Ruas ocupadas

Milhares de argentinos se levantam contra o "tarifaço" do Macri

“Temos um governo de ricos que governa para ricos e, nesse sentido, as condições de vida têm piorado", diz militante

São Paulo (SP) |
Mesmo com chuva, em Buenos Aires, havia mais de 20 pontos de mobilização contra o "tarifaço"
Mesmo com chuva, em Buenos Aires, havia mais de 20 pontos de mobilização contra o "tarifaço" - Frente de Comunicadores Populares por la Defensa del Pueblo

Na noite desta quinta-feira (14), milhares de pessoas se manifestaram em diversos pontos da Argentina para dizer não aos “tarifaços”. Frente ao radical aumento nos serviços de gás, água, energia e transporte implementado pelo governo de Mauricio Macri (Cambiemos), foi lançada uma convocatória multisetorial para repudiar as medidas do governo macrista e pedir a renúncia do ministro de energia, Eugenio Arangurem.

Sob o lema #14JNoAlTarifazo, #MacriParáLaMano, perto das 20h da quinta-feira começou um processo de mobilização popular nas ruas de diversas cidades da Argentina, com panela e batuques em mão, debates e barulhos.

“Não sei quem começou com a convocatória, mas as ruas estavam cheias de pessoas, alguns com bandeiras, outros com panela e colheres, mas todos unificados contra o aumento das tarifas. Durante a mobilização, liguei a meu filho que mora em Buenos Aires e podia ouvir vuvuzelas e cânticos”, falou Lucia, de Mar del Plata.   

Com mais de vinte pontos de encontro na cidade de Buenos Aires e concentrações em La Plata, Mar del del Plata, Mendoza, Tucumán, Cordoba, Misiones, Pilar, Tandil e Bahia Blanca, entre outras cidades, o protesto teve caráter federal e multisetorial, que incluiu movimentos populares, partidos políticos, associação de consumidores e pessoas autoconvocadas.

O episódio relembrou para alguns a crise politica, econômica e social de 2001.

Carina Lopez Monja, militante da Frente Popular Dario Santillán e referente do partido Pueblo en Marcha que congrega movimentos populares de Argentina, afirmou ao Brasil de Fato que os atos “expressam as consequências terríveis das políticas de ajuste e desvalorização da moeda, implementado pelo governo de Mauricio Macri, e isso se expressa na necessidade de o povo se organizar, rechaçar as medidas impopulares e resistir nas ruas.”

“Temos  um governo de ricos que governa para ricos e, nesse sentido, as condições de vida têm piorado e gerado esse descontentamento popular que está expresso nas ruas”, avaliou Carina.  

O qué é o “tarifaço”?

María Sol, mora no interior da Provincia de Buenos Aires, tem uma loja onde trabalha com seu companheiro. Somando o trabalho de ambos, juntam 20 mil pesos aos mês (o equivalente a R$ 4.400].  “De conta de luz, chegou 750 pesos [R$ 165]. Antes, pagávamos 300 [R$ 65]. O aluguel aumentou de 3 mil pesos para 4 mil, ou seja, 33%; e o gás chegou a 220 pesos [R$ 48]; antes, pagávamos 80 [R$ 22]. Em casa temos um aquecedor a gás encanado e usamos outro que funciona com botijão, que custa uns 150 pesos [R$ 32] e dura 15 dias aproximadamente. Nas compras gerais, antes gastávamos 400 pesos, e hoje 700, quase o dobro”, comenta Maria Sol.  

Segundo os cálculos gerais, a água em Buenos Aires aumentou até 400%. No caso do transporte, em torno ao 300%, devido ao aumento do combustível. O mesmo aumento se sentiu na tarifa de energia, e o gás chegou a aumentos de 1.100%, provocando o descontentamento geral por conta do frio do inverno e da necessidade de calefação dos lares

Como explica o economista e cientista social Francisco Cantamutto, com o “tarifaço”, o governo supostamente pretende corrigir a defasagem das tarifas de energia, agua, gás e transporte em relação aos outros preços e subsídios entre regiões e usuários. Mas, isso não explicita totalmente o sentido destas medidas, agregou .

