HISTÓRIA

“Chegamos a uma conjuntura semelhante ao pré-64”, afirma analista político

Aversão ao povo faz convergir setores diversos em torno de ataques à democracia

Belo Horizonte |
"Não dá para entender o poder político sem entender o poder econômico ou o ideológico"
"Não dá para entender o poder político sem entender o poder econômico ou o ideológico" - Arquivo pessoal

O golpe que está em curso no Brasil é maior do que o processo de Impeachment movido contra a presidenta Dilma Rousseff. Para caracterizá-lo com exatidão, é preciso olhar todos os atos de transgressão da legalidade democrática e dos princípios constitucionais, realizados com o intuito de inviabilizar o governo, destruir a esquerda organizada e implementar de maneira acelerada, pela força e o arbítrio, o programa derrotado nas eleições de 2014.

Concebido nestes termos, o golpismo não é novidade no Brasil: constitui um expediente que muito diz sobre os limites da democracia consentida pelos donos do poder. Trata-se de uma forma regular de repressão das trabalhadoras e trabalhadores pobres, das mulheres, do povo negro, dos povos indígenas, dos sem terra, sem teto, etc. Em determinados momentos, passa a ser utilizado com fins explicitamente políticos, como na atual conjuntura.  Outrora teve nas forças armadas um de seus principais operadores. Hoje, é capitaneado pela grande mídia e o poder judiciário.

Entretanto, as operações golpistas não poderiam prosperar se não contassem com a adesão de setores insatisfeitos com o governo, mas não necessariamente identificados com as expressões mais reacionárias e antidemocráticas da direita. Ao fim e ao cabo, todavia, o golpismo se volta contra muitos de seus apoiadores.

Com o intuito de refletir sobre essas questões, em abril, na semana em que se recordava o Golpe de 1964, o Brasil de Fato entrevistou Rubens Goyatá Campante, especialista no estudo do patrimonialismo e dos direitos sociais e trabalhistas e membro do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS) da UFMG.

Olhando para 1964, podemos dizer que os atores sociais que apoiaram o Golpe formavam um grupo heterogêneo? Quais eram as diferenças entre eles?

Sim, era um grupo heterogêneo. Frações das forças armadas participaram ativamente. Em ocasiões anteriores, como durante o governo JK, os militares estavam mais divididos. Aos poucos, foi havendo uma convergência em direção ao Golpe, especialmente por conta da radicalização política e do medo da infiltração da esquerda nas forças armadas, que eles temiam que pusesse em perigo a hierarquia militar. Havia um apoio externo, mais especificamente norte-americano, no contexto da Guerra Fria e da Revolução Cubana. O Golpe teve a adesão de diversos setores organizados da sociedade civil, como o empresariado, que compareceu em peso, a maior parte da Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), algumas associações de profissionais liberais, além, é claro, das camadas médias e da mídia, com seu apoio avassalador.

Esses grupos orbitavam dois projetos distintos. Um deles, recorrente na história do Brasil, era o de uma democracia formal restrita, na qual a participação e o poder popular fossem neutralizados, a fim de que não representassem nenhum perigo ao status quo. Esses grupos não queriam uma ditadura aberta e esperavam que, em pouco tempo, os militares entregassem o governo, como ocorreu em 1945. Outra corrente, que eu chamaria de “grupo dos chuta-portas”, era mais radical e não se importava com a democracia formal. Desejava ir a fundo numa suposta “limpeza do país”, eliminado os elementos considerados “populistas”, sindicalistas e esquerdistas. Viam a esquerda como uma aberração moral, ligada à corrupção e à demagogia. 

E o que os fez convergir na direção do Golpe?

O sentimento do “anti”, uma espécie de convergência baseada na aversão ao comunismo, que era uma presença sociocultural e política expressiva no Brasil da época, embora não majoritária, e era combatida em nível nacional e internacional. Outro fator de convergência era o antipopulismo herdado da Era Vargas e usado contra Getúlio, Juscelino e Jango. Também havia uma reação à maré montante do sindicalismo no Brasil, que, desde a década de 50, apesar de ainda controlado pelo Estado, caminhava para uma maior autonomia e tornava-se mais expressivo na política brasileira. Houve greves políticas durante o governo Jango, por exemplo, a favor de gabinetes “nacionalistas” ou visando à antecipação do plebiscito que confirmaria ou negaria o parlamentarismo. Essas greves eram conduzidas por centrais sindicais, que eram formal e legalmente proibidas pela legislação autoritária de Vargas, mas passaram a ser toleradas, indignando o patronato. E, no sindicalismo, não estava presente apenas o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas também os comunistas, que viam como estratégica a inserção no movimento sindical.

O que aconteceu com aqueles que, em nome de uma democracia sem povo, apoiaram o Golpe, esperando que os militares entregassem o governo pouco tempo depois?

Eles foram progressivamente se desiludindo e sendo postos à margem pela dinâmica do Golpe. Alguns rapidamente, outros um pouco mais tarde. O primeiro foi Juscelino Kubistchek, que inicialmente teve uma posição ambígua com relação ao Golpe. Castelo Branco, que era da ala moderada dos militares, fazia questão de ser eleito indiretamente pelo Congresso (um congresso já depurado dos elementos “indesejados” da esquerda, todos cassados, presos, exilados) e, para tanto, precisava do apoio de Juscelino, que controlava o maior partido, o PSD. Eleito Castelo Branco, Juscelino passou a ser descartável e, mais que isso, um estorvo. Tornou-se, então, alvo de um inquérito policial militar e começou a sofrer uma intensa perseguição política e midiática, muito semelhante, aliás, à perseguição quem vem sofrendo o Lula. JK morava num apartamento na Avenida Vieira Souto (Rio de Janeiro), pertencente a um grande empreiteiro da construção de Brasília, e foi acusado de ser dono desse imóvel. O objetivo era, afinal, era desmoralizá-lo. Ele chegava para depor e a imprensa estava lá presente para fotografá-lo e criar um fato político-midiático. O inquérito foi arquivado por falta de provas, mas a desmoralização estava feita.

Carlos Lacerda foi outro. Durante os anos 50, sempre pediu intervenção militar. Após o Golpe, viu frustradas suas pretensões de concorrer à Presidência, quando os militares suspenderam as eleições presidenciais previstas para 1965, nas quais ele, JK, Arraes, pretendiam concorrer. Depois, extinguiram os antigos partidos políticos, forçando a criação da ARENA e MDB e determinaram a eleição indireta dos governadores, após a oposição vencer em Minas e na Guanabara, e criaram a Lei de Segurança Nacional e a Lei de Imprensa, que lastreava a censura. Em 1966, Lacerda procurou JK e Jango, que até dois anos antes eram seus inimigos figadais, para tentar formar uma frente política pela redemocratização, mas esse esforço não prosperou.

Assim como Lacerda, várias personalidades do mundo artístico e da mídia, entre outros, foram aos poucos se desiludindo com a possibilidade de que os militares entregassem o poder político aos civis. E muita gente boa passou a ter vergonha, após ter apoiado o Golpe em 64. O próprio grupo do Castelo Branco, formando na Escola Superior de Guerra, onde se construiu um pensamento de lideres políticos, empresariais e militares, assumiu uma solução moderada e foi tragado pela linha dura. Há um episódio interessante do Castelo com o General de Gaulle, da França. De Gaulle fez a primeira visita de um chefe de estado de peso após o Golpe. Foi recebido com pompa, mas, impertinente como era, comentou depois que tivera a oportunidade de conhecer um típico ditador sul-americano. Castelo Branco ficou indignado, pois não se via, ou não queria se ver, como um ditador. Querendo ou não, o fato é que ele patrocinou uma quebra da ordem democrática.

O sucessor de Castelo Branco, Costa e Silva, era tido como uma solução de compromisso entre o grupo castelista e a linha dura. Assumiu falando em restabelecer as eleições democráticas, mas foi tragado pelas divisões políticas que cindiam o país. Era criticado e combatido pela esquerda, inclusive com a luta armada, e, ao mesmo tempo, o pessoal da linha dura o pressionava pelo fechamento do regime. Depois disso, o grupo do Castelo só voltaria ao governo em 1974, com Geisel. Então, de 67 a 74, um radicalismo de direita, o mais profundo, reacionário e tosco possível, deu as cartas. A maior parte das lideranças civis foi se desiludindo, o que também aconteceu com uma parte das próprias forças armadas.

Alguns desses atores estão novamente a favor do Golpe?

Muitos deles novamente ultrapassaram a linha da legalidade, das regras do jogo democrático, adotando o seguinte raciocínio: “Em prol de questões materiais mais profundas, não podemos prestar atenção a essas formalidades”.  Em 1964, o discurso era parecido: “Em prol do combate ao Comunismo, temos que reverter a ordem constitucional”.

Mas importa salientar o seguinte: quando se pensa no regime de 1964, pensa-se na truculência, no desapreço pela cultura, no retrocesso social, cultural e político, num país entregue à ignorância e à força bruta. E tem pertinência essa visão. No entanto, é preciso lembrar que alguns dos atores que advogaram rupturas naquele tenso momento de crise eram pessoas esclarecidas. A União Democrática Nacional (UDN), por exemplo, não era somente um grupo de ignorantes, de trogloditas – havia gente tosca, sim, mas havia gente cultivada também: Pedro Aleixo, Afonso Arinos e o próprio Lacerda, que era um intelectual. Em 1957, ainda no governo JK, Lacerda enfrentou ameaça de processo pelo Itamarati, por ter violado correspondência da embaixada brasileira em Buenos Aires com o intuito de “provar” supostos negócios escusos entre Jango e Perón, coisa bem típica dele, que não respeitava limites. Pois bem, foi defendido publicamente nesse episódio por intelectuais e artistas de diversas tendências ideológicas, como Gustavo Corção, Portinari, Mário Pedrosa, Manuel Bandeira, Millôr Fernandes, que assinaram um manifesto para que ele não fosse processado.

Especialmente no governo Jango, grupos esclarecidos fizeram oposição um pouco pelas falhas do Presidente, pelos problemas do esquema do sindicalismo oficial, pelo desgaste do esquema de poder nacional-desenvolvimentista que, com certos interregnos, dava o rumo desde 1950, mas, sobretudo, porque essas falhas eram absolutamente exageradas e distorcidas por uma campanha da mídia. Era a distorção da parte pelo todo, na qual os elementos negativos, que eram uma parte da questão, eram hiperdimensionados, apresentados de maneira seletiva e como se fossem a totalidade dos fatos. Ou seja, havia uma parte da inteligência brasileira simpática à pregação “anti-populista” e essa pregação foi ficando cada vez mais forte. A UDN tornou-se um partido cada vez mais “anti” e menos “pró”. E isso, embora lhe tenha dado impulso no curto prazo, no fundo a desfigurou. Quando se pauta a vida pelo ódio a algo ou alguém, passa-se a ser escravo desse algo ou alguém. E o escravo costuma seguir a sorte do dono. A UDN se desfigurou, desmoronou quando seu objeto de ódio caiu.

Também hoje, a oposição ao PT congrega desde elementos abertamente fascistas e reacionários, infelizmente cada vez mais atuantes, até setores com um pensamento um pouco mais arejado, uma fração da classe média e da intelectualidade que não é exatamente fascista, mas embarcou na proposta golpista. Esses setores correm um grande risco de serem tragados novamente pelo Golpe.

O que faltou ao Governo para ganhar essa classe média “arejada”?

Em primeiro lugar, eu acredito que o poder se distingue em poder político, econômico e ideológico. Não dá para entender um deles sem entender os outros. A política, a economia, a ideologia, são manifestações específicas de poder, que você não entende se não levar em conta as outras formas. O poder político não existe sozinho, não dá para entender o poder político sem entender o poder econômico ou o ideológico, e a recíproca é verdadeira.

O PT conquistou, em 2002, parte expressiva do poder político, mas descuidou demais do poder ideológico. Primeiro, vale ressaltar a questão da comunicação. No governo, o Partido dos Trabalhadores cevou uma mídia que sempre foi enviesada contra ele, alimentou-a e evitou qualquer tipo de confronto, deixando-a pregar para as classes médias, onde a tendência ao elitismo já era forte. O PT também descuidou da construção dos movimentos sociais, tornando-se um partido burocratizado, de gabinete. Não reprimiu esses movimentos sistematicamente, como o governo anterior, mas não continuou a construir e manter sua fermentação.

Por fim, como o próprio Lula disse, o PT pôs os pobres no orçamento, governando para os mais desfavorecidos, melhorando seu poder aquisitivo. Contudo, não realizou algumas reformas estruturais importantes para implantar um estado de bem estar social. Foi adotando, de forma um tanto pragmática, uma perspectiva de um partido socialdemocrata reformista, não revolucionário. Ora, o compromisso de um partido social-democrata é com um estado de bem estar social, mas isto exige reformas estruturais. O Partido descurou de uma reforma no sistema tributário brasileiro – não pode haver estado de bem estar social com uma tributação absolutamente injusta como a nossa, que taxa o consumo e os assalariados e alivia o grande capital e a propriedade. O PT não fez absolutamente nada para mudar isso, assim como não parou de alimentar o rentismo – atualmente, quase metade do orçamento da União é destinada a pagar a dívida pública. Então, os milionários não perderam nada, mas a classe média, especialmente do Sul e Sudeste, ficou espremida e pagou o pato da distribuição de renda, nessa opção do PT pelos muito pobres e os muitos ricos.

Em 2012, Dilma até tentou mexer no setor financeiro. Chegou a baixar os juros, colocar os bancos públicos no circuito para oferecer crédito mais barato, etc. Fez isso, porém, sem mobilizar a sociedade, sem a mídia, sem sequer conversar com os movimentos sociais. Faz parte daquele perfil dela, mais tecnocrático. Houve reação do poder financeiro, que hoje em dia está amalgamado com o setor produtivo nas grandes empresas oligopolistas. Os empresários, então, começaram a aumentar preços. Lembro do episódio em que a Ana Maria Braga apresentou seu programa de TV com um colar de tomates, de tanto que o tomate estava caro, que os preços estavam subindo. Aí, para combater o repique da inflação, o governo foi pressionado a voltar com a alta dos juros, quando o país tinha finalmente chegado a uma taxa de juros razoável, civilizada.

Agora, chegamos a uma conjuntura semelhante ao pré-64: uma conversão de setores da classe dominante e da classe média, a partir da aversão ao governo e à esquerda em geral. Uma frente ampla e heterogênea, que abarca setores evangélicos mais reacionários, alguns fascistas que clamam por Bolsonaro, o PSDB, o PMDB, a grande mídia, que funcionou como principal esteio da oposição, por razões ideológicas e também conjunturais. Ressuscitaram até o fantasma do anticomunismo, chamam a Dilma de comunista! Inacreditável!

Isto tem a ver com a crise da mídia tradicional?

Há uma crise estrutural da mídia mundial, de perda de audiência dos meios tradicionais para a internet, as redes sociais. Como apontou o jornalista João Paulo Cunha numa palestra que deu no CERBRAS em 2015, no modelo tradicional da mídia, havia – até certo ponto idealizado, mas em boa medida efetivo - um circulo virtuoso entre conteúdo, audiência e publicidade. Quem tinha conteúdo de qualidade tinha audiência; quem tinha audiência tinha verba publicitária. Hoje, essas coisas estão se dissociando, pois a audiência migrou para o móvel, mas a internet não produz conteúdo na mesma quantidade e qualidade que a mídia tradicional, a qual ainda define as pautas, enquanto sangra em audiência. Uma das argumentações do pessoal ligado ao PT, quando se pedia ao Governo uma atitude mais firme frente aos grandes meios de comunicação, era que essa mídia estava se tornando irrelevante, obsoleta, frente às redes sociais.

Ora, o que houve foi um curto-circuito no círculo virtuoso entre conteúdo, audiência e publicidade, pois conteúdo e audiência se dissociaram, mas a mídia tradicional não ficou irrelevante. A audiência migrou em grande parte para a internet, mas a produção de conteúdo não. O interessante é que, hoje, a mídia nem vende tanta publicidade, propriamente. Vende projetos de poder e tenta mudar drasticamente a conjuntura para resolver a sua própria crise. Para compensar politicamente seu poder econômico decadente, é crucial para os grandes meios de comunicação ter segurança política, o que lhes possibilitaria atravessar esse processo para o qual ainda estão se adaptando. Não acredito que a grande mídia tradicional vá desaparecer. Penso que ela vai se encolher e encontrar seu novo nicho, mas isso ainda está em curso.

Por que as tendências antidemocráticas que você relatou são tão recorrentes na história do Brasil?

Esta é uma pergunta fundamental. Eu acredito que um fator é a consciência da fragilidade da posição que a classe média brasileira ocupa, que gera um medo contra a participação popular. O Brasil é um país que está estruturado, em termos políticos, econômicos, ideológicos, em direção ao elitismo. Numa ordem elitista, o espaço da classe média é sempre rarefeito e errático, a tendência é a polarização da sociedade entre os muito ricos e os muito pobres. A classe media brasileira, como as outras, sempre se viu entre os de cima e os de baixo, o povo e os milionários. Parte dela tendeu a simpatizar com o povo, mas uma parcela mais expressiva se via como setor privilegiado. Evidentemente, essa visão é um absurdo: nossa classe média é intensamente explorada e paga o pato de uma economia oligopolizada. Seus principais valores são a realização na vida privada, no círculo de família e amigos - não passando daí sua solidariedade social - e o consumismo. Mas, como consumidora, paga preços altíssimos por quase tudo e é desrespeitada dia e noite, além de ser mal atendida em serviços como saúde, educação, segurança. Ela tinha na exploração da imensa maioria dos subempregados e da economia informal uma espécie de respiradouro econômico e simbólico. Olhava para baixo, via um mar de pobreza e se achava privilegiada por não estar nele. Em 2011, Fernando Henrique Cardoso, que é o cérebro e a eminência parda do PSDB, disse que a oposição a Dilma devia desistir de conquistar o povão e focar na classe média. Estava certo: a estratégia em boa medida prosperou.

Agora, só mais uma coisa: quando se fala, nessa discussão específica, em classe média, estou falando em termos ideológicos. A classe média brasileira, em termos ideológicos, é bem maior do que é em termos estritamente econômicos, da renda e do padrão de vida material. Uma família pode ter uma renda pequena, que a tire da pobreza que a faz “passar necessidade”, como o povo diz. Esta renda, todavia, é insuficiente para classificá-la como classe média, mas, se ela compra à prestação nas lojas de departamento, financia uma moto, coloca (à custa de sacrifícios imensos) o filho na faculdade, o ethos dela vai ser de classe média, inclusive porque ela quer ser assim, porque é assim que ela vai se sentir incluída na sociedade. 

Então, ideologicamente, a oposição e a grande mídia doutrinaram boa parte da classe média, mesmo aquela que é mais ideológica que propriamente econômica, a partir do terreno fértil de suas fragilidades históricas, seu medo, seu abandono pelo projeto petista e, recentemente, pela recessão absurda em que o governo Dilma lançou o país. Trabalhou esse terreno fértil atacando o PT com a mesma ferramenta da distorção da parte pelo todo que foi usada em 1964.

O PT, em certa medida, modificou para melhor o Estado brasileiro, não só pelas políticas sociais, mas porque, no tocante à corrupção, criou e fortaleceu uma série de mecanismos de detecção e combate. Mas, paradoxalmente, cultivou um pragmatismo ingênuo e tacanho que o levou a entrar em esquemas espúrios de financiamento de campanha, de atuação política e parlamentar e de relação com o grande capital – coisas do modus operandi do Estado brasileiro, que o PT não inventou, mas que só evitaria com uma reforma política democratizante. A distorção da parte pelo todo é apresentar essa segunda ordem de coisas como a realidade plena, fazendo encarnar no PT a demonização da política, dos políticos, do Estado, como se as oligarquias não tivessem o Estado e a política como esteios de seu poder.

O Brasil é um país onde quase todos se sentem explorados, não sem razão, e se indignam com isso. A operação ideológica mais astuta e bem sucedida dos donos do poder foi canalizar essa indignação contra o Estado e  os políticos: “o povo não tem saúde e educação por causa desses políticos vagabundos corruptos”, brada a classe média “educada” pela grande mídia e pelo WhatSapp. Não sabe que a evasão fiscal é de cerca de R$ 120 bilhões por ano, que mais de 40% do gasto público, cerca de R$ 1 trilhão anual, é com o serviço da dívida pública, que o desperdício – por má gestão e descaso - de dinheiro público é de aproximadamente 25%, algo em torno de R$ 275 bilhões por ano, e que esse desperdício é maior justamente nas áreas sociais e nos municípios menores e mais pobres. Segundo um estudo promovido pela FIESP anos atrás, a corrupção custaria ao país bem menos, entre R$ 50 e 80 bilhões por ano. Não estou dizendo, de forma alguma, que seja pouco, que a corrupção não seja importante. Ela é uma lesão no tecido da solidariedade e da confiança sociais, mas a perversão é bem mais profunda: falta escola, hospital e segurança para o povo por motivos bem mais complexos do que uma suposta falta de “alguém com peito para botar esses deputados safados na cadeia”!

