai por terra". O diário é dirigido por Clarice Roman, esposa do deputado federal Alfredo Kaefer (PSL), da bancada ruralista, que foi o candidato mais rico a ser eleito para a Câmara Legislativa em 2014, com um patrimônio declarado de R$ 108,6 milhões.

Às margens do Rio Paraná

Até 1750, quando foi firmado o Tratado de Madri (entre Portugal e Espanha e que substituiu o Tratado de Tordesilhas), não fazia diferença morar na margem esquerda ou direita do Rio Paraná. Lá estavam os indígenas Guarani que sobreviveram à dominação espanhola, no século XVI, e à ofensiva bandeirante, no século XVII.

Alguns anos depois, com a independência de Paraguai (1811) e Brasil (1822), as fronteiras não mais definiriam terras espanholas ou portuguesas, mas de novos países latino-americanos. Demoraram dois séculos, entretanto, para que o oeste do Paraná fosse efetivamente o ocupado. Foi a partir da década de 1940 que o cerco contra os territórios e o trânsito indígena na região do Rio Paraná foi acirrado. De acordo com o Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá-Guarani do Oeste do Paraná, publicado em 2017, a chegada de colonos alterou radicalmente o modo de vida indígena, quando “empresas e proprietários de terra passaram a interagir com organismos e agentes públicos na consecução de interesses privados que atropelaram os direitos dos povos indígenas, com consequências que se fazem sentir de maneira dramática ainda hoje”. O relatório foi produzido pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização que representa os povos Guarani no sul e sudeste do Brasil.

Ainda haveria tempo para mais uma onda de deslocamento forçado dos indígenas do oeste do Paraná. Com a construção da Usina Hidrelétrica Itaipu, o aumento de nível do Rio Paraná fez submergir aldeias e locais sagrados para os Avá-Guarani. A inundação, em 1982, gerou mais uma dispersão das comunidades entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai.

“Antigamente era tudo território guarani, não tinha Mato Grosso, não tinha Paraná, não tinha Paraguai, era tudo só um território guarani. E agora está ficando difícil para nós. Queremos ir para o Paraguai e o pessoal do Paraguai quer vir para cá, mas antigamente não tinha isso, não tinha essas divisas”, expõe o cacique Libório Garcia, da Tekoha Nhemboete, localizada às margens do Rio Paraná, em área que já foi a Ciudad Real del Guayrá e atualmente pertence ao município de Terra Roxa.

É por isso que a geógrafa Teresa Paris, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), entende que as denúncias sobre possíveis irregularidades em documentos indígenas devem ser analisadas no contexto transfronteiriço em que vivem. “Muitos têm parentes no Paraguai, no Mato Grosso do Sul, tem uma lógica de mobilidade que não corresponde exatamente a essas fronteiras nacionais. Muitos tem a mãe, filha, irmã, parente, que mora no Paraguai, que vai para lá e depois volta. Cabe essa mobilidade. Tem um problema dos povos transfronteiriços quando são reconhecidos ou como brasileiros ou como paraguaios e de isso virar um problema para eles, como se ser paraguaio tornasse eles criminosos”, argumenta a indigenista que atua com as comunidades do oeste paranaense desde 2012.

O jovem universitário Gilberto Benitez, guarani da Tekoha Pohã Renda, fala sobre a questão dos documentos e o ‘não-lugar’ a que os indígenas são condenados. “A gente não tem culpa. Quem criou isso foram os brancos, porque índio não tem país. Teria que criar um país indígena pra ficar certo. Porque a gente não vem de um lugar e, para qualquer lugar que a gente for, a gente não vai ter país. Para tratar a gente de estrangeiro tem que criar um país indígena”.

O funcionário da Funai acusado de irregularidades na documentação indígena, pelo dossiê enviado à PF, foi transferido para Chapecó (SC) no final de 2017, após sofrer ameaças. A reportagem tentou entrar em contato com o servidor, mas não foi atendida. Questionada, a Funai informou que “a transferência do técnico obedeceu a trâmites administrativos comuns a qualquer órgão público e, até o momento, não há nenhum processo aberto na Corregedoria da Funai em nome do servidor”.

Ñanderu mostra os caminhos

As ocupações de terra, taxadas de invasões, são definidas pelos indígenas como “retomadas”. O cacique da Tekoha Tajy Poty Leocíneo Gonçalves diz que a decisão de voltar ao território tradicional passa pelos anciãos das aldeias, chamados chamoy. “Se a gente não conhecesse, não estaria aqui. A gente sabe. Ñanderu deu a sabedoria, principalmente, para o chamoy, que fala com o jovem para voltar à tekoha. O branco fala para nós onde pode entrar. Mas não é assim, não. Somos nós mesmos que sabemos.”, relata o cacique.

Há uma casa de reza (opy) em cada tekoha de Guaíra e Terra Roxa. Na Tekoha Y’Hovy, as cerimônias são diárias, começam no pôr-do-sol e se estendem por horas ao longo da noite. A takwa (instrumento percussivo de bambu) marca o ritmo das canções e é tocada pelas mulheres. Os homens tocam a mbaraka (chocalho). Outros instrumentos, como o violão, também podem embalar as rezas.

“Nós continuamos ao longo dos tempos sendo Guarani. É o que nos torna uma sociedade diferente da outra sociedade e que, ao mesmo tempo, faz com que nós sejamos discriminados, por ser diferentes. Mas é uma coisa que nos mantém vivos e fortes, porque é dentro dessa cultura que estamos em sintonia com Ñanderu. E é com tudo isso que estamos vivos, lutando, resistindo contra tudo aquilo que o branco trouxe de ruim. Tentando nos exterminar e apagar nossa língua e cultura. Mesmo assim, continuamos Guarani. Mesmo vivendo no meio da cidade, mesmo observando as mudanças, o surgimento de novas tecnologias, nós continuamos Guarani. Mantemos nossa cultura e nossa religião firmes”, afirma o cacique da Tekoha Y’Hovy Ilson Soares.

Atualmente, as cerimônias acontecem em aldeias cercadas por estradas, plantações de milho e soja. Décadas atrás, no entanto, os Avá-Guarani rezavam em locais sagrados do Rio Paraná, junto às Cataratas do Iguaçu e o Salto das Sete Quedas, em Guaíra, que submergiu em 1982 com a construção da Usina Itaipu. As Sete Quedas foram as maiores cachoeiras do mundo em volume d’água.

A vice-cacique da Tekoha Y’Hovy Paulina Martines registra (em depoimento para o livro Os Avá-Guarani no Oeste do Paraná) que, nestes locais, seus antepassados se conectavam à Terra Sem Males (Yvy Mara E’y), uma terra divina, onde se transcendem os pesos da existência humana e que não exige uma condição pós-morte. “Em Guaíra tinha a Sete Quedas, e debaixo da queda do meio tinha uma caverna, onde o barulho era completo, não era só o barulho da takwa que se ouvia, não era só o mbaraka miri que se ouvia, não era só o cântico, era os três juntos, 24h por dia, de dia, de noite. [...]. Então ali era o local que levaria os Guarani até o yvy mara e’y. Então as pessoas indígenas iam lá, entravam nessa caverna não para iniciar o ritual, mas simplesmente para acompanhar. E ali também os rezadores, os mais velhos, recebiam mensagens de Deus (Ñanderu), e dali eles saiam e repassavam essa mensagem pro resto do grupo, pro resto das aldeias inclusive, então ali era contato direto com Ñanderu”.

A demarcação da terra indígena Guasu Guavira, que englobaria as comunidades Avá-Guarani de Guaíra e Terra Roxa, é considerada um passo em direção à Terra Sem Males. “O branco fica estudando para fazer a lei para melhorar o país, mas parece que cada vez mais fica pior. Contra as águas, contra o mato, cada vez pior. A gente sempre faz reza com nosso chamoy pra acontecer essa demarcação, para a gente manter a cultura indígena, para a gente viver a Terra Sem Males”, relata o jovem Leocídio Medina, da Tekoha Yvyraty Porã.

Titulação indevida

Além de produzir as denúncias de irregularidades de documentação, com o objetivo taxar os indígenas de “paraguaios”, o movimento anti-demarcação se declara defensor de pequenos agricultores que possuem títulos de posse de boa fé.

Diferentemente dos conflitos fundiários da região centro-oeste, em Guaíra e Terra Roxa, os produtores rurais que podem ser atingidos pela demarcação das terras realmente não são grandes latifundiários. De acordo com Rita de Cássia Ribeiro, técnica do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), 84% das propriedades rurais de Guaíra têm até 80 hectares (ou quatro módulos rurais), o que, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), as classifica como pequenas.

