Direitos Humanos

Dois anos sem Dom Paulo Evaristo Arns, o Cardeal do Povo

O catarinense é reconhecido pela defesa dos mais pobres e por ter enfrentado a ditadura militar

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
D. Paulo em 1982
D. Paulo em 1982 - Marcel Antonisse

A morte do cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns completa dois anos nesta sexta-feira (14). O “Cardeal do Povo”, como era conhecido, dedicou a vida à defesa dos mais pobres e à luta pelos direitos humanos e pela democracia. Durante o período da ditadura militar (1964-1985), Arns se destacou pela coragem de denunciar a tortura dos anos de chumbo e celebrar o culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog, jornalista e militante comunista assassinado nos porões do regime.

Paulo Arns era natural de Forquilhinha (SC), nascido em 1921 como o quinto dos treze filhos em uma família de pequenos agricultores de ascendência alemã. Cinco desses irmãos e irmãs fizeram vida na Igreja. A médica e pedagoga Zilda Arns, morta em 2010, vítima do terremoto que destruiu a capital haitiense de Porto Príncipe, é sua irmã mais conhecida.

Em 1945, aos 24 anos, Arns é nomeado padre em Petrópolis, no Rio de Janeiro, de onde parte, alguns anos depois, para estudar Línguas Clássicas e Filosofia Cristã na Universidade de Sorbonne, em Paris. De volta ao Brasil, o catarinense leciona por algum tempo nas cidades paulistas de Agudos e Bauru. Dali ele retorna a Petrópolis, onde inicia seu trabalho de pároco, junto aos mais pobres.

No ano de 1966, dom Paulo é nomeado bispo por decisão pessoal do papa dom Paulo VI, de quem se aproximara em uma viagem à Roma, alguns anos antes. A partir de então, Arns passa a atuar mais firmemente na resistência à ditadura. Em episódio marcante desse período, ele visita frei Tito e frei Betto no Presídio do Carandiru e constata que haviam sido torturados. 

Em 1970, Arns se torna arcebispo da cidade de São Paulo, e passa a aplicar as mudanças doutrinárias do Concílio Vaticano 2º, convocado 18 anos antes pelo Papa João XXIII. 

Sua opção pelos oprimidos também fica clara quando dom Paulo decide vender o imponente Palácio Episcopal da Cidade de São Paulo, usando o dinheiro arrecadado na construção de pequenas paróquias e centros comunitários nas periferias da cidade.

Como forma de amparar perseguidos políticos e suas famílias, nasce em agosto de 1972, por sua iniciativa, a Comissão Justiça e Paz. Será esta mesma Comissão a responsável por publicar o livro de denúncia - rejeitado por editoras comerciais - em que o então procurador Hélio Bicudo relata a atuação dos Esquadrões da Morte em São Paulo.

Em 1973, dom Paulo realiza uma missa solene em memória de Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia sequestrado e assassinado sob tortura nos porões do DOI-CODI. 

Dois anos depois, ele novamente realiza, na Catedral da Sé, um culto inter-religioso em memória de outro perseguido político: o chefe de redação da TV Cultura e professor do Departamento de Jornalismo da USP, Vladimir Herzog. 

Culto inter-religioso em homenagem a Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura militar (foto: Instituto Vladimir Herzog)

Apesar de todos os esforços do Secretário de Segurança Erasmo Dias para barrar a manifestação, mais de 8 mil pessoas compareceram ao culto ecumênico, fazendo daquele episódio um dos mais simbólicos na resistência à ditadura. 

O culto também marcou - com um gesto sutil - a contestação aberta à versão oficial da morte, pela qual Vlado teria se suicidado em sua cela: na doutrina judaica os suicidas são enterrados fora dos cemitérios religiosos, mas Herzog foi sepultado no cemitério Israelita do Butantã. 

Junto do rabino Henry Sobel e do pastor Jaime Wright, em 1979 o Cardeal do Povo cria o projeto Brasil: Nunca Mais, cujo objetivo era documentar silenciosamente os crimes da ditadura. Seis anos depois, eles haviam sistematizado mais de mil páginas de 707 processos do Superior Tribunal Militar, o que resulta em uma das maiores contribuições ao registro dos crimes de Estado cometidos desde 1964.

D. Paulo seguiu enfrentando as violências do regime militar e, atravessados os anos de chumbo, tornou-se um dos principais símbolos da luta pela redemocratização no país. 

Sofreu com os ataques da ala conservadora da Igreja Católica, que em meados da década de 80 conseguiu, com apoio do Papa João Paulo II, repartir a Arquidiocese de São Paulo em várias regiões administrativas, diminuindo, assim, a influência do cardeal. Mas então sua mensagem e sua reputação já estavam sedimentadas. Em 1998, ele renuncia ao cargo por conta da idade, e então torna-se cardeal emérito da cidade de São Paulo. 

Dom Paulo seguiu pregando o combate às injustiças e a defesa dos mais necessitados até sua morte, no hospital Santa Catarina, em dezembro de 2016. 

Edição: Mauro Ramos