SOM DA PERIFERIA

Coletivo Maloqueria movimenta a cena do hip hop no Nordeste

Grupo de artistas fazem composições, shows e produção audiovisual de forma coletiva e regionalizada

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Nordeste é o Topo 2 em João Pessoa. Andrézao GDS, Peter, SH, Atalaia e Fidel.
Nordeste é o Topo 2 em João Pessoa. Andrézao GDS, Peter, SH, Atalaia e Fidel. - Divulgação

O coletivo de hip hop Maloqueria surgiu, inicialmente em Fortaleza, em 2014, e expandiu sua atuação com o objetivo de fortalecer a cena cultural do segmento no Nordeste, estabelecendo intercâmbios e vínculos entre os artistas da região. Foi assim que nasceu, em 2017, os eventos Nordeste é o Topo 1 - realizado em Natal - e Nordeste é o Topo 2 - realizado em João Pessoa. Trata-se de reunir artistas de coletivos de hip hop para realizar encontros, shows e gravação de clips de maneira conjunta e regionalizada. A ideia ganhou força e o BdF-PB foi entrevistar Andrézão GDS, um dos idealizadores da iniciativa, para explicar e apresentar o processo criativo que esse grupo vem desenvolvendo pelas capitais nordestinas.

Bdf -PB: Aonde e como surgiu a ideia de fazer Nordeste é o Topo?

Andrézão GDS [Nordeste é o Topo] - Nordeste é o Topo foi uma ideia do Andrézão GDS, que é um dos fundadores do Coletivo Maloqueria, em Fortaleza. O Maloqueria surgiu em 2014, no Ceará, como um coletivo de jovens das periferias da cidade que se uniram com o objetivo de levar o hip hop cearense pro palco dos maiores festivais, e também participando ativamente das lutas junto aos movimentos sociais. Nessa trilha revolucionária, o grupo foi crescendo e se apresentando nos principais festivais cearenses e com o tempo alguns integrantes foram se afastando e outros artistas de outros lugares foram se juntando, o que resultou em novas formações e parcerias que aconteceram durante vários encontros e intercâmbios culturais. Em 2017, a gente colocou como prioridade se especializar em produção audiovisual e fortalecer a luta com outros coletivos de outras cidades, iniciando uma série de Cyphers intitulada como Gueto Heroes. A partir de Gueto Heroes #1, em João Pessoa, passamos a pensar as coisas de uma forma regional, incluindo todos estados do Nordeste, e foi com o trampo solo do Andrézão GDS, que conseguimos ir mais longe e a partir dessas circulações que ele andava fazendo quase ininterruptamente, foi possível conhecer melhor os trabalhos da galera de outras cidades e poder enxergar realmente quem tinha afinidade com essa construção que vinha rolando. Nosso grupo tinha dois objetivos claros: fortalecer a cena nordestina e também estabelecer vínculos com outras regiões, afim de abrir caminhos e laços pra futuros intercâmbios culturais, foi então que nasceram no final de 2017 os conceitos de Nordeste é o Topo e Nova Vanguarda. Nordeste é o Topo #1 eu decidi fazer em Natal, pois o Rio Grande do Norte era um dos estados onde a gente vinha fazendo shows e conquistando um público mais expressivo e onde as parcerias também estavam já mais maduras devido aos trabalhos anteriores que o Maloqueria Nordeste já tinham feito por lá. Tudo isso permitiu que se formasse uma equipe pra produzir o primeiro episódio da série. Hoje o Coletivo Maloqueria é um grupo que abraça vários projetos de rap na região e conta com apoiadores de vários estados do Nordeste. E como todos os demais coletivos com os quais lutamos lado a lado, enfrentamos todo tipo de sabotagem, boicote e preconceito. Mas nada disso nos impediu de continuar a nossa luta, e Nordeste é o Topo #2 rolou novamente em João Pessoa, como uma resposta a todo esse descaso que o hip hop nordestino sofre por parte da opinião pública e o desprezo da sociedade em geral.

Andrézão em Recife Resiste / Foto: Pedro Leão.

Qual a mensagem diferente que o hip hop tem para passar para a sociedade?

Bom, acho que o rap Nordestino verdadeiro é sinônimo de subversão. Então é pelo rap de guerrilha que eu vou falar, pois certamente o que eu vou dizer não representa a maioria dos grupos de hip hop da atualidade. Então penso que o verdadeiro hip hop não se vendeu e não se corrompeu. Só por isso nós todos já somos vencedores. É um movimento então de vencedores, não de perdedores. Acho que isso que nós temos de diferente dos outros movimentos, onde quase todos artistas, dos mais variados estilos, estão de joelhos para a indústria e para a burguesia. É só no hip hop que eu vejo um movimento revolucionário legítimo acontecendo. Nada disso que se vende hoje como empoderamento ou representatividade, eu engulo. Não há representatividade quando existe um substituto. Esses políticos que se vendem como representantes das minorias, mas que vivem reunidos com lobbystas da indústria bélica, e que servem aos interesses dessa mídia fascista. Ainda que eles jurem que são de esquerda, nós temos uma visão crítica sobre isso que nos dizem, não siga nenhum desses impostores, a democracia só é verdadeira, quando for direta. O poder ao povo começa quando as pessoas deixam de seguir esses líderes cagões, daqueles que quando o barco afunda pulam fora, pois é, e aí passarem a agir por conta própria, se organizando e revolucionando, primeiro de tudo, suas próprias vidas. Esse modelo de militante universitário, que paga de rebelde, mas só tem como objetivo de vida arrumar um emprego numa multinacional e enriquecer, ao meu ver, não são pessoas habilitadas pra falar em nome do socialismo ou qualquer revolução que seja. É o tipo de gente que vai pra Israel e não enxerga o genocídio da Palestina, é o tipo de gente que se cala para a invasão imperialista, e que chama Maduro de ditador. É uma esquerda que a direita ama. As relações entre essa falsa esquerda com a extrema direita precisa ser exposta urgentemente, pois acredito que nossa sobrevivência depende disso. Pros jovens das grandes cidades hoje, o Rap é o que foi o Punk Rock nos anos 80. Talvez a única forma possível de o povo se expressar e denunciar o imperialismo e o fascismo na nossa sociedade atual. E claro, correndo risco de vida, afinal, dependendo do tipo de situação que você possa se envolver, não é bom ser reconhecido como alguém ligado ao hip hop, pois nas secretarias segurança pública, o modelo de marginal apontado por eles como alvo, somos justamente nós. Não acredito que eles estejam planejando nos prender por exemplo.

O que vocês estão achando sobre o discurso de Bolsonaro sobre as periferias?

Bom, nada do que aconteceu nesse primeiro mês de governo me surpreende. Já tem um tempo que a agenda deles vem ditando o que se pensa, o que se debate e até as possíveis reações para cada questão. O discurso dele sobre as periferias é justamente falar e dizer tudo aquilo que os tucanos passaram anos tentando esconder: a diferença dele para toda velharia de antes dos governos do PT é só essa. Eles, agora com apoio da CIA e das agências de espionagem de Israel, estão fazendo no Brasil o mesmo que já fizeram na Líbia, no Iraque, no Afeganistão. Na Síria eles tentaram. A mídia fez de tudo para jogar a população contra o Assad, mas a verdade é que o povo de lá resistiu. Agora eles tão na América do Sul, já estão controlando o Pré-Sal e esse governo atual se sustenta apenas no apoio para essa invasão imperialista na Venezuela. Acho que é importante observar toda a composição desse governo, pois é visivelmente uma operação de guerra da CIA, cada peça, cada marionete prestando seu serviço afim de distrair a massa e reduzir o debate a um nível de imbecilidade. Cada notícia no jornal, nos sites, toda uma falsa disputa onde a Globo finge estar do lado dos progressistas contra os conservadores da Record, não passam de um teatro pra manter as massas na inércia. Quando na verdade esse governo é o governo resultado do Golpe da Globo, se os evangélicos pegaram carona no golpe, isso não diminui a responsabilidade da família Marinho, que sempre foram representantes do nazismo no Brasil. Desde a eleição de 2014 que eles quase ganharam com fake news também. Ai em 2016 já tinha sido um massacre com os fascistas tomando as prefeituras quase todas, e o massacre contra o PT nas fake news já estavam lá. Agora em 2018 eles já contavam com todo o aparato de guerra, se sentiram confiantes pra se eleger com discursos nazistas, copiaram a agenda de Goebbels e seguiram a risca. As promessas de genocídio que já eram uma realidade, certamente irão se cumprir. A promessa de campanha deles foi exterminar qualquer trabalhador que não se submeta ao regime. Então se alguém espera menos que isso dessa gente, eu diria pra essas pessoas acordarem, pois não há mais tempo. Ou o povo toma uma atitude agora, e as nossas lideranças de esquerda parem de agir como covardes, ou não teremos mais o nosso país. Me parece muito conveniente pra alguns políticos esperar 4 anos de genocídio fascista para depois se eleger e pensar que o extermínio vai parar por causa de uma eleição.

O que é a cultura na sua opinião?

Vejo muitos debates sobre isso, mas realmente eu considero cultura tudo que não seja produto do imperialismo. Cultura só pode ser a expressão legítima de um povo. Então respeito todas as culturas, religiões, etnias. Minha luta é justamente contra o fascismo que tenta impor supremacia, algo que é totalmente inaceitável num país como o Brasil. Mas eu não respeito nada do que é vendido nessa mídia, na TV, nas rádios, nos jornais, quase tudo é lixo. Até mesmo boa parte da mídia que se diz ''independente'', e na verdade é financiada por empresas estrangeiras. Então pra mim, quando surge um movimento falso de esquerda, como temos hoje no Brasil, uma esquerda burguesa, egoísta, individualista, eu percebo que temos mais de um inimigo. Se já não basta todo o poder das instituições, agora temos falsos líderes transformando os jovens brasileiros em verdadeiros imbecis. Consumidores da cultura pop lixo da mídia, totalmente alienados na programação mental reacionária. Então eu não confio em nada que vem da mídia, tanto da tradicional, como dessa mídia dita independente, mas que só contribuiu pra diminuir o nível do debate nacional. Transformou a esquerda num laboratório freak, numa indústria de vaidade, que na verdade só gera benefícios e lucros para as grandes empresas, todas capitalistas e patrocinadoras do golpe. O maior inimigo de todos artistas independentes hoje, além do governo, claro, é a mídia Ninja e são poucos que conseguem ter noção disso. Os caras que mandaram a Dilma tomar no cu em 2014, tão hoje pagando de heróis nas redes sociais, e nas mídias, ainda posam como defensores das minorias, falam como se fossem parte de uma suposta resistência, mas o escritório deles é no Leblon e é o tipo de gente que eu não vejo nunca no fronte. Nunca eles estão num show de rap, num evento onde os artistas não sejam brancos. Então quando os liberais falam que não existe mais esquerda e direita, talvez eles estejam falando a verdade, pois as empresas compraram praticamente toda a esquerda, a ponto de tudo que se vê hoje como esquerda seja, na verdade, falso. Os verdadeiros revolucionários estão censurados e o Coletivo Maloqueria é justamente a nossa forma de fazer essas vozes ecoarem.

Coletivo Maloqueria em Fortaleza / Foto: Artur Luz.

O que falta para o hip hop receber mais incentivo?

É uma pergunta bem complexa. O que mais o hip hop de quebrada carece é de público, difusão e produção. A galera se ilude muitas vezes ao se comparar com artistas pop que usam o hip hop como temática, mas que não são frutos do movimento hip hop. E nisso muitos acabam se frustrando. Talvez seja falta de visão. Muitos entram no rap por qual motivação? Eu não posso falar tanto pelos outros e acho que posso falar mais por mim. Eu nunca entrei no rap com a intenção de enriquecer. Nunca eu vi isso como uma possibilidade também. Se alguns enxergam e buscam isso, boa sorte. Eu me sinto melhor sabendo que o que eu conquistei foi com minhas próprias forças e lutas e com a colaboração de pessoas que tem um envolvimento real com o que eu canto e vivo. Se para muitos, o rap é uma forma de desenvolver um personagem, a gente vai no sentido oposto. Não há distinção entre o que vivemos e o que cantamos. E no fim, levantar o hip hop, as festas, produzir os vídeos dos nossos manos e projetar esses trabalhos e possibilitar novos acontecimentos, já é gratificante o bastante. Acho que vamos cumprir nossa missão quando o público local nos abraçar de vez. Quando essas modinhas todas passarem e essa galera finalmente se ligar que a vida real é bem diferente das festas de playboy que estão bombando hoje e que precisamos sim nos dedicar juntos a construir um movimento nosso, que garanta dignidade, que gere consciência, que seja um instrumento de empoderamento para os jovens poderem realmente pensar por conta própria. Não existe cena local sem público. E para nós ainda tem o agravante que a mídia, de todas as formas possíveis, sempre sabotou essa construção. Seja criminalizando o movimento com esses programas policiais horrorosos, seja monopolizando a programação com outros estilos, impondo uma verdadeira censura, onde só artistas playboys têm espaço. Então que chance a gente teria de enriquecer nesse cenário? Se a sua meta é enriquecer fazendo rap, a sua carreira tende a ser mais curta também. Se o único indicador de sucesso pra você é o dinheiro na sua conta, o rap certamente vai te deixar sem chão.

Quais são as referências do ‘Nordeste é o Topo’?

Bom, eu acho que a referência somos nós mesmos. Nordeste é o Topo é resultado do que é a cena de rap no Nordeste. Ela tem a obrigação de ser fiel a essa história. A trajetória dos que saíram do nada e se levantaram no rap e que conseguiram se destacar numa cena que já é tão inacessível. As referências são o rap Nordestino, as gerações anteriores a nossa, e todos os manos e minas da geração atual, nós somos referência um pro outro, cada um bebe em outras fontes também, alguns buscam no rap estrangeiro, outros buscam uma veia mais raiz nordestina, outros querem beber na fonte da música negra tradicional, outros mesclam com a música jamaicana, com rock. Então Nordeste é o Topo é massa porque permite a fusão de vários estilos de rap nordestino, mas todos com essa origem legítima. Somos uma galera que se conheceu nas batalhas, nos festivais independentes, nas ocupações, enfim, sempre no fronte e nas lutas contra o fascismo da burguesia. Eu poderia citar como referências pra nós muitos mestres de fora do Rap como Paulo Freire, Karl Marx, Fidel Castro, Che Guevara, Hugo Chávez. Talvez eles nos representem melhor do que muitos desses artistas que hoje ocupam a mídia e vendem essa ilusão de um capitalismo humanizado e a meritocracia. Eu estou aqui pra me opor totalmente a esse tipo de artista impostor, que se aproveita da cultura hip hop pra fins individualistas. Tacar fogo no eixo mesmo. Pra nós é revolução ou nada. Ao contrário da maioria dos grupos, a gente continuou exercendo união e respeito dentro do movimento. Agora começamos a colher alguns frutos disso. Na minha geração de MC's, por exemplo, ainda tinham poucas minas comparadas com a ruma de moleque rimador, as poucas que tinham já mostravam que era questão de tempo mesmo. Agora, em 2019, vem a colheita, com uma safra de minas criadas em batalhas e que tão quebrando no trampo autoral. Em breve esses trampos começam a sair no nosso canal e já mostram um amadurecimento do movimento como um todo, então eu falo disso com orgulho, porque é um grande esforço coletivo envolvendo muita gente de várias áreas, pra mudar a história das quebradas de fato.

Edição: Cida Alves