Março das Mulheres | A luta das cubanas em 60 anos de revolução

O Brasil de Fato esteve em Havana e entrevistou Elpídia Moreno Hernández, mulher negra, dirigente revolucionária da FMC

Foto: Arquivo
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Por Mayara Paixão

De Havana (Cuba)

Antes mesmo de pisar em solo cubano pela primeira vez, vem à mente a lembrança da luta das mulheres dessa pequena ilha caribenha. Vilma Espín, Celia Sanchéz e Haydée Santamaría são algumas das combatentes que lutaram pela revolução socialista, iniciada em 1959.

Elas, e tantas outras, protagonistas da luta armada e das transformações educacionais, econômicas e políticas que permitiram Cuba ser referência para a América Latina e o mundo.

Vivenciar o país, caminhar pelas ruas de Havana e outras cidades, conversar com o povo trazem uma convicção. Nesses 60 anos, a organização e a luta das mulheres cubanas é um dos pilares de resistência e continuidade da revolução.

Atualmente, Cuba é a segunda nação do mundo com maior número de mulheres no parlamento. Dos 605 representantes na Assembleia Nacional do Poder Popular, 322 são mulheres – um total de 53,22%. De acordo com dados oficiais de 2016, elas representam 65,6% dos quadros profissionais e técnicos, sendo a maioria na educação, na saúde e nas áreas de desenvolvimento tecnológico.

A marca das cubanas na construção do país leva aos questionamentos: como se organizam as mulheres ao longo destas seis décadas socialistas? Quais os desafios que ainda enfrentam?

Para entender o cenário, fomos até uma das principais organizações populares fundadas em meio ao processo revolucionário: a Federação de Mulheres Cubanas (FMC). Foi em uma manhã de sexta-feira, no bairro de Vedado, na capital Havana, que Elpídia Moreno Hernández recebeu a reportagem do Brasil de Fato, na sede nacional da instituição.

Mulher, negra, aos 61 anos, sua presença potente se iguala à gentileza com que nos recebe para uma conversa. Além de fazer parte da FMC, ela também coordena a Marcha Mundial das Mulheres em Cuba.

E pelo papel na construção de articulações internacionais, Moreno atrasa alguns minutos para a entrevista. Ela estava em contato com militantes do Chile, nos preparativos para o 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres.

Surge a representação das cubanas

“A partir do ano de 1959, quando triunfa a revolução, muda a situação de Cuba, e muda a situação das mulheres”, afirma Moreno logo no início da conversa.

Essa mudança é fruto da massiva participação das mulheres na luta contra o ditador Fulgencio Batista. Elas participaram dos combates que assaltaram o quartel Moncada, integraram a direção nacional do Movimento Revolucionário 26 de Julho e o Exército Rebelde na Sierra Maestra.

Com a ativa atuação, logo surge a necessidade de unificar a militância política feminina. Em 23 de agosto de 1960, em um ato apresentado pelo então primeiro-ministro Fidel Castro, nasce a Federação de Mulheres Cubanas. A missão de presidi-la é dada a Vilma Espín, uma das principais dirigentes do Movimento 26 de Julho.

À nova organização se juntam a Coluna Feminina Agrária, as Brigadas Femininas Revolucionárias, as seções femininas do 26 de Julho e dos sindicatos. A FMC passaria a ser a entidade que, até hoje, organiza a totalidade das cubanas.

“As mulheres, antes do triunfo da revolução, não tinham emprego, tinham que se prostituir para poder viver, e havia muitas mulheres analfabetas. O triunfo da revolução nos deu direitos de saúde e educação gratuita”, relata Moreno.

Mudanças estruturais

O nascimento da FMC possibilitou maior organização das cubanas para participar da vida econômica, política e social do país. “As mulheres, em conjunto com os processos e programas da revolução que vão surgindo, participam da campanha de alfabetização, e não só como alfabetizadas, mas também como alfabetizadoras”, relembra a dirigente.

Esse processo majoritariamente construído pelas mulheres levou com que, em 22 de dezembro de 1961, em um grande ato na Praça da Revolução, Fidel Castro declarasse Cuba um Território Livre de Analfabetismo.

A Campanha de Alfabetização era construída por meio de brigadas de educadores e educadoras, que eram enviadas aos rincões do país e chegaram a 707 mil cubanos e 25 mil haitianos, principalmente na parte oriental e mais carente da ilha.

