Benefício

Auxílio-moradia reivindicado por Moro e Bretas supera salário de 92% dos brasileiros

Casos de magistrados responsáveis pela operação Lava Jato em Curitiba e Rio de Janeiro fizeram tema vir novamente à tona

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Após quatro anos, STF deve decidir questão em março
Após quatro anos, STF deve decidir questão em março - Valter Campanato/Agência Brasil

Dois casos envolvendo integrantes da operação Lava Jato trouxeram à tona a questão do auxílio-moradia a magistrados: o de Sérgio Moro, de Curitiba, e o de Marcelo Bretas, lotado no Rio de Janeiro.

O valor máximo do benefício é de R$ 4.377,73, número que supera o salário de 92% da população brasileira, tendo como referência o ano de 2018. Os dois rebateram as críticas, mas a verba complementar é cada vez mais questionada.

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O Brasil de Fato conversou com dois especialistas ligados à Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH), rede que tem como um de seus eixos a questão da democratização do Judiciário. As falas foram unânimes no sentido de classificar o auxílio-moradia como um privilégio injustificável.

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Rafael Custódio, da ONG Conectas, entende que a disparidade social brasileira deve ser levada em conta neste debate.

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“O Brasil é um país notoriamente desigual. Dentro dessa desigualdade, há um déficit habitacional histórico. O auxílio-moradia se trata de desvio de dinheiro público, que poderia estar sendo aplicado em política habitacional, mas a casta judicial resolve pegar um quinhão do orçamento público para o próprio benefício”, diz.

Estima-se que 17 mil magistrados sejam beneficiados com o auxílio. Em um único mês, o Estado brasileiro gastou mais de R$ 60 milhões com estes complementos. Somados a outros auxílios — como saúde e alimentação — o volume ultrapassou a casa dos R$ 105 milhões. O levantamento é da revista Veja.

O auxílio-moradia foi estendido a todos magistrados por uma decisão liminar do ministro do Supremo Tirbunal Federal Luiz Fux, em 2014. A filha de Fux, que recebe o auxílio, tem dois apartamentos no Rio de Janeiro.

Maria Eugênia Trombini, advogada da organização Terra de Direitos e pesquisadora do Poder Judiciário, destaca a capacidade de organização corporativa dos magistrados, derivada da posição que ocupam na estrutura de Estado. 

"Esses servidores são organizados, e muito bem organizados. Eles são articulados e estão em espaços de poder. Em posições qualificadas que permitem interlocução com o poder Executivo e Legislativo. As pautas [deles] têm muito mais permeabilidade e êxito do que as outras categorias de servidores”, ressalta. Ela acrescenta ainda que “se a agenda do governo é de corte orçamentários, o professor de uma escola pública municipal não tem o mesmo poder e a mesma possibilidade de agência de uma categoria como a dos magistrados”.

Questionamentos

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Marcelo Bretas teve sua conduta questionada por receber o auxílio em conjunto com a esposa, que também é juíza. A resolução 199 do Conselho Nacional de Justiça veda o recebimento do benefício quando o cônjuge já o recebe. Nas redes sociais, Bretas afirmou que reivindicou a verba complementar por considerá-la “um direito”. 

Custódio não hesita em considerar a postura como defesa de algo indevido e contraditório com a noção de cidadania. “Para além desses personagens, eles são reflexo disso, que é essa mentalidade do Judiciário brasileiro de se considerarem de fato uma verdadeira casta política, econômica e social e não terem vergonha disso. O Judiciário é historicamente formado, pensado e composto pela elite. É uma elite que usa de seu lugar de privilégio para gerir dinheiro público sem nenhum tipo de constrangimento”, diz. “É um conceito que não se encaixa em um Estado Democrático de Direito”, complementa.

Moro, por sua vez, recebe o auxílio mesmo tendo imóvel próprio em Curitiba. “Embora discutível, compensa a falta de reajuste dos vencimentos desde 1º de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser anualmente reajustados”, disse o magistrado.

“É o próprio juiz protagonista do debate político nacional confessando que o auxílio não é para uso de moradia, mas sim para burlar os limites salariais de uma carreira”, rebate Custódio, que se refere ao teto constitucional para salários públicos, equivalente ao salário de ministro do STF e na casa dos R$ 33 mil. Com os adicionais, que não são contabilizados como salário, 71% dos magistrados do país recebem acima do limite. 

“O Judiciário que se beneficia de uma imoralidade é o próprio julgador e é ele que vai definir se a imoralidade que ele pratica é de fato imoralidade. O Supremo Tribunal Federal também tem sua parte de culpa porque foi omisso durante todos esses anos”, afirma Custódio, ressaltando o tempo passado desde a decisão de Fux.

Questionamento legal

Após quatro anos, a questão do auxílio-moradia deve ir ao plenário do STF em março deste ano. Trombini afirma que o modelo decisório para o tema é questionável.

“Nós temos integrantes de uma categoria decidindo a respeito de uma remuneração da mesma categoria que eles integram. Isso escancara as relações que estão caracterizadas dentro do Judiciário. É uma decisão sobre privilégios atribuídos a si próprios”, critica. 

Além de questionável, o modelo decisório deve ser analisado sobre outra óptica, defende a advogada: “Aqui no Brasil há o hábito de acreditar que os juízes são aplicadores virtuosos da lei. Nos Estados Unidos, já se abandonou essa perspectiva e há análises realistas, pautadas pelo fato de que os juízes são pessoas ordinárias. Como as pessoas comuns decidem, eles também decidem”. 

A pesquisadora defende ainda que, para romper esse ciclo, são necessárias ações em duas frentes. A primeira é a modificação dos meios de acesso à carreira, garantindo que o Judiciário seja mais representativo e, portanto, próximo da realidade social. Para tanto, seriam necessárias ações afirmativas nas provas de seleção e métodos que garantam a promoção de mulheres na magistratura.

O outro eixo desse processo democratizante é o controle social externo do Judiciário, já que o próprio funcionamento do CNJ tem mostrado seus limites.

“Se houvesse maior possibilidade de participação e controle social, a gente poderia discutir e construir uma nova agenda de justiça. Enquanto não temos isso, os espaços continuam muito pouco permeáveis e distantes da realidade social”, diz Trombini.

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A reportagem enviou questionamentos à Associação dos Magistrados Brasileiros, mas não obteve retorno até o momento.

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No debate público, as entidades da categoria, além da defesa do auxílio-moradia generalizado, também demandam a aprovação no Congresso de uma Emenda Constitucional que criaria remuneração adicional por tempo de serviço.

Edição: Vanessa Martina Silva