Coluna

Um futebol diferente

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A fuga foi marcada para um domingo à tarde, no intervalo de um jogo entre dois times de presidiários - Creative Commons
O André já tinha sido convidado para uma fuga de presos comuns, não políticos

Uma época, perto do fim da ditadura, eu visitava presos políticos do Rio de Janeiro e de São Paulo e fazia matérias sobre eles para o jornal Em Tempo. Assinava com pseudônimo, pois se assinasse com meu nome mesmo ficaria proibido de visitar os presos meus amigos. Era proibido fazer matérias sobre eles.

Logo na primeira visita que fiz, no presídio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro, conheci um preso muito especial, o André Borges. Ele não era preso político inicialmente, foi preso por roubo a cofres de bancos, em 1958, anos antes da ditadura iniciada em 1964.

Na cadeia, aprendeu a encadernar livros velhos, colocar capas novas neles, e assumiu a função de dar um jeito nos livros da biblioteca do presídio em que estava. Aproveitou para ler os livros que encadernava e quase todos eles foram deixados por presos da chamada Intentona Comunista.

Começou a entender melhor porque tinha se tornado marginal, assim como outros presos colegas dele, e formou um grupo de estudos lá dentro. Virou um grupo de esquerda.

O André acabou participando de uma fuga lá por 1969 ou 70 e cerca de dois meses depois foi preso de novo, mas voltou pra cadeia já como preso político.

Antes de formar o grupo dentro da cadeia, mas já consciente, o André já tinha sido convidado para uma fuga de presos comuns, não políticos. Ele seria uma pessoa chave nessa história, pois sua função na época era cuidar do vestiário do campo de futebol que havia lá dentro. Não quis fugir, mas assegurou aos presos que não os denunciaria.

Eles, então, cavaram um túnel de dentro do vestiário até a rede de esgotos. A fuga foi marcada para um domingo à tarde, no intervalo de um jogo entre dois times de presidiários.

Era um dia de comemoração de qualquer coisa, e na plateia, assistindo ao jogo, estavam o diretor do presídio e um monte de autoridades. No intervalo do jogo, os times entraram no vestiário, passaram-se os quinze minutos regulamentares e não voltaram para o campo.

Mais um pouquinho de espera e finalmente os agentes penitenciários foram ver o que tinha acontecido. Viram só aquele buraco no chão.

Mas a surpresa maior foi numa avenida ali perto. Muitas pessoas viram espantadas uma tampa de bueiro se abrir e saírem dois times de futebol inteiros devidamente uniformizados correndo avenida afora.

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Douglas Matos