Meio Ambiente

Usinas do Tapajós colocarão em risco animais e espécies desconhecidas pela ciência

Além de uma espécie de macaco, outros sete mamíferos foram descobertos durante estudos de hidrelétrica

Repórter Brasil |
Ararajubas (Guaruba guarouba) próximas ao Rio Tapajós. Espécie é ameaçada de extinção
Ararajubas (Guaruba guarouba) próximas ao Rio Tapajós. Espécie é ameaçada de extinção - Valdemir Cunha / Greenpeace

Ao menos oito espécies de mamíferos nunca catalogadas pela ciência foram descobertas durante os estudos de impacto da usina de São Luiz do Tapajós. Ironicamente, ao mesmo tempo em que essas “novas” espécies são apresentadas ao mundo, elas podem entrar na lista de animais em risco. Isso por que o ambiente onde esses animais vivem será profundamente transformado pelas obras da hidrelétrica, o que é especialmente grave considerando que algumas dessas espécies existem apenas no Tapajós.

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Entre elas está uma nova espécie de macaco semelhante ao macaco barrigudo (do gêneroPithecia), um marsupial parecido com a cuíca cauda-de-rato (do gênero Metachirus) e novas espécies de roedores e morcegos. Além dos novos mamíferos, a usina deve colocar em risco ainda aves em extinção como ararajuba (Aratinga guarouba), a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus) e pássaros que comprovadamente só existem no Tapajós.

No dia 19 de abril, o licenciamento ambiental do empreendimento foi oficialmente suspenso pelo Ibama, órgão do governo federal. Na prática, o processo estava paralisado desde dezembro de 2014, já que nenhuma das dúvidas levantadas pelos técnicos do Ibama havia sido respondida após a conclusão da primeira versão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

O documento tem mais de 15 mil páginas e foi realizado pelo consórcio de empresas interessadas na concessão da hidrelétrica. O grupo é liderado pela estatal Eletrobras e conta com as brasileiras Eletronorte, Copel, Endesa Brasil, Camargo Correa, Cemig, e Neoenergia, além das empresas francesas EDF e GDF Suez. A crise política e econômica, que colocou em xeque obras públicas tocadas por grandes empreiteiras envolvidas na operação Lava Jato, também contribuiu para esvaziar o licenciamento ambiental da hidrelétrica.

A decisão do Ibama de suspender o processo foi oficialmente justificada pelo chamado “componente indígena”. Isso porque, se hidrelétrica de fato sair do papel, um território tradicionalmente ocupado pelo povo Munduruku, mas ainda não demarcado pelas autoridades brasileiras, será inundado pelo lago da barragem. Há pelo menos dois anos, a Funai – departamento federal responsável pela questão indígena – já dispõe de estudos para emplacar o reconhecimento da área, conhecida como Sawré Maybu.
Braço do rio Tapajós no Oeste do Pará, onde a fauna é uma das mais ricas da Amazônia. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Porém, a usina de São Luiz do Tapajós sempre foi considerada prioridade absoluta no planejamento elétrico do governo da presidenta Dilma Roussef, o que inviabilizou o processo de demarcação da terra indígena. No entanto, no último dia 19, a Funai publicou os estudos que dão o pontapé inicial para o reconhecimento da Sawré Maybu. Uma fonte com amplo trânsito no órgão indigenista ouvida em off pela Repórter Brasil avalia que, com a iminência do impeachment, o desengavetamento do processo de demarcação tem como principal objetivo transferir para o futuro governo de Michel Temer o constrangimento de bancar a construção da hidrelétrica que vai trazer prejuízos irreparáveis ao povo Munduruku. Ao mesmo tempo, a medida tenta dar uma satisfação aos movimentos sociais que sempre se queixaram da indiferença do governo Dilma para com a causa indígena.

Apesar da suspensão do licenciamento, o fato é que o projeto da barragem nem de longe está morto e enterrado. Com o novo governo, haverá trocas no comando do Ibama e da Funai. Além disso, a demarcação de uma nova terra indígena depende, em última instância, da vontade do Presidente da República.

Impactos

Se construída, a usina de São Luiz do Tapajós pode virar a quarta maior hidrelétrica do país. Seu reservatório de água ocupará uma área de cerca de 38 quilômetros quadrados (praticamente o tamanho de Porto Príncipe, capital do Haiti), alagando aldeias indígenas, povoados de pescadores, ilhas, praias e muita floresta. O local é estimado como berço de uma das mais ricas faunas da Amazônia e do mundo,  com 95 espécies de mamíferos, 71 de serpentes, 302 de borboletas e mais de 600 espécies de aves.

“Essa região tem a maior riqueza de mamíferos já detectada na Amazônia. O estudo de impacto ambiental mostrou que existem várias espécies novas, em fase de descrição (científica), que serão diretamente afetadas pelo empreendimento”, explica o biólogo Enrico Bernard, da Universidade Federal de Pernambuco.

