Coluna

O terror das ruas: quando a Justiça ouve o "clamor das ruas" e não a Constituição

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Estátua de Têmis, deusa-guardiã dos juramentos dos homens, na fachada do Supremo Tribunal Federal
Estátua de Têmis, deusa-guardiã dos juramentos dos homens, na fachada do Supremo Tribunal Federal - Filipo Tardim via Wikimedia Commons
Não se pode suplantar a racionalidade da Constituição democraticamente elaborada

Era abril de 2018, diante da iminência da votação de um pedido de habeas corpus que beneficiaria Lula, como tantas vezes já havia dito em público, o ministro Luis Roberto Barroso renovou seu pensamento: "É preciso interpretar a constituição em sintonia com o sentimento social". O clamor das ruas -- expressão conhecida do ministro Barroso! --, conceito ao qual se apega para fundamentar seus votos, não escapa da história. Em 1937, o Tribunal do Trabalho do Reich alemão, no que pese a legislação de proteção ao trabalhador, decidiu que tais leis não se aplicavam ao trabalhador judeu sob o argumento de que “...o reconhecimento dos princípios raciais representados pelo NSADP [Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei - Partido Nazista] encontra inequívoca penetração entre as amplas camadas da população, mesmo que não pertencentes ao Partido”.

Em 1941, Ernst Fraenkel, advogado e jurista de origem judia escreveu uma obra que seria reconhecida como elementar para quem quisesse conhecer a complexidade da aplicação da lei e o funcionamento do sistema judicial durante o nazismo alemão. A obra chama-se “Der Doppelstaat”, que recebeu primorosa publicação em inglês logo após a saída de Fraenkel da Alemanha nazista: “The Dual State – A Contribution to the Theory of Dictatorship” [O Estado Dual – Uma contribuição para a Teoria da Ditadura, em tradução livre]. O “estado dual”, como ficaram conhecidos livro e tese central nele contido, comenta a decisão acima do Tribunal do Trabalho, com as seguintes palavras de Fraenkel: “Quando o mais elevado tribunal se rende ao terror das ruas, não surpreende que as instâncias inferiores não resistam às tendências antijudaicas do estado de prerrogativa”. Naquilo que Barroso viu clamor das ruas, Fraenkel adverte que se trata, na verdade, de “terror das ruas”, produzido por uma população em verdadeira histeria moralista, contra um grande inimigo assim escolhido. Para a nova forma de concepção da Alemanha, a legalidade consistia apenas na tentativa de se fundar uma constituição sem a substância de um fundador, que poderia ser “um monarca pela graça de deus, o povo, um líder, um mito”.

Se se mantiver a previsão anterior o recesso forense, o Supremo Tribunal Federal deverá julgar a Operação Lava Jato pela primeira vez após os vazamentos do The Intercept Brasil. Terá também a oportunidade de determinar à Polícia Federal que ateste, ou não, a autenticidade dos diálogos amplamente divulgados desde 9 de junho de 2019; providência fortemente recomendada pela Força Tarefa da Operação e por seu antigo juiz, hoje Min. da Justiça Sérgio Moro. Em outras palavras: o STF e seus integrantes terão nas mãos a oportunidade de confirmar se cedem ao “clamor das ruas” ou começam a recuperar a Constituição a que tantas violações permitiram.

A chincana perpetrada pelo coordenador da Força Tarefa de Curitiba contra membros dos STF, valendo-se de suas amizades institucionais para pedir investigações informais contra os Ministros do Tribunal, já o teria posto na cadeia em qualquer país constitucionalmente civilizado do mundo. E já que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol espelham-se tanto nos Estados Unidos, é bom lembra-lhes que a advogada do FBI Lisa Page e o agente Peter Strzok foram afastados de investigações do mesmo FBI apenas por trocarem mensagens a favor de Hilary Clinton, quando investigavam a campanha de Donald Trump. Por aqui, delegados da Polícia Federal, plenamente ativos até hoje e sempre protegidos pela Força Tarefa e pelo então juiz Sérgio Moro, fizeram aberta campanha política nas suas redes sociais contra Dilma Rousseff e a favor de Aécio Neves, sem que uma simples penalidade de advertência fosse aplicada.

Agora se sabe com clareza que a instância inferior no Brasil, ao contrário do que se dava no estado dual estudado por Fraenkel, chantageava a instância superior na clandestinidade. Sem atribuição formal para investigar ou desencadear investigações contra membros de tribunais superiores, a Força Tarefa de Curitiba recorria a expedientes típicos do estado de não direito, para intimidar votos que lhe fossem contrários. Ou seja, violações em série contra estado democrático de direito porque sequer planejavam seguir a formalidade de apuração contra eventuais deslizes dos integrantes do STF: o objetivo era somente de conhecer a informação e atiçar “o clamor das ruas, o sentimento social” contra o julgador.

O STF terá em breve a oportunidade não somente de corrigir os abusos da Lava Jato de que agora é vítima, por não ter exercido sua autoridade constitucional. O Tribunal poderá finalmente deixar registrado de que o clamor das ruas, transformado em verdadeiro terror, não pode suplantar a racionalidade de uma Constituição democraticamente elaborada e terá que impor freio tanto contra os resultados funestos da Lava Jato, e ainda punir e mandar punir seus responsáveis.

Por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor Titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira