Entrevista

"Tentativa de criminalizar o funk é histórica", diz ativista cultural

Bruno Ramos, da Associação Liga do Funk, refere-se à Sugestão Legislativa 17/2017 que pede a criminalização do ritmo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
MC's em atividade da organização Liga do Funk
MC's em atividade da organização Liga do Funk - Liga do Funk/ Reprodução

"A tentativa de criminalizar o funk é histórica. Esse caminho é muito parecido com o que aconteceu com o samba, com o que aconteceu com o rap na década de 1990. Até o jazz passou por isso". Bruno Ramos, diretor da Associação Liga do Funk, em São Paulo, compara o ritmo a outros que foram criados na periferia, referindo-se à Sugestão Legislativa 17/2017, de autoria cidadã, que pede a criminalização do funk.

A proposta está sendo analisada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, sob relatoria do senador Romário (PSB-RJ). 

Originada de uma Ideia Legislativa sugerida pelo empresário Marcelo Alonso no portal E-cidadania, a sugestão chama o movimento musical de "crime de saúde pública" e "falsa cultura" e pede a proibição dos chamados bailes de "pancadões" por considerar um "recrutamento organizado nas redes sociais para atender criminosos, estupradores e pedófilos à prática de crime contra a criança e o adolescente". A ideia recebeu o apoio de 21.983 pessoas e agora segue em trâmite na CDH.

"Na década de 1920, a Lei da Vadiagem proibia qualquer um que fazia batuque na rua. Tentar responsabilizar a periferia por tudo que acontece de ruim é muito comum, e muita gente ainda é eleita por isso", lamenta Ramos. Ele explica que a Liga do Funk é um movimento que tem o objetivo de formar funkeiros na capital paulista.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o funkeiro destacou que a linguagem utilizada no movimento musical, que na sua opinião está o centro das críticas e perseguição, faz parte da realidade dos jovens na periferia.

"Eles têm que entender que isso é um reflexo do que vivemos no dia a dia nas próprias comunidades. A molecada fala nas letras o que de fato estão vivenciando", ressalta.

No último dia 21 de junho, uma audiência pública marcou o início do trâmite da sugestão na CDH.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Qual a posição da Liga do Funk sobre a Sugestão 17/2016?

Bruno Ramos: É muito mais uma tentativa de apedrejamento da galera que não gosta, não para para escutar e acessar o conhecimento que hoje se tem a possibilidade de acessar. Mas a tentativa de criminalizar o movimento em si é histórica. Esse caminho é muito parecido com o que aconteceu com o samba, com o que aconteceu com o rap na década de 1990. Até o jazz passou por isso. Na década de 1920, a Lei da Vadiagem proibia qualquer um que fazia batuque na rua, isso se parece muito com a Lei Anti-Pancadão. O que está acontecendo hoje é a crítica ao Movimento Funk pela questão da linguagem. Mas a galera tem que entender que isso é um reflexo do que vivemos no dia-a-dia nas próprias comunidades. A molecada fala nas letras o que de fato estão vivenciando, ou também há aqueles que tentam, através da vertente do Funk Ostentação, buscar outro caminho através da fantasia que montam.

Talvez de 2010 para 2012, até no máximo quando aconteceu o assassinato do MC Daleste, em 2013, e com a chegada do Funk Ostentação na grande mídia, isso amenizou um pouco. Mas sempre fomos perseguidos. Tem também histórias de MCs que morreram pelo simples fato de contar a realidade do contexto em que eles estavam inseridos, como o MC Primo, MC Careca, Felipe Boladão e o próprio Daleste, que foi o último caso que aconteceu.

Por causa do assassinato dele, nós conseguimos conquistar, através de uma lei estadual e municipal, sancionada tanto pelo prefeito Haddad quanto pelo governador Geraldo Alckmin, o reconhecimento do dia 7 de julho como o Dia do Funk. É uma forma de disputa desses espaços de consciência. Se tem uma lei que nos defende, isso cria uma restrição e intimida a sociedade para ter mais respeito, e também desmistificar essa ideia que o movimento do funk é só de música e entretenimento, ele é muito mais plural que isso. Não é só música, é vivência, estilo, uma questão sociológica e antropológica também.

A criminalização do Funk já chegou a ser pautada em outros projetos de lei?

Que chegou até o Senado é a primeira vez, mas aqui na Câmara Municipal e Estadual [de São Paulo] já chegou. O Deputado Estadual Coronel Camilo [PSDB]] fez um Projeto de Lei Antipancadão, tentou criminalizar os fluxos de rua. Isso não é culpa do movimento. Se toca essa música nos fluxos é porque é a linguagem que a molecada da periferia está mais próxima. Isso é um absurdo, é miopia cultural e política um representante que está distante da sociedade e não consegue identificar que isso não é responsabilidade do funk e sim da ausência de políticas públicas nas comunidades, ou seja, é responsabilidade do poder público. 

Nas eleições municipais de São Paulo, em 2016, esse tema foi bastante comentado. Ainda existe espaço político para esse tipo de posicionamento?

Essa intolerância ao movimento em si é muito forte, e, sinceramente, têm muitas pessoas que estão sendo eleitas sendo intolerantes à periferia no geral. Tentar responsabilizar a periferia por tudo que acontece de ruim é muito forte e muita gente ainda é eleita por isso. Mas a questão do Funk é muito mais ampla, não vemos ainda pessoas no poder público que tenham a capacidade de discutir essa temática.

Bailes realizados nas periferias estão no centro da discussão | Foto: MC's Jhowzinho e KadinhoMC's Jhowzinho e Kadinho/ Facebook

Nós sabemos dos problemas que temos, mas sabemos o que trazemos de importante para a sociedade, como a questão da geração de renda, de emprego, e pessoas que saíram do submundo e, através da linguagem e cultura do movimento, buscaram uma qualidade de vida melhor. Então, essa narrativa nas eleições municipais, essa fala sobre o funk no discurso do prefeito eleito, é praticamente de perseguição do movimento em si sem querer entender o problema. Em uma matéria publicada, chegou-se até a comparar o movimento funk com a associação ao crime.

Mas quero me pautar na criminalização da sociedade com o movimento. O político em si é reflexo do que a sociedade está pedindo. Na gestão passada, o prefeito [Fernando Haddad - PT] se colocou em uma situação de tentar entender o movimento, mas errou feio também, porque tratou a questão do funk como fazer evento dentro das comunidades apenas e, em momento nenhum, ouviu as entidades que tratam dessa questão. Então, hierarquizar o rolê, colocando de cima para baixo, sem participação pública, é um problema. Na gestão passada tinha um recurso de 7 milhões destinado para o Funk e esse dinheiro foi desperdiçado.

As festas têm que ser tratadas como cereja do bolo, a nossa preocupação como Liga do Funk é fazer a disputa do imaginário, educar a molecada, explicar a importância do movimento e da vulnerabilidade dos nossos jovens. Discutir as questões étnico raciais, a pauta das mulheres, da saúde, a redução de danos. Chegar lá e fazer festa nós achamos ruim.

Agora, a gente vai para a disputa dentro de espaços públicos, como CEUS [Centro de Educação Unificada] e espaços de cultura, fazemos essa troca de ideias, escutamos o que os jovens têm a dizer e colocamos de forma mais ponderada quais caminhos buscar. Esse é o caminho que tinha que ser tomado e isso tinha que partir do governo e não da sociedade civil. Então, o formato da gestão passada me preocupou também porque acabou virando um balcão de negócios e fazendo, em nome do funk, um monte de loucura com as quais não concordamos.

O funk também passa por um processo de embranquecimento para se tornar mais aceito socialmente?

A indústria tem um processo muito voraz. O racismo na sociedade é tão eficaz que até para discutir essas questões é muito complicado. Mas essa tentativa de embranquecimento do próprio movimento é muito perceptível, até pelos artistas que estão tomando projeção e precisam se enquadrar nos formatos e padrões de entretenimento porque se não não conseguem estar dentro do mercado.

Mas o Movimento Funk é o mais preto que tem. É da diversidade, não é somente para a molecada da periferia, é para uma galera que trabalha até as questões de gênero. Exemplo disso é a Pabllo Vittar, que tem uma música estourada tocando nos fluxos e é diferente do que acontece em outros segmentos.

O rock na década de 1940 teve os mesmos problemas e o bordão deles era "Sexo, drogas e Rock and Roll". Mas passou a ser hierarquizado musicalmente e consumido por uma classe mais elitista. Então, isso é um processo de embranquecimento. O funk é consumido dentro da favela, por pessoas da favela e até o empresariado é formado por pessoas que vieram da periferia e hoje assumem um papel de estabilidade com uma estrutura financeira maior.

Esse processo de embranquecimento me preocupa porque isso aconteceu com o samba também, e estão na tentativa de fazer isso com o rap e com o funk. Quanto mais a gente deixar o movimento distante da indústria do entretenimento para nós é melhor. Mas percebemos isso pelos últimos MCs que aparecem e ganham visibilidade na televisão, por exemplo. São principalmente MCs do funk ostentação, porque as outras vertentes não têm tanto acesso na mídia. Ou o funk pop da Anitta, do Naldo.

É uma tentativa de embranquecimento. Tem outros tipos de funk, como o Funk Consciente, que seria muito importante nesses espaços, mas não tem visibilidade. Mas a mídia alternativa tem mostrado muito bem os nossos trabalhos e, com as redes sociais, o Youtube, temos mais visibilidade do que através das grandes mídias.

Edição: Vanessa Martina Silva