Bernard, que dirige o Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade do Departamento de Zoologia da universidade, fez uma análise independente  do estudo de impacto e do documento resumido, que é produzido a partir desse estudo para ser apresentado à sociedade, o Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Sua análise integra um documento organizado pelo Greenpeace. Ele encontrou falhas no estudo, mas sua maior crítica é em relação ao documento divulgado para a sociedade. Para ele, o relatório sobre mamíferos é “superficial”, além de amenizar e ocultar impactos que são apontados pelo estudo completo.

Pássaros voam sobre o rio Tapajós. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace.

Ele alerta ainda para as graves consequências do alagamento de uma vegetação típica da região: uma grande faixa de igapó, floresta de árvores parcialmente submersas. “Esse tipo de vegetação tem a maior riqueza, a maior biomassa de mamíferos da área. Essa faixa será perdida, completamente desmatada e alagada”, salienta o biólogo. Ele diz que, em contraste com outras regiões que serão alagadas, os animais da floresta de igapó não poderão ser removidos para outros habitats similares. “Neste caso, você tem a perda completa de um ambiente onde há muito bicho, muito bicho grande, muitas antas e inclusive a espécie nova de macaco. Não vai ter para onde afugentar os animais, não tem outro igapó adjacente. Não só essa espécie como outras novas serão colocadas em risco”.

“O Rima pega 110 páginas de informações sobre mamíferos do estudo e transforma em 92 palavras. Nessa transformação, ele ameniza vários impactos, e omite uma série de outros”

Os pesquisadores do estudo de impacto citam diversas espécies novas, algumas já em fase de catalogação científica, outras ainda desconhecidas. Eles chegam a escrever sobre cinco novas espécies de morcegos, além dos marsupiais e roedores. Essas informações não estão no relatório divulgado à sociedade, o Rima, único que foi distribuído às comunidades ribeirinhas e população local do Tapajós.

“O Rima pega 110 páginas de informações sobre mamíferos do estudo e transforma em 92 palavras. Nessa transformação, ele ameniza vários impactos, omite uma série de outros, de forma que, qualquer outra pessoa que leia só o Rima vai ter uma visão totalmente distorcida do que foi esse estudo de impacto ambiental”, alerta o biólogo Bernard.

Araras-vermelhas sobrevoam o rio Tapajós. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace.

Bernard participou de reunião de pesquisadores e do Greenpeace com o Ibama para apresentar sua análise. O órgão federal é responsável por outorgar o licenciamento para a construção da hidrelétrica. O Ibama já havia enviado o EIA/Rima de volta à Eletrobras com cem questões que não foram esclarecidas. Agora, vai analisar as críticas apontadas pelos especialistas. O órgão licenciador afirmou ainda que fará audiências públicas na região do Tapajós para discutir a viabilidade do licenciamento, além de analisar os documentos dos especialistas independentes, como os biólogos convidados pelo Greenpeace.

Bernard lembra que o próprio estudo do consórcio diz que há impactos que serão de difícil, se não de “impossível”, mitigação.“A gente fica na expectativa de que o Ibama chegue à conclusão mais próxima do real. As novas espécies e essa grande biomassa, essa grande quantidade de bichos, está na área impactada e está criticamente ameaçada”, diz Bernard.

“O desaparecimento [de aves] do Rio Tapajós poderia representar a sua extinção não apenas local, mas também regional e global”

Também da Universidade Federal de Pernambuco, o biólogo Luciano Nicolás Naka, a pedido do Greenpeace, fez a análise crítica do estudo oficial sobre as espécies de aves. Para ele, o estudo não avalia o real impacto, mesmo sendo tão volumoso e envolvendo tantos pesquisadores. No relatório, o texto oficial destaca que há três espécies em extinção: a arara-azul, uma espécie de beija-flor e a ararajuba, um pássaro amarelo, encontrado apenas no Brasil. “As informações apresentadas não são suficientes para que os órgãos ambientais possam avaliar as consequências ambientais e sociais de instalar uma usina hidrelétrica como a São Luiz do Tapajós e mudar, para sempre, a paisagem de um dos rios melhor preservados da Amazônia”, diz o biólogo.

Naka explica que grande parte das aves registradas na região vive apenas naquele local do Tapajós. “O seu desaparecimento do Rio Tapajós poderia representar a sua  extinção não apenas local, mas também regional e global”. O biólogo cita como exemplo o passarinho Thamnophilus huberi, que no próprio estudo ambiental aparece como uma espécie restrita aos igapós das ilhas ribeirinhas exatamente no trecho de confluência dos rios Teles Pires e Juruena. “Justamente os trechos que serão completamente perdidos se todas as barragens planejadas forem instaladas”, aponta Naka.

