Festival

“Acampamentos não resistiriam se não fossem as músicas”

Dirigente do MST afirma que movimentos sociais precisam incorporar arte e cultura em sua rotina

Belo Horizonte |
Segundo Ênio, objetivo do festival é utilizar atividades culturais para a unidade do movimento sem-terra
Segundo Ênio, objetivo do festival é utilizar atividades culturais para a unidade do movimento sem-terra - Rafaella Dotta

O Festival Nacional de Arte e Cultura da Reforma Agrária chega a Belo Horizonte com toneladas de alimentos, mas também com litros e litros de arte. Segundo Ênio Bohnenberger, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo menos 16 estados estarão representados na mostra de música e poesia sem-terra, de 20 a 24 de julho.
Este é o resultado de um movimento que tem a cultura como sobrevivência política e de um processo que começou oficialmente em 1999, com o primeiro Festival de Cultura do MST, na cidade de Palmeira das Missões (Rio Grande do Sul). Desde então, o MST já gravou 12 CDs, realizou diversos ensaios fotográficos, é um dos fundadores da editora Expressão Popular, que vende cerca de 20 mil livros por mês.
Continuando em números, o Festival Nacional de Arte e Cultura da Reforma Agrária contará com 23 shows, 7 debates temáticos e 200 toneladas de alimentos produzidos nos acampamentos e assentamentos do MST de todo o país.
Brasil de Fato: Qual a intenção deste festival?
Ênio Bohnenberger
: O objetivo é utilizar essas atividades culturais para a unidade do movimento sem-terra. Segundo, é divulgar o que a gente produz no campo. A televisão, quando mostra o MST, mostra o despejo, a violência, a prisão. Não mostra toda a vida que a gente construiu. Fizemos a Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo, e nossa página na internet teve 5 milhões de visualizações, mas não teve nenhuma matéria na Rede Globo. Com o Festival a gente quer mostrar para a sociedade o que a gente é, o que a gente faz diariamente. Desde a produção de alimentos até a cultura das nossas escolas.
A relação entre arte e política é mesmo possível?
Claro. Em todas as revoluções da história, um dos componentes fundamentais foram a arte e a cultura. Pegamos como exemplos a Comuna de Paris, a revolução russa, a revolução cubana. As pessoas que visitam Cuba ficam impressionadas com cidadãos saindo do trabalho e indo em multidão para o cinema. Dizem estatísticas que existe pelo menos um músico em cada família cubana. Não é só possível como é necessário envolver a cultura como elemento politizador. No Brasil o que ficou marcado na resistência à ditadura militar foram as músicas dos festivais populares, que até hoje são cantadas, mais de 30 anos depois.
Para que serve o estímulo à cultura no movimento?
Uma vez, nós estávamos iniciando nosso movimento no campo na década de 80, o coronel Curió cercou nosso acampamento. No meio desse cerco havia algumas árvores e crianças nossas brincavam nos galhos. Nesse momento passou um frei e ouviu o canto das crianças: “a classe roceira e a classe operária / ansiosa esperam a reforma agrária”. E o frei disse “esse movimento tem futuro. Estão ensinando as crianças!”. Quando o hábito do movimento vira cultura, significa que está enraizando a ideologia.
Qual o papel da cultura hoje?
Veja, a ditadura esmagou o movimento camponês e operário, mas isso durou 20 anos. Depois eles ressurgiram com muito mais força e com mais qualidade. Enganam-se aqueles que, porque estamos numa conjuntura muito difícil, acham que estamos derrotados. A TV mostra violência a toda hora, mas não mostra o que tem se produzido na cultura. Ela está surgindo na periferia da sociedade e está cumprindo um papel fundamental. Basta a gente ver: o carnaval de Belo Horizonte, surgiu de onde? Da periferia, do povo, que se cansou de ficar sentado vendo televisão. Nós temos um acúmulo de aprendizado que vai servir para as próximas gerações, que vão fazer muito melhor se incorporarmos o elemento cultural deste nosso período.
Qual o papel da cultura para o MST?
Muitos dos nossos acampamentos não resistiriam se não fossem as músicas, e a cultura muitas vezes religiosa. Quando a gente rezava, não era uma reza para um deus que ia salvar a gente, mas para buscar força. Assim é a cultura, que nos dá um elemento extraordinário para a luta. A música e a poesia num primeiro momento foram as coisas que mais se expressaram no movimento. Logo em seguida nossas reuniões passaram a ter o elemento que chamamos de mística, que é quase uma apresentação de teatro, mas um teatro real, não inventado. Nós percebemos que a cultura se tornou um elemento fundamental para a organização do nosso movimento. Desde direção nacional até reunião de núcleo, ou se abre com uma música ou poesia, ou os dois juntos. O que nos unifica muito em termos nacionais é a música.
Quais propostas o MST tem para o campo, em questão cultural?
Nós queremos incorporar a tecnologia no nosso hábito cultural. Só sobreviver na enxada, no chão duro, aquele camponês rude que tem que trabalhar 15 horas por dia, não dá. Nossa juventude não vai aguentar. Assim, temos nos empenhado em duas coisas fundamentais: levar tecnologia para o campo para produzir alimentos com menos esforço, e levar também a cultura do teatro, do cinema e do próprio celular, que é um elemento da cidade.
Por que realizar o Festival Nacional em Belo Horizonte?
Escolhemos BH porque é uma das capitais mais importante do país e porque tem uma cultura da periferia renascendo aqui, e está cumprindo um papel fundamental. Basta a gente ver o carnaval. Isso pode nos ajudar a entender como vamos enfrentar o golpe que está acontecendo no país. O festival não é um evento que no dia 24 de julho acaba. Nós queremos transformá-lo em uma luta política por democracia.

 

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