Governo interino

Manifestação repudia possível indicação de general do Exército para direção da Funai

Roberto Peternelli, militar reformado ligado à bancada evangélica, é cogitado para dirigir o órgão

Brasília (DF) |
“A nomeação dele seria uma remilitarização da Funai, pois traria uma atuação nociva em relação aos direitos indígenas", diz um servidor do órgão
“A nomeação dele seria uma remilitarização da Funai, pois traria uma atuação nociva em relação aos direitos indígenas", diz um servidor do órgão - Divulgação

Na tarde desta segunda-feira (4), um grupo de manifestantes realizou um protesto em frente ao Ministério da Justiça (MJ) contra a possível indicação do general da reserva do Exército Roberto Peternelli para assumir a diretoria da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Continua após publicidade

As especulações em torno do nome dele vêm preocupando entidades e grupos ligados à causa indígena, que lançaram notas de repúdio contra a articulação política que pode resultar na nomeação do general. Os movimentos interpretam essa possibilidade como um retorno à política ditatorial de massacre dos povos indígenas e reclamam de crescente sucateamento da Funai.

Filiado ao Partido Social Cristão (PSC), Peternelli estaria sendo cogitado por políticos vinculados ao PSC e correligionários para assumir a pasta, que é vinculada ao MJ. Conhecido pela ligação com a bancada evangélica do Congresso e pela proximidade com parlamentares contrários aos direitos indígenas, o general costuma exaltar a ditadura civil-militar brasileira em suas redes sociais.

“A nomeação dele seria uma remilitarização da Funai, pois traria uma atuação nociva em relação aos direitos indígenas. Os militares mataram muitos índios no período ditatorial. Nós sabemos disso e não queremos que esse tipo de coisa se repita. Sabemos também que o que eles fizeram pelos indígenas que poderia ser interpretado como positivo, como, por exemplo, a demarcação do Parque do Xingu, foi a troco de muita repressão ao jeito de ser das comunidades e de muita corrupção, incluindo conluio com empresas. Houve muita truculência. Nossa preocupação é que a gente tenha um gerenciamento do órgão que não respeite as leis brasileiras. Sabemos que o governo Temer tem ligação clara com a indústria da mineração e com as empreiteiras. Então, ele vai querer avançar na Funai com suas pautas”, disse um servidor do órgão que não quis se identificar.

Ele integra o coletivo “Servidores Mobilizados”, que reúne diversos funcionários da Funai articulados contra o avanço de pautas conservadoras no atual contexto político. Durante a mobilização desta segunda, organizada por eles e outros militantes, foi protocolado no MJ um abaixo-assinado com cerca de 4 mil assinaturas repudiando a possível indicação de Peternelli para o órgão. Na ocasião, o grupo foi recebido por um representante do ministério.

Notas de repúdio

As especulações em torno do nome de Peternelli para a diretoria da Funai provocaram a reação de diversas entidades e segmentos, incluindo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Eles lançaram notas de repúdio interpretando essa possibilidade como uma ofensiva contra as comunidades indígenas.

“Sem sombra de dúvida, significaria um retrocesso da perspectiva do Estado brasileiro em relação aos índios, retroagindo para uma postura do militarismo integracionista. Com a Carta Magna de 88, nós tivemos uma grande mudança, uma vez que ela reconhece a legitimidade dos povos indígenas, valorizando a língua, os costumes e a legitimidade da demarcação das terras. A indicação de um militar, ainda mais um saudoso da ditadura, indicaria que este governo golpista de Temer nos faria retornar a uma perspectiva que foi vencida pela Constituição”, observa o secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

A preocupação das entidades encontra justificativa nos números: segundo o relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), pelo menos 8.350 indígenas foram mortos como resultado da ação direta ou da omissão de agentes estatais durante a ditadura.

O documento afirma ainda que o número de assassinatos no período deve ser substancialmente maior, uma vez que o levantamento das estatísticas não mapeou todas as comunidades afetadas pelos militares. Entre outras coisas, a CNV cita ainda a existência de presídios clandestinos destinados à tortura de indígenas no período de vigência da ditadura.

Essa referência no passado histórico fez com que profissionais da área acadêmica também se pronunciassem contra o nome do general como possível gestor da Funai. “Ele representa uma perversa congregação de interesses anti-indígenas ligados às bancadas evangélica e ruralista e ao lobby das mineradoras”, disse um grupo de pesquisadores em nota.

Para a indígena Daiara Tukano, a medida estaria em sintonia com outras ações que ocorrem paralelamente à articulação política de definição da nova gestão da Funai.

“Faz parte de um conjunto de estratégias que podemos interpretar como a liquidação dos povos indígenas e que se traduz nas cenas horrorosas de genocídio e de ataques que temos visto no Mato Grosso do Sul e em outros lugares do país. (…) Este é um momento em que vivemos retrocessos e não podemos aceitar a indicação de Peternelli porque seria a militarização da política indigenista”, disse ela, que é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB).

Sucateamento

Entre outras coisas, as entidades vêm demonstrando preocupação com o Decreto 8785/16, que trata da devolução de postos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) do MJ ao Ministério do Planejamento (MPOG).

“Sabemos que o corte do MJ é o maior de todos os ministérios, e ele está exigindo que um terço da sua cota de cortes saia somente dos quadros da Funai, o que é preocupante para todos nós”, disse Buzatto, do Cimi.

Outra medida considerada grave pelos movimentos e pelas entidades é a Portaria 611/16, que trata do bloqueio de despesas. A Funai, que teve redução orçamentária de mais de 20% de 2015 para 2016, enfrenta sérias dificuldades de manutenção das ações por falta de verba.

“Há um sucateamento sistemático. A Funai tem uma pauta enorme e, funcionando com orçamento reduzido, não consegue atender àquilo que está na lei. Isso é um reflexo da própria omissão do Estado, conduzido por um grupo político que não reconhece a relevância dos povos indígenas e de seus direitos fundamentais. Os índios são sobreviventes de um enorme genocídio e ainda estão à margem da ideia de Brasil, sofrendo violências atrozes”, afirmou Daiara.

PEC 215/00

Os movimentos também se queixam de iniciativas legislativas que colocam em risco os direitos da população indígena, como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00. Ela está no cerne das preocupações das entidades porque propõe que a demarcação das terras indígenas fique a cargo do Poder Legislativo, e não mais do Executivo Federal. O PSC, partido de Peternelli, é um dos apoiadores da proposta.

Para os militantes, a mudança deixaria a política indigenista ainda mais vulnerável ao jogo de forças que caracteriza o Congresso Nacional, comprometendo a garantia de direitos.

“Será uma truculência muito grande se essa PEC um dia passar, por isso precisamos ficar atentos”, disse o membro do coletivo “Servidores Mobilizados” que não quis se identificar.

De autoria do então deputado Almir Sá, que hoje não está mais na Câmara, a PEC foi aprovada em comissão especial e aguarda votação em plenário.

O governo

O Brasil de Fato procurou a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça para tratar das críticas feitas pelos movimentos e também da possível indicação do nome de Peternelli para a Funai, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

Edição: ---