Curuguaty

Narcotraficantes estariam envolvidos em chacina pré-golpe no Paraguai, em 2012

Investigação de jornalista aponta que traficantes e políticos se uniram por interesse nas terras de Marina Kue

Assunção, Paraguai |
 40 hectares de maconha, a 30km de onde ocorreu o massacre de Curuguaty
40 hectares de maconha, a 30km de onde ocorreu o massacre de Curuguaty - Leonardo Wexell Severo

Com passo firme e olhar determinado, o jornalista argentino José Maria Quevedo entrou na sala do Tribunal de Sentenças do Palácio de Justiça de Assunção, no dia 15 de abril, para dar seu testemunho sobre o massacre de Curuguaty, que aconteceu durante uma reintegração de posse que vitimou 11 camponeses e seis policiais em 15 de junho de 2012. A chacina foi o estopim para o golpe do então presidente do Paraguai, Fernando Lugo.

Participante do minucioso levantamento realizado pela Plataforma de Estudo e Investigação de Conflitos Camponeses (PEICC), o jornalista se dirigiu ao local do massacre, onde colheu durante meses inúmeros depoimentos, montando o quebra-cabeça e calcificando convicções sobre a armadilha.

De forma pausada, pois a exposição necessitava ser traduzida para o Guarani, Quevedo fez uma contundente e qualificada denúncia sobre as execuções à queima-roupa de camponeses feridos, da adulteração da cena do crime - com policiais colocando armas ao lado dos cadáveres das suas vítimas – e da evidente manipulação de informações e ocultamento de provas por parte do ex-promotor do processo e atual vice-ministro da Segurança Interna, Jalil Rachid.

Na avaliação do jornalista argentino, entre os muitos questionamentos a serem feitos está a razão de nunca ter havido uma investigação profunda sobre o envolvimento do narcotráfico na matança, já que se encontraram nas proximidades do local 40 hectares de maconha. Esta é mesma reflexão feita pelo então ministro da Secretaria Nacional Antidrogas (Senado) e atual ministro do Interior, Francisco de Vargas.

Diante da relevância da declaração de Quevedo, a defesa solicitou que a testemunha aportasse mais elementos sobre a participação de narcotraficantes na matança, sendo imediatamente interpelada pela promotoria. Os juízes do Tribunal de Sentença se alinharam à oposição do Ministério Público. A fim de que a informação convenientemente abafada viesse à tona, a defesa pediu uma reposição, já que o processo só dá voz à versão da promotoria e não investiga o assassinato dos camponeses. Os juízes rechaçaram o pedido dizendo que irão julgar tão somente as acusações contra os sem-terra e que o tribunal não irá pautar nem a causa das mortes dos camponeses nem o que não tenha sido investigado,  uma vez que para isso existiriam, hipoteticamente, “outros canais”.

Um silêncio sepulcral cobriu sala quando o jornalista entregou o bilhete contendo os nomes dos prováveis mandantes do crime – recebido por uma das vítimas, Néstor Castro, quando teve a mandíbula fraturada.

Desde que acompanho o processo, o testemunho de Quevedo foi o que mais exortou à reflexão, enfatizando a necessidade da imediata anulação do julgamento. Sempre é bom lembrar que, no caso, estamos falando de fazer justiça a camponeses privados da liberdade há quase quatro anos, ameaçados de que serem sentenciados a mais de duas décadas de prisão.

Pela riqueza de dados e a didática com que expôs o crime, reproduzimos abaixo a essência do artigo em que José Maria Quevedo, em setembro de 2015, desnudou a grotesca fraude montada contra inocentes.

Massacre de Curuguaty: A pista narco jamais investigada

Dois meses depois do procedimento que pôs fim à vida de 17 paraguaios, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) encontrou uma propriedade de 40 hectares de maconha, pronta para colher, a escassos 30 quilômetros do lugar onde foi produzida a matança. O então secretário antidrogas Francisco de Vargas defendeu que se devia investigar a possível existência de vínculos entre o achado e o massacre. O promotor Jalil Rachid relativizou as declarações do ministro e descartou esta hipótese.