Ainda o governo, frente ao desagrado e recursos judiciais, tenha manifestado certa prudência e erros nos cálculos, o economista argentino adverte que estas desculpas não devem tampar o sentido prolixo dos aumentos: "recompor a taxa de lucro do capital".

Em dialogo com Brasil de Fato, Cantamutto argumentou que “além do grau de torpeza e de que efetivamente o governo de Cambiemos faz as coisas mal, o certo é que o que eles fizeram não é erro, e é a metade ou a terceira parte dos aumentos que eles querem implementar”.
 
“O programa de Macri vem contra os setores populares e a favor a classe dominantes; e dentro desta classe, à fração financeira - por isso  liberalização-, aos exportadores - por isso cortou as retenções - e aos que operam em serviços públicos - por isso o tarifaço. Em todos os casos, estamos falando de priorizar o capital estrangeiro, mas também sócios locais . É muito evidente, ainda tenham feito um cálculo errado. E isso é tão explícito que Arangurem, o ministro de energia, é dono de ações da Shell… É tão descarado. Isso faz com que a gente se levante e expresse com tanta rapidez…”, expressou o economista.  

Recursos judiciais

Junto ao aumento das tarifas, uma série de medidas judiciais tem sido aplicada em diversos pontos do país para frear “tarifaço”. Sucessivas falhas da Justiça de Chubut, Córdoba, Jujuy, Mendoza, Neuquén, Río Negro, Salta, San Luis, Santa Cruz e Tierra del Fuego tentaram por barrar a medida, em Rawson (província de Chubut, sul da Argentina) se declarou a inconstitucionalidade do aumento e a Câmara Federal de La PLata (capital da província de Buenos Aires), argumentou a favor do direito a uma “vida digna”.

Apesar da falha do tribunal de La Plata, que impediu o aumento de gás em todo o país, o governo se viu obrigado a acelerar as gestões, pedindo a Corte Suprema de Justiça um recurso de per saltam que omita aos tribunais intermedios. Mas o tribunal superior ainda nao tem se manifestado.  

Como argumenta Cantamutto, "o fato do governo ter que recuar é um sinal complexo para os setores do capital. Parar de promover aumentos evidencia que não se pode garantir a taxa de lucro que eles querem. Isso é problemático, pois esses agentes econômicos não receberam o retorno do investimento que eles esperavam e que lhes foi prometido".

Panelaço

Enquanto a Justiça resolve, os protestos, os fechamentos das estrada e as manifestações espontâneas têm se multiplicado em todo o país e os panelaços, caraterísticos da crise de 2001 que derrubou o presidente Fernando De la Rua (Alianza), voltaram a ocorrer.

“A panela é uma expressão do esgotamento da classe média no 2001, como algo mais inorgânico, menos organizado, qualquer um pode se somar e batir uma panela. Mas, como ninguém é dono das ferramentas de luta, na última década foi reapreciada pela direita para repudiar aos governos populares. O certo é que a panela surge como um símbolo ligado à classe média, mas para denunciar o mesmo que os setores populares, neste caso, o tarifaço”, explicou Francisco.

“O fato de ser reapreciada pela direita, faz com que hoje estejamos em meio a uma disputa de sentidos. Na multisetorial da CABA [Cidade Autonoma de Buenos Aires], inclusive, discutiu-se isso, e ficou ‘piquete/cacerola, la lucha es una sola’ [em português, piquete/panela a luta é uma só]”.

Assim como o federalismo foi marcado como um dado importante para comprender os protestos de quinta, o economista afirma que a participação de comerciantes e pequenos empresarios é outro componente importante, que relembre as mobilizações do 2001.

Para Carina, ainda há algumas diferenças em relação ao movimento de 2001.Mas, segundo ela, “o fato de as pessoas recuperarem as ruas é importante. É tomar as ruas para colocar a sua voz e se fazer ouvir, já que os sete meses do governo de Macri têm significado uma brutal transferência dos setores populares aos setores econômicos mais poderosos.

Créditos das imagens: notas.org.ar
Edição: Camila Rodrigues da Silva

Edição: ---