Opinião

A “paz” pode ser a maior vítima

Eis o grande desafio: construir novas narrativas, capazes de darem conta da complexidade da realidade

Belo Horizonte |

“É pela paz e em nome dela que a justiça e a democracia se renovam como conquistas constitucionais irrenunciáveis e intocáveis do caminhar histórico do nosso povo.” O alerta, que consta do manifesto lançado por juristas mineiros, reforça a constatação de que a paz corre sério risco em nossa nação.

Lembro-me de um diálogo do livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. Nele, o explorador Marco Polo descreve ao imperador dos tártaros Kublai Khan a ponte de uma das cidades imaginárias que, supostamente, teria visitado: "A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, responde Marco, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe".

Em uma analogia com o cenário brasileiro, tomemos como “ponte” a democracia e como “arco”, a paz, que dá equilíbrio e sentido à construção. As “pedras”, por sua vez, são as obrigações e direitos de cidadania e as garantias do Estado de Direito. Este, ninguém duvide, têm sofrido sucessivos abalos na tentativa de golpe em curso no país.

Muitas têm sido as manifestações contra o atentado ao processo democrático. Em recente carta aberta à população, os religiosos agostinianos do Vicariato Nossa Senhora da Consolação do Brasil afirmaram: “Ninguém está por cima da Constituição e, se ela for desrespeitada corremos o risco de voltar aos tempos totalitários da ditadura”. Já o jurista e professor da UFMG Tomas Bustamante, em um parecer sobre o impeachment, alertou: “Se as decisões puramente discricionárias aparecem travestidas de julgamentos pseudojurídicos sobre a correção dos atos do governo, abre-se caminho para um perigoso tipo de ditadura parlamentar”.

Infelizmente, na ânsia de promoverem o golpe, não se preocupam em preservar a “ponte”, tampouco o “arco” e as “pedras”. Eis o grande desafio: construir novas narrativas, capazes de darem conta da complexidade da realidade, sem que caiam por terra os pilares que sustentam nossa “cidade invisível”.

 

*Durval Ângelo é deputado estadual pelo PT/MG. 

 

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