O homem é alto, ruivo e veste uniforme policial. As estrelas em seu braço denotam um cargo de importância. Néstor Castro tem a mandíbula destroçada por um balaço. Aguarda na Polícia Judicial para ser enviado a La Esperanza [penitenciária localizada na capital]. O homem se aproxima e lhe entrega um cartãozinho. “Vocês são inocentes. Estas são as pessoas que organizaram o massacre”, lhe diz. Castro guarda cuidadosamente o cartão num de seus bolsos.

Um mês depois decide entregar esta prova ao doutor Domingo Laino, presidente da Plataforma de Estudos e Investigação de Conflitos Camponeses (PEICC) que atende juridicamente aos processados e investiga as causas do massacre.

O cartão diz: “Comissário Arnaldo Sanabria Moran, de Coronel Oviedo. Oficial inspetor Aquiles de narcótico”.

Arnaldo Sanabria foi chefe do operativo que redundou no massacre de 15 de junho. Chamativamente, Fernando Lugo o nomeou comandante após a renúncia de Paulino Rojas. Segundo o relato dos GEO (Grupo de Operações Especiais da polícia) sobreviventes, Sanabria foi um dos efetivos que, ante a negativa de Erven Lovera, mais insistiu que o procedimento se realizasse.

Aquiles Villalba Flores é um obscuro personagem cujo nome e vínculos com as máfias do narco e o contrabando saltaram à luz do dia em 2015. Se disse que era familiar dos Villalba (Cristina, a atual deputada e ex-governadora de Canindeyú e ‘Cabrito’, intendente da Paloma) e ainda que esta informação acabou sendo errada, sua proximidade ao clã foi confirmada. Ezequiel de Souza, capturado na Paloma com 2 mil quilos de cocaína em novembro de 2014, revelou aos senadores Wiens e Giuzzio, que os narcos podiam operar na zona somente se contassem com a autorização de Carlos ‘Cabrito’ Villalba e que Aquiles era sua mão direita. Pese à gravidade da denúncia, nem Aquiles nem ‘Cabrito’ foram investigados.

"Corredor da ilegalidade"

Entre as reservas Mbaracayú e Morombi existe um corredor que os agentes fiscais da zona denominam “o corredor da ilegalidade”. Drogas, armas, madeira, tudo passa por aí sem nenhum tipo de controle. Consultado, o promotor de Curuguaty, Cristian Roig, disse que se trata de uma zona onde manda o ilegal e os vínculos entre políticos, policiais e traficantes fazem com que o trabalho do Ministério Público seja impossível.

Roig acrescentou que este organismo foi tomado por filhos e parentes de políticos que têm como principal tarefa proteger as máfias. Este dado serviria talvez para explicar porque para investigar o massacre que se produziu em terras apropriadas pelo ex-presidente do Partido Colorado, Blas Riquelme, o promotor geral Javier Díaz Verón designou ao premiado agente Jalil Amir Rachid Lichi, filho do também ex-titular da ANR (Associação Nacional Republicana, nome dos colorados), Bader Rachid Licchi.

Também permitiria entender porque o mantém à frente da causa, em que pese à parcialidade com que tem conduzido o caso. Além disso, Jalil é sobrinho de Leila Rachid, hoje conselheira de Itaipu, ex-ministra de Relações Exteriores de Nicanor Duarte Frutos, amiga pessoal de Sarah Cartes e ex-integrante da equipe de transição do presidente Horacio Cartes.

O curioso (ou nem tanto) é que enquanto Jalil se ocupava da investigação em Curuguaty, em Assunção, Leila fazia lobby nos meios de comunicação contra o protocolo de Ushuaia ll (um dos seis pontos do libelo acusatório contra Fernando Lugo), questionava a presença dos chanceleres de Unasul em Paraguai, e Bader (como membro do conselho assessor da Junta de Governo colorada) se encarregava de convencer a Lilian Samaniego da necessidade de julgar e destituir Lugo.