Além de não serem grandes propriedades, a maioria das certidões de posse são de boa fé, ou seja, não são terras griladas ou papéis fraudulentos. O problema originário foi a titulação de terras devolutas (áreas convertidas ao patrimônio da União, com a proclamação da República) pelo governo do Paraná no contexto de avanço ao oeste, sob a regência de companhias colonizadoras privadas a partir da década de 1940. Essas terras, além da ocupação tradicional guarani, estão em região fronteiriça e, por isso, não poderiam ter sido repassadas a pessoas ou empresas privadas.

Como a Constituição Federal prevê apenas indenização de benfeitorias (construções), no processo de demarcação de terra indígena, na prática, os produtores rurais poderiam ficar sem terra. Apenas os proprietários de terras de até um módulo rural (20 hectares, o que equivale a um campo de futebol) poderiam ser reassentadas pelo Incra como clientes da reforma agrária.

A procuradora do Ministério Público Federal do Paraná (MPF/PR) Hayssa Jardim reconhece que a situação é delicada. “Há esse choque: pessoas que compraram as terras de boa fé e agora se vêem na possibilidade de perder suas terras, em tese sem indenização. O Ministério Público concorda que deveria ter indenização, mas a constituição não prevê isso”. Ela advoga que o governo do estado do Paraná se responsabilize pela titulação indevida do passado. “Desde as primeiras constituições, toda área de fronteira é área da União. O Estado loteou terra da União, vendeu, doou, enfim, e esses títulos foram sendo repassados. Se houvesse essa mea culpa, de chamar a responsabilidade e indenizar, diminuiria um pouco a tensão aqui”, acredita a procuradora federal.

O antropólogo Diogo de Oliveira, técnico da Funai que acompanhou parte do processo demarcatório, também defende a indenização dos títulos de boa fé. Ele ressalta a mediação que tem sido feita pela Justiça Federal de Guaíra. “Eu acho que tem que ser pago mesmo. No caso de Guaíra, tem um precedente muito interessante em que a Justiça Federal está intervindo. Chamou Ministério da Justiça, Itaipu, prefeituras, governo do Estado, índios, Ministério Público e os ocupantes, donos de imóveis onde os índios estão dentro, e começou a fazer uma proposta de começar a pagar. Indeniza, desapropria, cada uma paga uma parte, cria um fundo do estado, arrecada dinheiro da Itaipu, do município, pega royalties e vai indenizando”, relata o servidor da Funai. Ele ainda lembra que “a Justiça está tentando fazer isso já que a PEC 71 não foi para frente”. A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 71 permitiria a indenização, pela União, de títulos de boa fé em processos como o de Guaíra e Terra Roxa. Em 2015, a PEC passou por consenso no Senado Federal e, desde então, aguarda análise da Câmara dos Deputados.

O assessor para Assuntos Fundiários do governo do Paraná, Hamilton Serighelli reconhece a problemática e afirma que a vontade é de “achar uma solução que consiga diminuir aquela tensão na região o mais rápido possível”. Segundo ele, a saída envolveria uma série de instituições públicas, especialmente federais. “Tem que ser uma solução que todo mundo participe dela para que, depois de cumprido um acordo, ela possa ser feita. Então tem que ter muita tranquilidade, muita cautela, e o governo federal e a Itaipu Binacional tem um papel importantíssimo para ajudar a resolver essa situação”, declara Serighelli.

Apesar da longa espera pela demarcação, os indígenas também buscam uma solução dialogada com o poder público. “A gente não tem que brigar [com os agricultores], a culpa é do governo que vendeu toda a área. E com certeza você não tem assinatura indígena de que vendeu a terra pra você. A gente não tem que brigar, a gente tem que apertar o governo para dar um jeito pra ninguém sair perdendo”, considera Gilberto Benitez, que hoje mora em Marechal Cândido Rondon, a cerca de 60 km de Terra Roxa, onde está sua Tekoha Pohã Renda.

Enquanto a Funai não publica os estudos demarcatórios e o Estado não avança em alternativas de indenização, os Avá-Guarani seguem em situação precária e expostos à violência. No entanto, a defesa de suas terras ancestrais também continua. “Tem que permanecer aqui, mesmo com a situação que a gente vive, tem que lutar para permanecer na terra em que estamos agora. Infelizmente, a gente já perdeu no passado e não quer perder de novo”, reforça o cacique Ilson Soares, da Tekoha Y’Hovy.

Leia as cinco reportagens do especial Avá-Guarani: Território em disputa

Este especial foi produzido com apoio do Edital de Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil