Amazônia

Exploração de latifundiários transforma vilarejo em campo de conflito aberto

O distrito União Bandeirantes tem 25 mil moradores e sequer deveria existir, pelo menos não do ponto de vista ambiental

Especial para o Brasil de Fato |
Hoje a existência do distrito é, ao mesmo tempo, fruto e retrato da inexistência de uma reforma agrária eficiente no país e da morosidade do Poder Público.
Hoje a existência do distrito é, ao mesmo tempo, fruto e retrato da inexistência de uma reforma agrária eficiente no país e da morosidade do Poder Público. - Reprodução / Facebook: União Bandeirantes, Porto Velho - RO

Não é fácil chegar a União Bandeirantes. A noroeste de Rondônia, a cerca de 80 quilômetros (km) do distrito de Jaci Paraná e a 160 km do centro da capital Porto Velho, a localidade possui poucas vias de acesso. As que existem são de terra, estreitas e esburacadas, fazendo com que o trajeto entre a BR-364 e a comunidade seja penoso e demorado. A longa estrada de chão tem como paisagem cercas, pastos e gados com o início do asfalto no chão anunciando o fim da zona rural e começo da zona urbana duas horas depois de sair da rodovia.

O isolamento de União Bandeirantes não é por acaso. Na verdade, o lugar que hoje abriga aproximadamente 25 mil habitantes e possui o status de distrito de Porto Velho, sequer deveria existir. Pelo menos não do ponto de vista ambiental. O distrito está localizado na subzona 2.1 do Zoneamento Socioeconômico e ecológico, de ocupação restrita, no entorno da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, Flona Bom Futuro e Terra Indígena Karipuna, em Porto Velho.

Hoje a existência do distrito é, ao mesmo tempo, fruto e retrato da inexistência de uma reforma agrária eficiente no país e da morosidade do Poder Público. Além disso, o bate cabeça entre políticas ambientais e fundiárias abre novamente uma discussão complexa sobre a necessidade de sobrevivência da terra e da preservação ambiental, fazendo deste lugar o ambiente perfeito para os conflitos de terra.

A avenida principal de União Bandeirantes possui asfalto, o que já é bem mais que a maior parte dos outros distritos de Porto Velho. As maiores opções de mercado também mostram um desenvolvimento maior do que o das comunidades vizinhas. As ruas ao redor, entretanto, mostram uma realidade diferente. Os enormes buracos fazem o transitar dos carros uma tarefa quase impossível.

Sentado na varanda simples da casa de madeira construída por ele mesmo, José Aparecido de Oliveira, 48 anos, – também conhecido como Cido – é uma espécie de museu vivo sobre a origem de União Bandeirantes. Ele era um dos líderes do movimento que planejou o início do assentamento. Com dificuldades de se acomodar na cadeira por conta de uma hérnia de disco que o tem mantido afastado das atividades do campo, ele conta como se deu o início do projeto de cidade.

O início da ocupação de União Bandeirantes é recente. Oficialmente, começou em 1999 a partir da ocupação de terras já desmatadas para a criação de um assentamento de grupos dissidentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As primeiras ocupações, contudo, vieram muito antes disso, com a chegada de grandes fazendeiros na região. Sem nenhum tipo de fiscalização, não se sabe como estes grupos e famílias ligadas à agropecuária conseguiram os documentos das terras, uma vez que o lugar era da União.

“A ideia surgiu de um movimento a parte do MST. Já havia uma grande área desmatada por aqui, feito para criação de gado. Foi então que surgiu a ideia de criar um assentamento, a partir da invasão dessas terras que não eram produtivas. As pessoas ficaram sabendo e foram migrando de outros lugares de Rondônia e outros estados para cá e criou-se o vilarejo”, diz Cido, que afirma ter tido a anuência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a ocupação.

Segundo Cido, o início da ocupação foi menos traumático que a maioria dos casos que envolvem fazendeiros e assentamentos. A ideia de que aproximação do Poder Público poderia trazer como consequência a melhora da infraestrutura que permitisse o escoamento da produção era atraente para quem trabalhava com agropecuária na região. “O próprio Incra começou a intermediar a negociação entre os assentamentos e os fazendeiros da região, o que facilitou muito”, lembra.

O início pacífico não durou tanto tempo. Dois anos depois, os primeiros conflitos começaram a surgir. A chegada de outras famílias de vários locais do país e, principalmente, de especuladores com interesse na exploração predatória do meio ambiente tornou o convívio entre os assentamentos e fazendeiros instável.

Nesse novo fluxo migratório, cresceu a venda ilegal de terras e a ocupação de novos territórios que não estavam no acordo anterior. “Muitas dessas famílias que chegaram depois não respeitavam a demarcação das terras que havia sido definido. Havia muita violência, porque o Estado era nulo e não havia como ter controle dessas pessoas que estavam chegando”, afirma Cido.

Não demorou muito para que o mercado da extração ilegal de madeira se instalasse na região, aproveitando a ocupação já realizada e a falta de fiscalização. Segundo Cido, que já ocupou o cargo de administrador de União Bandeirante – espécie de líder comunitário escolhido entre os moradores para dialogar com representantes do poder público -, até 2004 o local chegou a abrigar mais de 20 empresas, entre grandes madeireiras, estufas, marcenarias e serrarias.

A degradação ambiental na reserva foi tão grande, que em 2003 foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Conflitos Fundiários, com o objetivo de conhecer, apurar e relatar graves conflitos agrários e fundiários, furtos de madeira e desmatamentos sem precedentes na região.

Em 2004, o Ministério Público Federal chegou a ordenar a desocupação do território com a proibição de assentamentos, regularização fundiária e execução de serviços de infraestrutura pública na região. A decisão causou mais conflitos e o resultado foi a mobilização de movimentos do campo, comunidades, igrejas, políticos, Estado e, também, o Ministério Público da Infância e Juventude, em favor da população atingida pela medida judicial.

“Eu conversava com o pessoal do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e dizia que o governo deveria criar uma política para quem desmatou recuperar a área com árvores típicas da região, como o açaí. Deveria haver um incentivo para corrigir o erro que cometemos no passado. Muitos de nós não tínhamos informação nenhuma sobre como lidar com a terra. A única coisa que sabíamos é que precisávamos desmatar para poder sobreviver. Mas a política ambiental hoje não direciona para outras atividades. Ainda temos tempo de corrigir isso, dando palestras, fazendo prevenções e ajudando esse homem do campo”, acredita Cido.

Apesar da população ter crescido durante esses anos, a infraestrutura não acompanhou a demanda. “Hoje ainda temos muita deficiência na saúde e educação. Faltam professores e já ficamos 45 dias sem ter ambulância”, afirma.

O IBAMA tenta se adequar e resolver a situação. Mas é complicado. Segundo o superintendente do Ibama em Rondônia, Renê Luiz de Oliveira, o órgão tem realizado constantemente a operação Onda Verde. O objetivo é combater crimes ambientais na região, especialmente a extração irregular de madeira.

Ainda de acordo com Oliveira, a região onde está União Bandeirantes é a que mais possui números de embargos logrados pelo Ibama em toda a floresta amazônica. “Desde que a região começou a receber um grande volume populacional, no começo dos anos 2000, o Ibama tem feito esse trabalho de maneira ininterrupta”, afirma.

O trabalho do órgão tem resultado em sanções e ameaças. Nem sempre os afetados, madeireiras ilegais principalmente, aceitam mudanças ou o braço da lei. No dia 28 de maio, uma equipe da Operação Onda Verde, composta por três agentes ambientais do órgão e nove policiais ambientais do Batalhão de Polícia Ambiental de Rondônia sofreu uma emboscada por um grupo de 60 pessoas. A intenção do ataque era impedir a retirada de maquinário utilizado na exploração ilegal de madeiras em uma terra indígena.

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