Segundo revelou a este jornalista e ao advogado espanhol Aitor Martínez Jiménez em 2012, o ex-deputado colorado por Canindeyú, Julio Colman, após o massacre e em ocasião de uma visita à Curuguaty, Horacio Cartes lhe pediu textualmente que “cuidasse de Jalil”. “É o filho de um amigo”, lhe haveria dito o então pré-candidato à presidência.

Narcos e políticos com um objetivo comum?

Os vínculos da política com o narcotráfico se tornaram visíveis após o assassinato do jornalista Pablo Medina (um dos poucos repórteres que esteve no 15 de junho em Marina Kue). O autor intelectual do crime, Vilmar Acosta Marques, era intendente do distrito de Ypehú e um dos chefes do tráfico de maconha na zona. ‘Neneco’ pertence ao movimento Honra Colorada do presidente Horacio Cartes e sua chefa política é a deputada Cristina Villalba. Fotos em reuniões sociais com a deputada confirmam seu pertencimento ao “clã”.

De quem era os 40 hectares de maconha entrados na propriedade reivindicada pelos Riquelme? A quem prejudicava a recuperação de Marina Kue por parte dos camponeses e a instalação ali de um novo assentamento? Perguntas que o promotor Jalil Rachid jamais se fez (ou sim).

O certo é que o agente do Ministério Público não somente descartou a hipótese de De Vargas, como considerou aos Riquelme (que reivindicam como sua a propriedade onde se encontrou a plantação) “vítimas”.

Mesmo que tenham se passado três anos, Ignacio Vera ainda segue temendo por sua vida. Na manhã de 15 de junho de 2012 recebeu um aviso: “Não vá a Marina Kue. Irão te matar”, lhe disseram. Segundo Vera, seu nome figurava numa lista que estava em poder da polícia. Em dita lista havia outros quatro nomes: Erven Lovera, Ninfa Aguilar, Avelino “Pindu” Espindola e Ruben Villalba. Lovera y Pindú morreram em Marina Kue. Ruben Villalba recebeu um tiro. A bala lhe roçou o crânio e conseguiu escapar vivo do tiroteio. Advertido, Vera preferiu não participar do procedimento no qual deveria ter estado como funcionário do Indert (Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra). Ninfa Aguilar se posicionou numa distância prudente da zona zero e também salvou sua vida. Poucos dias depois foi afastada da causa e removida a Santaní. Em 17 de agosto de 2015 foi nomeada juíza.

Pelos atores envolvidos, a zona onde se produziu e os interesses em jogo, a pista narco deveria ter sido investigada desde o princípio.

Em março de 2013 e mediante uma resolução, o Comitê de Direitos Humanos da ONU recomendou ao Paraguai “assegurar a investigação imediata, independente e imparcial da morte de 17 pessoas por ocasião da averiguação de Curuguaty em 15 de junho de 2012, assim como de todos os fatos vinculados que hajam sigo denunciados pelas vítimas, em particular torturas, detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais e possíveis violações do referido processo, incluindo o caso do adolescente condenado e das duas mulheres em estado avançado de gravidez em prisão preventiva”.

No entanto, o promotor geral Javier Díaz Verón não somente não levou em conta a opinião do Comitê como respaldou a decisão de Jalil Rachid de não investigar as denúncias apresentadas pelos familiares das vítimas da ocupação e das organizações da sociedade civil.

Tanto para a comunidade internacional como para a cidadania paraguaia que acompanha de perto o caso, o massacre de Curuguaty deve ser investigado novamente. Desta vez por um promotor imparcial e probo, sem vínculos com as partes, que busque esclarecer os fatos e não encobrir os verdadeiros responsáveis.

No momento de ser julgada, a causa também não deveria cair nas mãos de um Tribunal de Sentença que tenha como presidente a um juiz como Ramón Trinidad Zelaya, que sendo promotor foi afastado por suspeita de receber subornos e como magistrado foi acusado de liberar narcotraficantes, um deles Cecilio Cabral-Ramoa, aliás “Ligeirinho”, integrante da gangue dos Acosta  Marques, segundo dados encontrados no computador de Pablo Medina.

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