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Criação de comitê reforça luta pelos direitos humanos em Goiás

Estado, que mantém três presos políticos, preocupa movimentos sociais e grupos de esquerda pelo contexto de repressão

Goiás |
Lançamento do Comitê contou com a presença de João Pedro Stédile, da direção nacional do MST
Lançamento do Comitê contou com a presença de João Pedro Stédile, da direção nacional do MST - Cristiane Passos/CPT-Nacional

“Pisando na terra / plantando a semente / ninguém mais segura / romperam-se as correntes / nem cerca nem lei segura essa gente / a lutar pela vida olhando pra frente". Foi com esses versos do militante Ademar Bogo que a também militante Vanderlúcia de Oliveira, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), abriu a cerimônia de lançamento do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno. 

Realizado na noite dessa quinta-feira (16), na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), o evento, que contou com a presença de João Pedro Stédile, da direção nacional do MST, marcou o início de uma articulação interinstitucional que objetiva unir forças para lutar contra o processo de repressão crescente aos movimentos populares no Estado, que tem atualmente três presos políticos. Integram o Comitê representações do campo, da cidade, de centrais sindicais, partidos políticos, universidades, entre outros segmentos. 

Inicialmente formado por cerca de 40 entidades, o Comitê ganhou ao longo do dia, a adesão de mais dezenas de movimentos e instituições interessadas em engrossar o coro da luta democrática em Goiás, estado com uma forte tradição de conflitos de terra e onde foram registradas 37 ocorrências no ano passado. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os conflitos envolveram mais de 16 mil famílias. 

“Este é um momento de refletir sobre a necessidade da nossa resposta e da nossa ousadia em continuar a luta diante deste contexto, que nos exige ainda mais coragem de ocupar o latifúndio e lutar por direitos. Essa é a nossa arma”, disse Jéssica Brito, do Movimento dos Conselhos Populares (MCP), durante a abertura da cerimônia. 

Para Ângela Cristina Ferreira, secretária-executiva do Comitê, a atual situação dos movimentos em Goiás  é alarmante. “Precisamos organizar e monitorar todas as violações de direitos humanos, denunciando as atrocidades e dando visibilidade ao tema para, inclusive, construirmos agendas conjuntas e promovermos uma articulação política em todos os espaços”, disse. 

Criminalização e conjuntura 

Na visão dos movimentos, o atual momento de violenta opressão aos grupos de esquerda em Goiás não pode ser percebido como um fato isolado. “Essa é uma pauta diretamente relacionada à conjuntura política do país e a criminalização não é exclusivamente com o MST ou em Goiás. É contra a luta popular e a esquerda em geral. Precisamos estar atentos”, salientou Ângela Cristina.

Essa perspectiva também esteve no foco do discurso de Stédile, para quem o país atravessa uma crise de natureza política, econômica, social e ambiental. “As razões são amplas e, em cada momento desse de crise, só existe uma saída, que é as forças populares se articulando em torno de um novo projeto que seja alternativo a tudo isso. Até mesmo a esquerda às vezes tende a simplificar a análise, colocando a culpa exclusivamente no governo Dilma, que, de fato, teve uma segunda gestão muito ruim, mas as razões da crise não estão só no desempenho dela. Tem raízes no sistema capitalista mundial, diante do qual nossa economia ainda é periférica”, pontuou, amplificando o olhar. 

O Direito e a causa agrária 

A situação da luta agrária em Goiás tem provocado também, ao longo do tempo, um maior envolvimento da academia com a temática. Segundo o pesquisador e professor da Faculdade de Direito da UFG Fernando Antonio de Carvalho, a instituição, que já oferece cursos de especialização e mestrado na área, agora vai criar oficialmente um centro de estudos de Direito Agrário. 

Os acadêmicos acreditam que, ao produzir conhecimento sobre o assunto, o núcleo pode contribuir para uma maior maturidade das discussões que orbitam em torno do tema. “A criação do centro significa que haverá mais autonomia para pensar as questões complexas do Direito Agrário, o que é importante neste momento de retrocesso dos direitos humanos. A ideia é que a luta pela terra, pela dignidade humana e pela liberdade de lutar seja um objeto de estudo e de prática política cotidiana dos nossos alunos e professores”, explicou o professor. 

Para Martira Macedo, membro da regional Goiás do movimento “Juristas pela Democracia”, é preciso fortalecer a luta por um Direito mais engajado contra todos os tipos de discriminação. “As nossas prisões estão cheias de pobres, que sempre foram alvo do sistema penal, por isso mais do que nunca precisamos ter coragem de fazer as críticas necessárias ao sistema de Justiça e seus operadores”.

Ela ressaltou ainda a necessidade de os juristas comprometidos com os direitos humanos lutarem por um novo referencial teórico. “Nós somos uma sociedade de origem escravocrata, que importou ideias fascistas e isso se refletiu na legislação. Precisamos de um outro referencial, que veja o Direito como liberdade, porque um sistema penal que criminaliza os movimentos sociais não merece o nosso respeito. Temos que lutar por uma nova ordem jurídica e pela efetivação da Constituição Federal”, orientou. 

O caso dos militantes presos 

No dia 14 de abril, os pequenos agricultores Luiz Batista Borges, Diessyka Santana e Natalino de Jesus, do acampamento Padre Josimo (GO), tiveram mandados de prisão expedidos por três juízes de comarcas do interior de Goiás. A decisão  está relacionada à ocupação de uma parte da usina Santa Helena, em recuperação judicial, onde há mais de 1.500 famílias ligadas ao MST. A Justiça também expediu mandado contra o geógrafo José Valdir Misnerovicz, conhecido pela militância em defesa da reforma agrária.

Atualmente Luiz e Valdir estão presos e os outros dois militantes foram exilados pelo Movimento, como forma de proteção. Todos eles são alvo de um processo judicial que busca enquadrar o MST como organização criminosa, com base na Lei nº 12.850/2013. O caso vem provocando reações de diversos movimentos, instituições, acadêmicos e militantes em geral e foi o estopim para a criação do Comitê Goiano de Direitos Humanos. 

“Nós não podemos aceitar que posturas criminalizadoras dos movimentos sociais sejam ainda um instrumento utilizado para proteger o latifúndio em Goiás. Por isso repudiamos a postura de todos os atores envolvidos com essas prisões”, disse o secretário municipal de Direitos Humanos de Goiânia, Pedro Wilson, que compôs a mesa de lançamento do Comitê. 

Um dos momentos mais emocionantes da cerimônia foi a leitura de uma carta escrita pelo geógrafo Valdir e direcionada ao MST. “A nossa melhor resposta para a burguesia, para o estado burguês e para o latifúndio é fazer lutas massivas. Não é momento de recuar. É momento de mostrar nossa força, ousadia e criatividade”, disse o militante, pedindo que o Movimento resista diante das adversidades. Ele foi aplaudido de pé por todos os presentes. 

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