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Problemas físicos e emocionais marcam cotidiano de sobreviventes do massacre no Pará

Sem tratamento de saúde específico ou indenizações, os sobreviventes lidam com as consequências da chacina em Carajás

Marabá (PA) |
Especial "Feridas Abertas"
Especial "Feridas Abertas" - Brasil de Fato

José Carlos Agarito, 38 anos, vive com uma bala alojada na cabeça que provoca fortes dores. Marlene Paixão, 35 anos, deixou de participar de protestos porque “ficou medrosa e os nervos não ajudam”. Josimar Freitas, 53 anos, já não costuma nadar porque a dormência e as câimbras que sente na perna em que levou um tiro tornam o lazer perigoso. Seja físico ou mental, os impactos do Massacre de Eldorado dos Carajás perduram há 20 anos. Sem tratamento de saúde específico ou indenizações do estado que cobrissem esses custos, os sobreviventes lidam com as consequências da chacina promovida pela Polícia Militar, que vitimou 21 trabalhadores e deixou 69 feridos no sul do Pará.

“Antes eu trabalhava normal. Hoje eu não posso trabalhar, não posso pegar uma enxada, uma foice, fazer serviço nenhum. Não posso baixar a cabeça. Estou conversando aqui e estou com a cabeça doendo. Não posso ter alegria, não posso ter raiva. É assim. Não posso fazer nada”, lamenta José Carlos, que tinha apenas 18 anos quando foi alvejado por policiais militares no massacre que ocorreu na Curva do S, trecho da rodovia PA-275. De porte físico robusto, ele reclama de não poder prover o sustento da família com o trabalho dele. “Peço ajuda à mãe”, relatou. José Carlos também reclama de problemas de memória e enfrenta piora, uma vez que a bala começa a se mover.

Foi apenas um movimento com a cabeça que o livrou de ser atingido por um tiro fatal. “Ele colocou para acertar aqui [no meio da testa]. Eu virei a cara e pegou aqui [ao lado do olho direito]”, diz apontando para a cicatriz. Para Marlene, as consequências são menos visíveis, mas não deixam de incomodar. “Eu não posso ver sangue porque na hora eu me lembro da perna do meu tio [que levou um tiro] e do povo sangrando. A gente pisava nas poças de sangue. Hoje eu não mato galinha, antes eu matava. Se não tiver alguém em casa para matar, eu não mato, não. Eu vi muito sangue nesse dia, foi a pior coisa que eu vi na minha vida”, disse.

Reparação

Josimar, que convive com dormência na perna baleada, assumiu a coordenação da Associação dos Sobreviventes, Dependentes, Viúvas do Massacre de Eldorado dos Carajás e Conflitos Agrários do Pará. Ele explica que 50 pessoas receberam indenização, mas que 25 ainda aguardam o benefício. “Nós recebemos precariamente algum tratamento médico. Não tínhamos nenhuma prioridade por sermos sobreviventes do massacre, muito pelo contrário, éramos tratados com muito preconceito. Fomos muito discriminados”, relatou.

Francinete dos Santos, 60 anos, perdeu o marido Robson Vitor Sobrinho e teve que criar a filha, na época com 23 anos, sozinha. “Ele pegou três tiros, um na fonte que saiu do outro lado e um no abdômem. Ele tinha os cabelos grandes, cortaram os cabelos dele e nas costas ele estava em carne viva. Acho que arrastaram ele na pista. Foi só o que eu vi dele”, relembra. Somente 10 anos depois de ter perdido o marido, ela recebeu o valor de R$ 20 mil de indenização.

Tragédias

O médico de família e comunidade Bruno Pedralva, integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, explica que grandes traumas como este de Eldorado dos Carajás trazem sérias consequências na saúde física e mental das pessoas. “Existem vários tipos de sofrimento mental, depressão, ansiedade, que estão associados a esses episódios e eles impactam na saúde orgânica, como doenças relacionadas ao coração, hipertensão, diabetes”, exemplificou. Ele destaca ainda que é fundamental prover melhorias da qualidade de vida dessas populações; como acesso à terra, ao crédito, ao lazer, aos serviços de saúde, que contribuam para um ambiente de cura.

Pedralva integra a brigada de médicos em solidariedade aos atingidos pelo rompimento das barragens da mineradora Samarco, da qual a companhia Vale e a BHP Billiton são acionistas, em Mariana, no estado de Minas Gerais. Ele compara as duas tragédias e lembra que elas estão vinculadas à situações de desigualdade social e que a perda de pessoas de uma mesma comunidade em acidentes ou chacinas geram uma comoção e um luto que podem ter consequências mais graves para a saúde. “[Além disso,] existem culpados em ambas as situações, e não foram as famílias dos atingidos. Os culpados são o agronegócio, a polícia e a gana de lucro das mineradoras”, avaliou.

Jorge Néri, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), visitou a cidade mineira logo após a tragédia. Estar lá, para ele, foi reviver alguns dos sentimentos experimentados há 20 anos em Eldorado de Carajás. “A gente via o nosso pessoal que estava no acampamento ainda meio, não sei como falar, mas era como se não estivessem ali. Sem muita expressão facial, nem choravam, mas também não sorriam, não estavam entendendo o que tinha acontecido. Eu vi isso em Mariana”, relatou.

Néri lembra que essa história tem um personagem em comum, que é a mineradora Vale. A empresa, que na época era a estatal Vale do Rio Doce, custeou - segundo depoimento do gerente da empresa Transbrasiliana, que foi juntado aos autos -, os ônibus que levaram os policiais militares à Curva do S, local do massacre.

Governos

Procurada pela reportagem, a companhia Vale informou, por meio de nota, “que não teve qualquer relação com o chamado 'Massacre de Eldorado dos Carajás'”.

Também contatada pelo Brasil de Fato, a Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará apontou que “tem cumprido sua parte com relação ao serviço de média e alta complexidade aos familiares e sobreviventes do conflito de Eldorado do Carajás”. Informou ainda que o atendimento de alta complexidade é feito pelo Sistema de Regulação conforme necessidade dos pacientes.

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