EDUCAÇÃO

Indígenas se organizam para criar licenciatura especializada em São Paulo

Quase dois mil estudantes nas aldeias não têm acesso a uma educação que contemple sua cultura e tradições no estado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Grupo de Trabalho “Por uma licenciatura indígena no Estado de São Paulo” se reúne periodicamente na Unifesp
Grupo de Trabalho “Por uma licenciatura indígena no Estado de São Paulo” se reúne periodicamente na Unifesp - Mayke Toscano / GEMT

Dentro das divisas do estado de São Paulo, estima-se, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, que vivam 41.784 indígenas, distribuídos em aproximadamente 40 terras, das quais 14 são oficialmente reconhecidas e demarcadas pelo governo. A maioria desses homens e mulheres pertence às etnias Krenak, Kaingang, Guarani Mbya, Terena e Tupi Guarani.

Para cada um destes territórios, existe também uma unidade escolar especial, atendendo um total de 1,8 mil alunos de ensino fundamental, médio e EJA (Educação de Jovens e Adultos). A Constituição Federal garante, desde 2009, “normas próprias e diretrizes curriculares específicas, voltadas ao ensino intercultural e bilíngue ou multilíngue, gozando de prerrogativas especiais para organização das atividades escolares [nas aldeias indígenas]”.

Essa norma, instituída por decreto do ex-presidente Lula em 2009, tinha como objetivo garantir não só a “integração” dos povos indígenas, mas também seu direito de manter e reproduzir sua cultura original através da educação. Ainda assim, líderes indígenas e especialistas no assunto apontam a insuficiência de uma formação capaz de preparar os professores que lecionam nas aldeias paulistas.

Para ajudar a reverter esse quadro, surgiu o Grupo de Trabalho “Por uma licenciatura indígena no Estado de São Paulo”, que se reúne periodicamente na Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), tem elaborado plano para a criação de um curso inédito nas universidades públicas do Estado de licenciatura indígena.

“A gente vem já há muitos anos lutando pela formação dos professores indígenas no estado de São Paulo. Do total de 360 professores, mais ou menos 90% não tem formação específica, só ensino médio”, diz Cristine Takuá, professora na Aldeia Rio Silveira, Litoral Norte de SP.

Valéria Macedo, professora da Unifesp e coordenadora do Grupo de Trabalho, ressalta o atraso de São Paulo no assunto. "Boa parte dos estados do Brasil que têm uma população indígena significativa já tem licenciaturas interculturais para que os professores possam atuar nas aldeias".

A luta pela criação da licenciatura

Takuá explica que, através do Fórum de Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp), os indígenas se juntaram e começaram a entrar em contato com uma série de universidades públicas, como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e Unifesp, para propor a criação do curso. Apesar da boa recepeção, o projeto foi abrigado pela Unifesp, através da criação do Grupo de Trabalho.

“Quem tá protagonizando todo esse processo são os indígenas, que têm lutado pela implementação dessa licenciatura. Eles vieram buscando alianças com diferentes universidades públicas que pudessem implementar essa licenciatura, e tiveram uma resposta muito positiva por parte de todas essas universidades. O que nós estamos fazendo é apenas atender ao chamado deles”, conta Takuá.

Marta Amoroso, professora de antropologia na USP e participante do Grupo de Trabalho, reforça a importância do projeto dentro do contexto da educação do estado. “Representa para nós uma renovação das nossas epistemologias, um processo de crítica, de pensamento descolonizado. Para quem sabe, em breve, termos essas lideranças indígenas junto com a gente", analisa Amoroso.

Encontro dos povos Guarani na Aldeia Rio Silveira, onde Cristine Takuá reside e leciona (foto: Prefeitura de Bertioga)

Preocupações

Antes de anunciar a transferência da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o recém-criado ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob o comando da pastora Damares Alves, o presidente eleito Jair Bolsonaro disse à jornalistas: “Por que no Brasil temos que mantê-los [os indígenas] reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?"

A postura de Bolsonaro preocupa, mas os integrantes do projeto reafirmam sua disposição de levar adiante a luta pela criação do curso. Cristine explica que, apesar das dificuldades, uma estratégia já está sendo traçada: "Nós fizemos uma reunião na reitoria da Unifesp para saber quais vão ser as articulações que teremos que fazer para viabilizar esse curso, dada a situação deste novo governo. O Ministro da Educação indicado é péssimo no sentido de entendimento do que é uma educação brasileira, e ainda mais de uma educação escolar indígena".

"A gente está muito apreensivo [e não sabemos] se essa licenciatura vai conseguir se estabelecer. Mas, no que depender dos professores indígenas e universitários já engajados nessa luta, vai ter muita pressão para que a gente possa fazer valer esse direito garantido pela Constituição e pela Lei de Diretrizes e Bases", diz Macedo.

Próximos passos

As discussões acerca da licenciatura se iniciaram em agosto deste ano. Foram realizados dois módulos do projeto e, até novembro de 2019, devem acontecer mais três encontros, todos na Unifesp. O objetivo dos indígenas e pesquisadores envolvidos é elaborar uma proposta curricular robusta, para então iniciar as tratativas formais de criação do curso nas universidades públicas do estado.

Valéria Macedo explica: “O terceiro módulo vai ser mais voltado para interdependência entre docência e pesquisa, no quarto falaremos sobre as grades curriculares, e o último módulo vai ser mais político, voltado para fortalecer as alianças entre as universidades, as secretarias de educação estaduais, municipais, ONGs etc”. 

“Em torno da escola da aldeia se constroem projetos de futuro para as comunidades indígenas. Se a escola tiver esse conteúdo diferenciado que vem sendo proposto ela vai ter um papel muito importante”, finaliza a professora Marta.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira