Coluna

Pelo direito ao delírio

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Em 2008, Galeano participou da 54ª Feira do Livro de Porto Alegre, onde fez leituras do livro Espelhos - Gabriela Di Bella /ARQUIVO/JC
Galeano: “Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos direito de imaginar"

Felipe Nunes*

 

O escritor Eduardo Galeano, certa vez ao descrever o delírio disse “mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos direito de imaginar o que queremos que seja”, ao conclamar a população pelo direito de sonhar. O exercício da poesia é atravessado pelo delírio de imaginar outros mundos possíveis. Através da narrativa, convidamos os leitores para imergir por diferentes universos, conflituar verdades intocáveis pelo sistema capitalista, retomar o encantamento dos primeiros povos do planeta. 

Persistir na literatura é um delírio. Porque insistir na literatura em um país que, segundo a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, perdeu nos últimos quatro anos mais de 4 milhões de leitores e metade da população não possui hábito de leitura? Num país onde o ministro da economia quer taxar livros e o presidente fala sem nenhum constrangimento que não lê um livro há quatro anos. Tudo isso se agrava quando direcionamos nossos olhos para a poesia, esse lugar de sensibilização e empatia, onde a atenção do leitor recai sobre outros cuidados. E justamente por esses motivos, numa sociedade cindida, divida, polarizada entre classes sociais antagônicas, Ernesto Guevara lembrava “Hay que endurecer, sin perder la ternura”. Isto que dizer, como defende o poeta Alberto Puncheu “Neste momento, é importante dizer / que a poesia não é uma arma / contra o autoritarismo, mas / o desejo de desarmar / o autoritarismo, desarmando / os que querem acabar / com a democracia em nome / do autoritarismo ou da ditadura”. 

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Nos últimos anos, a poesia foi minha principal ferramenta para imaginar e construir outros mundos. Neste sentido, no ano passado reuni mais de 60 poemas e, agora, estou publicando o livro “o silêncio de onde acabo de voltar” pela editora Urutau. Os poemas arquitetam um imaginário, a partir de um eu-lírico diverso e horizontalizado pela natureza e personagens, sejam eles anônimos, históricos, oníricos. Assim, delimita a poética a partir da experiência, deixando-se governar pelos sentidos, forjando a escrita a partir da construção das imagens geradas por esse contato com o mundo, olhando o mundo de baixo para cima, trazendo ao centro da narrativa, personagens fundamentais para a história latino-americana. 

Da minha parte, convivo com a poesia desde muito cedo. Parte das folhas dos cadernos escolares foi preenchida por versos. posteriormente, vieram os saraus, minha grande escola de formação para o mundo das artes, onde senti a palavra viva na boca de poetas das mais distintas gerações. Lembro-me do exemplo dado mesmo Galeano, a quem a vontade pela escrita precedeu a um pedido de mineiros para a descrição do mar nunca antes visto por estes. Assim, compreendi que a palavra é deveras sublime, transcendental. talvez, por essa razão fermentei tanto o momento para a escrita deste livro, quase uma década. 

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Muito antes do verbo, no início, era o silêncio.  E, assim como ensina o provérbio hindu que diz “quando você fala, tente tornar suas palavras melhores que o silêncio”, aqui proponho-me a esta humilde e audaciosa tarefa, desatar o silêncio. para isso, carrego um ensinamento revelado por Davi Kopenawa, grande pensador e pajé dos povos yanomamis (a quem dedico um poema no livro e em seu nome, a todos os povos indígenas), tentar, através destes poemas, ouvir menos os ruídos da cidade, de seus aviões, rádios, carros, televisores e máquinas e fazer da língua aquela a qual usaremos para nomear as coisas que nos ensinaram a julgar desimportantes. e quem sabe descobrir que, como jurou Pablo Neruda, “pelos vazios existem estrelas”.

O livro está disponível no site da editora e também através do contato direto com o poeta pelo instagram.com/umfelipenunes.

 

*Felipe Nunes é poeta, cantautor, historiador, antropólogo, doutorando em antropologia social.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo