Coluna

Reflexão para ásperos tempos: os ensinamentos do boliviano Álvaro Garcia Linera para a esquerda

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"O golpismo mostrou suas garras e a corrente política neofascista segue construindo força e disputando corações e mentes" - Paulo Pinto/Agência Brasil
Semear esperança, lutar, se organizar e construir estratégias para derrotar os arautos do medo

Por Ronaldo Pagotto*

No último dia 21 de fevereiro, o escritório Brasil do Instituto Tricontinental publicou, em parceria com a editora Expressão Popular, uma seleção de textos do marxista boliviano Álvaro Garcia Linera: A política como disputa das esperanças. São textos de um período especial vivido na Bolívia, com o ascenso de uma força golpista de direita — amparada por segmentos da Polícia Boliviana — aliada aos EUA. Essa crise resultou no curto golpe que colocou na presidência do país a então senadora Jeanine Áñez, em 2019. As forças progressistas e democráticas derrotaram o golpismo e os responsáveis foram processados. Dentre eles a própria Jeanine, sempre mencionada por Bolsonaro por ser uma golpista derrotada e presa.

Nesses tempos duros, ou, parafraseando o baiano Jorge Amado, nesses ásperos tempos, o papel da reflexão e da teoria são ainda mais importantes.

A situação da Bolívia, refletida nos textos selecionados pelo livreto, são coincidentes com a ascensão de forças conservadoras e reacionárias em toda América Latina e Caribe, assim como no mundo. E parte dessa força é claramente neofascista, como sabemos bem por aqui.

Isso torna os textos de Garcia Linera em reflexões importantes para pensarmos os nossos desafios também por aqui. A seleção contrasta com tempos em que o ceticismo (não o filosófico, mas o da descrença permanente) é útil e funcional para o florescimento dos valores e pensamentos conservadores e reacionários; e no meio deles a víbora do neofascismo.

Esperançar, verbo com forte destaque no pensamento de Paulo Freire, é uma chave também desses textos selecionados. Em tempos de descrença, de crise e do fortalecimento dos setores neofascistas, o combate ideológico deve combinar a denúncia, a crítica e também a esperança de que é preciso e possível mudar.

Linera é um autor muito rigoroso com suas análises. Marxista com vasta produção, sempre combina o pensamento marxista geral com os temas específicos da realidade latina, e nela os desafios bolivianos. Um rigor que não se confunde com dogmatismo, mas com o zelo com o pensamento e uma profunda disposição — e capacidade — de aplicá-lo a partir das situações concretas na melhor tradição do marxismo latino.

Os textos são profundos e instrumentos para o debate sobre os desafios do nosso tempo, com análises desde os duros dias do golpe na Bolívia até a eleição de Javier Milei na Argentina. Com a peculiar e aguçada disposição do autor para reflexões, conjugando questões atuais e pontuais com profundidade e apontando para o horizonte transformador.

A situação atual no Brasil não nos permite baixar a guarda. O golpismo mostrou suas garras e a corrente política neofascista segue construindo força e disputando corações e mentes. Ofertam o ódio, a intolerância, dificuldade com as diferenças políticas, os falsos moralismos e as explicações fáceis sobre o mundo e o Brasil. Encantadores de serpentes vicejam nas entranhas da crise econômica duradoura, amparados por uma estrutura de disputa ideológica complexa, segmentada, ativa e popular, como bem tipifica Linera:

“Hoje ela (Direita) transmite um ressentimento sórdido e uma melancolia. Ressentimento contra a plebe igualada, contra a juventude pobre que põe em risco sua ‘segurança’, contra o migrante que ocupa empregos que ela despreza, contra as mulheres que não toleram mais a tirania patriarcal, contra os ‘comunistas’ que querem expandir o Estado protetor. E melancolia pelos velhos tempos de glória, quando não havia progressismos, quando as mulheres estavam nas casas, quando os jovens eram vigiados, quando os trabalhadores não tinham sindicatos e quando as decisões do Estado eram tomadas nas embaixadas estrangeiras ou nos escritórios das grandes corporações empresariais”.

E prossegue na caracterização:

“Estamos, portanto, diante de uma direita em guerra enlouquecida contra o colapso de sua velha ordem mundial. Não tenta mais seduzir, mas aniquilar; não procura convencer, mas punir; não convoca, ameaça trajando uma armadura de ódio contra os insolentes. É por isso que ela se tornou cada vez mais autoritária, violenta e descaradamente antidemocrática.”

A resistência ideológica a esse setor — o neofascismo — e também às ideias vertidas por ele precisam de combate contundente, amplo, permanente, incansável. Não conseguiremos derrotar politicamente essa força (e suas frações menos radicais) sem uma longa luta no campo das ideias. E para isso, Linera nos municia com reflexões profundas e que apontam para os desafios mais candentes do nosso tempo.

Sobretudo, são tempos, como indica o autor, de forte necessidade de disputar a esperança diante de uma sociedade que já não promete nada. De um neoliberalismo decadente e que não disfarça que a fome é constitutiva da sociedade, assim como o desemprego, a violência, o desalento, as doenças sociais, e tem a ousadia de bradar: acostumem-se e pode piorar. Um capitalismo sem promessas. Sem sonhos. Que naturaliza suas mazelas e quer transformar tudo em paisagem natural da vida. Nunca foi tão viva a propaganda Franquista dos anos 1930 na Espanha: “Viva a morte!”.

Nesses ásperos tempos, a resistência do povo deve se traduzir em semear. Semear esperança, lutar, se organizar coletivamente e construir estratégias para derrotar os arautos do medo, da morte e da desesperança. Para isso, textos como os que estão nessa pequena coletânea são um sopro de vida, de teoria, de marxismo e especialmente de profunda capacidade de conjugar o rigor, a frieza da análise e o otimismo da ação transformadora.

Boa leitura.

*Ronaldo Pagotto membro do conselho executivo do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa social, advogado e militante do Movimento Brasil

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato

Edição: Matheus Alves de Almeida