Depois de tempos de seca, as águas das chuvas formam poças coloridas no meio do barro devido a mistura com as folhagens da Amazônia. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

O biólogo especialista em aves esclarece que as espécies em maior risco são as que habitam as florestas ribeirinhas, as ilhas ao longo do rio e uma estreita faixa de vegetação na beira do Tapajós. “Estas florestas, conhecidas como várzeas e igapós, apresentam uma enorme diversidade de espécies que não ocorrem em nenhum outro lugar do mundo. Elas dependem do alagamento temporário das florestas que acompanham o ciclo natural de cheia e seca dos rios amazônicos. Esse fluxo natural de inundação, o qual define como será a estrutura da vegetação e quais espécies de aves poderão ocorrer nelas, é sempre afetado por barragens. E como estamos falando não de apenas uma barragem, mas de uma série de hidrelétricas, estas florestas e toda a sua riqueza poderão simplesmente desaparecer embaixo da água”, critica Naka.

“Estas florestas e toda a sua riqueza poderão simplesmente desaparecer embaixo da água”

Ele faz um alerta que tem sido repetido por especialistas de todo o país: a necessidade de se analisar o conjunto de obras a ser feito na bacia do rio e não apenas a usina de São Luiz do Tapajós. “Os planos do governo não se restringem à construção de uma única usina hidrelétrica. Outras 42 estão planejadas para a bacia do Tapajós, com consequências dramáticas para a biodiversidade da Amazônia e para as populações humanas locais que nela habitam.

Crianças em Pimental, comunidade de mais de cem anos, que será alagada pela nova barragem. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

A população local e o respeito aos animais

A caça de animais silvestres é proibida no Brasil. Como os indígenas, comunidades tradicionais caçam somente como forma de subsistência. Os ribeirinhos do Tapajós costumam repetir uma frase dos indígenas. “O rio é o nosso freezer, a floresta é o nosso açougue”.

Eudeir Azevedo, o Dedê, enche o peito para contar que é neto de índio munduruku. Faz de tudo em Pimental, colônia de pescadores que será alagada pela barragem. Se embrenha na floresta durante a noite para trazer caça grande para casa. Paca, tatu, anta, veado, catitu, queixada (conhecido como porcão). Acha o escuro mais fácil do que a luz do dia. Diz que é herança munduruku. “Somos famosos por enxergar à noite”.

Uma caçada do caboclo na mata é um ritual ancestral de subsistência e de comunhão

Os ribeirinhos mais pescam do que caçam. Quem chega na floresta pela primeira vez pode não entender como eles se relacionam como os animais. Mas ao acompanhar uma caçada em que o caboclo se embrenha na mata, mergulha em igarapés, “discute” com macacos, percebe-se que é um ritual ancestral de subsistência e de comunhão com a floresta. Os caçadores não matam se não for para comer. Não guardam o couro, não exibem a cabeça dos animais, não fazem nenhum tipo de ostentação.

Beiradeiro mostra o tatu que caçou para alimentar o pai, a madrasta, a mulher e dois irmãos. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

“A gente caça com respeito”, conta um caçador, que chegava em casa com um tatu no ombro, depois de passar duas horas na floresta com seus três cachorros. O tatu alimentaria ele, a mulher, o pai, a madrastas e os dois irmãos.

Em Campo Verde, perto da cidade Itaituba, os jovens gostam de sair para caçar em grupo também durante a noite. “A gente caça de tudo. Tem um macaco preto da cara branca, o coamba, que quando a gente está sozinho ele desce da árvore pra brigar. Ele cisma com o cabra sozinho. Onça ninguém caça. Quem mata onça é fazendeiro porque ela mata o gado”, explica um morador local, que aprendeu a caçar com o pai.

A exceção é a centenária Gabriela: “Eu já cacei três onças, com minha espingarda e com arco e flecha. Mas só as mansinhas. Porque as bravas é que me caçavam”, ela diz, com um sorriso. Com seu corpo mirradinho, sentada em sua cama, Gabriela é o apelido da mulher de 107 anos que nasceu com o nome de Maria Bibiana da Silva na comunidade de Pimental, que deve ser inteiramente alagada pela hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.


Dona Bibiana, conhecida como Gabriela, completou 107 anos e é a moradora mais antiga de Pimental: já caçou onça com rifle e flechas e foi caçada pelas “pintadas mais bravas”. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Ela é a prova viva de que a usina vai apagar do mapa uma comunidade rica em algo cada vez mais raro no mundo todo: a história de integração entre o homem e o meio ambiente. Fica tão nervosa que não pode nem falar sobre o assunto das hidrelétricas. Então conta dos tempos que viveu numa floresta ainda mais farta de animais e histórias.

Gabriela desfia causos de caça, de peixes, de botos que viram gente, de gente de outro século, de filhos, de netos, de bisnetos, tataranetos e até de “escancha netos”, expressão usada pela família para falar dos demais descendentes. Questionada se seria uma das mulheres mais velhas do Brasil, ela ri: “Se eu fosse sadia, eu era é a mais melindrosa”.

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