A existência da Federação também foi importante para, junto ao governo, erradicar desigualdades entre as próprias mulheres. “Em Cuba, não há diferença entre a mulher do campo e a mulher da cidade. Todas temos os mesmos direitos”, explica Elpídia Moreno.

Outro projeto que buscava a emancipação feminina era a Escola Ana Betancourt para camponesas, criada em 1961. O projeto era liderado pela FMC e trazia as mulheres do meio rural para o Hotel Nacional, na capital Havana, e as ensinava corte e costura, de modo que tivessem um ofício e uma renda. Uma vez graduadas, regressavam a suas casas com uma máquina de costura e uma missão: ensinar a mais dez mulheres o ofício.

Pensando nas mulheres trabalhadoras, surgem, em 1962, os Círculos Infantis. “Instituições onde vão os meninos e as meninas por todo o dia para que as mães possam trabalhar. Isso foi fundamental para que as mulheres saíssem de suas casas e se empoderassem. Tiveram um salário e também puderam se vincular com todas as tarefas sociais”, explica Moreno.

Outro projeto da FMC é a atenção à saúde da mulher, como na prevenção ao câncer de mama, tipo da doença que mais mata mulheres no mundo. Em conjunto com a pasta de Saúde do governo, a Federação desenvolve programas de prevenção ao câncer mamário e intrauterino.

“Sabemos que às vezes nós, mulheres, nos cuidamos menos para cuidar mais da família. Mas temos um trabalho nas comunidades, com os médicos da família, vinculado à Federação de Mulheres Cubanas nas bases, para que as mulheres aprendam a fazer o autoexame de mama”, explica Moreno.

Bloqueio econômico

Seis décadas após o triunfo da revolução, um dos principais desafios enfrentados pelo país, e consequentemente pelas mulheres, é o bloqueio econômico decretado pelos Estados Unidos em fevereiro de 1962.

A proibição de importação de produtos fabricados ou com matéria-prima cubana, além do bloqueio naval, causa prejuízos que tentam ser driblados pelo governo – como na indústria farmacêutica, levando a dificuldades para se obter medicamentos.

“O governo dos EUA nos impede de comprar muitas coisas e, às vezes, temos que recorrer a quilômetros para obter um medicamento para uma pessoa doente, como um menino ou uma menina com câncer”, explica Moreno.

Apesar disso, a dirigente da FMC ressalta que as mulheres cubanas seguem enfrentando as dificuldades, tendo como fonte de inspiração a própria história de suas antepassadas.

“Nos afeta muito, mas, frente a esse bloqueio, nós, mulheres, engrandecemos. Enfrentamos [o bloqueio] porque somos da estirpe de Mariana Grajales, de Célia Sanchez, de Vilma Espín, e não vamos parar. Nossos princípios são revolucionários, seguimos abraçando a bandeira do socialismo, da revolução cubana, e nada vai nos deter.”

Solidariedade latino-americana

A solidariedade e o internacionalismo. São esses alguns dos valores fundamentais na Cuba socialista, e que seu governo e seu povo pretendem levar adiante, a outros povos. De acordo com Elpídia Moreno, 62% da mão de obra profissional cubana enviada a outros países – como médicos e professores – é composta por mulheres.

O Brasil é um dos casos em que esse compromisso chegou. Foram milhares os profissionais cubanos que aportaram a essas terras em parcerias entre países, como no caso do Mais Médicos. Compromisso esse que só findou após ataques à ilha vindos do atual mandatário brasileiro – que vem atacando todo e qualquer projeto de soberania dos povos.

E em um cenário de adversidades para a maioria dos povos latino-americanos, chega um recado de força das mulheres cubanas, vocalizado por uma de suas grandes representantes.

No mês que simboliza a luta das mulheres pelo mundo, a combatente cubana Elpídia Moreno nos deixa uma mensagem: “Somos anticapitalistas, anti-imperialistas e, portanto, qualquer país e organização de mulheres sempre vai contar com a solidariedade das mulheres cubanas.”

Da longa conversa com essa forte cubana, a sensação que fica é que “ninguém solta a mão de ninguém” em toda a América Latina.

(Informações do texto também foram retiradas da obra “Vilma Espín: La flor universal de la Revolución Cubana”, de Lígia Trujillo Aldama, 2010.)

Edição: Vivian Fernandes | Fotos: Mayara Paixão (entrevistada) e Arquivo CubaDebate (Históricas)

Essa matéria faz parte do especial Março das Mulheres, produzido pelo Brasil de Fato.