Já as elites nunca se conciliaram com o povo. Não se trata de dizer que são más e coisa e tal. Isto é uma herança histórica, uma situação herdada do passado, que se torna até uma armadilha para os membros das elites, se considerados individualmente. O esteio de poder das elites brasileiras é a capacidade de união entre si, de conciliação para o objetivo fundamental da manutenção do status quo. Mesmo os membros que têm sensibilidade para a desigualdade acham que o problema é dos outros. E o Estado é esse grande outro. Isto conflui para uma aversão à participação popular, encarada como “baderna”, “desordem”. Os valores do mundo ocidental, como a democracia e a vida civilizada, estão presentes, o que faz de uma ditadura aberta algo vergonhoso. Veem como ideal uma democracia restrita e formal, com o mínimo de sobressaltos possíveis, sem nesgas de poder e participação popular. Uma democracia sem muita substância democrática, portanto, mas com eleições, sem censura oficial, etc. A representação política no Legislativo e no Executivo, com essas campanhas políticas cada vez mais caras, nas quais a força do dinheiro campeava, era um ponto a favor dessa democracia restrita. Agora, que as doações empresariais foram proibidas, não se sabe como a coisa vai ficar. Mas, dentro do pragmatismo que caracteriza as elites, principalmente os empresários, pasa-se a aceitar uma ditadura aberta, como uma espécie de “mal menor”, como ocorreu durante o regime militar.

Ao que tudo indica, então, o passado está se repetindo?

Os grupos que querem uma democracia restrita deveriam ter cuidado com alianças estratégicas com grupos abertamente ditatoriais. Eles usam os chuta-portas, que são muito úteis em determinadas situações de confronto aberto contra o inimigo, caminham junto com eles, esperando que, a partir de certo momento, os chuta-portas se recolham e a “democracia” segura que almejam, limpa dos elementos “perturbadores”, se estabeleça.

O problema é combinar com os chuta-portas que eles se recolham depois de feito seu papel de passar por cima da lei, de usar e estimular o ódio, a agressão. A escalada do ódio político no Brasil é alarmante, estão pipocando em todo lugar agressões, não só no campo das redes sociais, mas agressões físicas também. Muitas forças políticas têm apoiado a Lava Jato, mas esta, se levada às últimas consequências e com os parâmetros que tem usado, pode destruir o sistema político, a exemplo do que aconteceu na Itália. “Ótimo, vamos prender todos os políticos!”, grita o sujeito de classe média radicalizado ou pensa o procurador criado numa cultura do Ministério Público que vê a política como algo intrinsecamente ruim. Mas acontece que, se não se modificarem as instituições formais e informais que criam janelas para a corrupção, podemos prender todos os políticos atuais, que a corrupção vai renascer com outros que os substituírem.

Então, querem tirar a Dilma, urgentemente, mesmo com um processo de Impeachment cujo fundamento é frágil, para por um freio de arrumação na Lava Jato. O acordo PSDB-PMDB é isso. Acontece que, pela própria dinâmica de radicalização, a Lava jato já criou perna própria. Seu gás inicial veio da grande mídia e da conivência dos tribunais superiores. O ideal para a turma da democracia restrita é que a Lava Jato atinja só alguns, só o PT, e que inviabilize Lula em 2018. Mas não se sabe onde isso vai terminar. É um jogo perigoso romper a legalidade democrática e os princípios constitucionais. Depois, fica um vácuo de poder que, se não é resolvido, vem um oportunista, um salvador da pátria a la Berlusconi, e preenche. O arbítrio de uma figura dessas não tem tendência alguma à auto-contenção. Será que eles acreditam que depois vão conseguir cortar o gás dos chuta-portas? Será que, daqui a alguns anos, vai ter muita gente com vergonha de admitir de que lado ficou em 2016, como tantos que se envergonharam de ter apoiado a subversão da democracia em 1964?

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