CRÔNICA

Seis sóis numa noite de junho

Páginas de cultura do Brasil de Fato Pernambuco contam com nova seção de crônicas

Recife |
Roberto Efrem Filho - ou Beto, como gosta - é do Recife e, vez ou outra, atrapalha-se com as palavras, nas redes sociais ou, agora, nestas páginas
Roberto Efrem Filho - ou Beto, como gosta - é do Recife e, vez ou outra, atrapalha-se com as palavras, nas redes sociais ou, agora, nestas páginas - Arquivo Pessoal

Ele sorria no final. Quer dizer, não é que sorrisse após, separadas as bocas, desfeita a mão esquerda na nuca, a mão direita à barba. Sorria ainda dentro do Outro, no destocar dos lábios, na antessala da distância, quando o fim apenas prometia saudade. O Outro percebeu rápido. Era o primeiro. O Cais da Alfândega quieto, a noite se inteirando do sereno, o rio à espreita do silêncio. Os dois haviam, fazia pouco, deixado a mesa de um bar. O blues os acompanhou até o outro lado da rua, depois seguiram à sorte. Por eles passou um único carro cujos faróis projetaram as sombras dEle e dOutro na calçada. Sombras abraçadas sobre pedras portuguesas. Na esquina da livraria, entreolharam-se em diagonal. Ele acalmou os passos, o Outro se aproximou intranquilo. Desconcertadas, suas mãos se aninharam no encalço da dúvida, desfizeram-na. Vontade. Era o primeiro. O beijo. Era o primeiro. O sorriso dEle a festejar o céu do Outro. Como quando, em 1902 ou 1903, o militante anarquista parisiense Maximillien Luce pintou, a óleo, seus "Batedores de Estaca". Ou quando Siba teceu, dois, três anos atrás, o "te sonhar" de suas "Três Carmelitas". Ou, talvez mais precisamente, logo ali, a duas curvas do Capibaribe e há mais de oito décadas, quando, em 1929 ou 1930, as memórias de Manuel Bandeira passeavam pela Rua da União e prenunciavam o seu “primeiro alumbramento". O poema antecipa a boca. Os operários da tela pontilhada de Luce sentiram, no peito, o sorriso dEle entre os dentes dOutro. Eles mesmos sorriram, sem que o pintor se apercebesse. O perfume do Outro – as mirras, as cânforas e os bálsamos de Siba – deixou-se durar à camisa dEle. Na tarde seguinte, o cheiro permanecia lá, no rapaz com quem Ele cruzou, de bicicleta, na volta do trabalho, no calcanhar da tarde. Às vésperas da Rua da Aurora, Totônio Rodrigues avistou o beijo. Manuel compreendeu. Totônio, entretanto, julgou haver um incêndio, estava convencido, no Bairro de São José. O menino Manuel o corrigiu. O fogo é no Recife, Totônio. Seis sóis numa noite de junho. Era o primeiro. A esquina da livraria testemunhou. As pedras portuguesas testemunharam. Deram-se por contentes. Seriam elas, enquanto fossem, também saudade.

 

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