ENTREVISTA

Serra pode escancarar atendimento aos interesses dos EUA, diz professor da AFA

Para Humberto José Lourenção, o amplo apoio dos EUA ao golpe no Brasil se dá pelo interesse no Pré-sal. 

Florianópolis (SC) |
Lourenção traça um panorama dos acordos no campo da Defesa, firmados nos últimos seis anos, durante o governo Dilma Rousseff
Lourenção traça um panorama dos acordos no campo da Defesa, firmados nos últimos seis anos, durante o governo Dilma Rousseff - Antonio Cruz/Agência Brasil

“Se não houver uma resistência da sociedade civil organizada, da classe política, em barrar algumas ações do Ministério de Relações Exteriores, haverá um escancaramento do atendimento dos interesses dos Estados Unidos”. É a previsão de Humberto José Lourenção, professor da Academia da Força Aérea (AFA) e da Universidade da Força Aérea (UNIFA), ao classificar as linhas adotadas pelo ministro interino José Serra como ‘entreguistas’. Para o professor, o amplo apoio dos EUA ao golpe no Brasil se dá pelo interesse no Pré-sal. 

Mas o estreitamento da relação entre Brasil e Estados Unidos não é novidade. Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná e ao Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), Lourenção traça um panorama dos acordos no campo da Defesa, firmados nos últimos seis anos, durante o governo Dilma Rousseff.

Ao todo, foram quatro pactos: Acordo Bilateral sobre Cooperação em Matéria de Defesa  [Defense Cooperation Agreement – DCA], de 2010, que facilitaria a compra de materiais e serviços que envolvem a chamada ‘tecnologia sensível’ (cujo processo de produção apresenta regras e restrições por motivos de segurança), treinamentos conjuntos e intercâmbios; Acordo sobre Proteção de Informações Militares Sigilosas chamado GSOMIA, de 2010, que criaria um quadro jurídico sobre o tema e possibilitaria o avanço no intercâmbio de tecnologia; Acordo-Quadro sobre Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior, de 2011; e do Memorando de Entendimento [MOU] para compra de equipamentos tecnológicos, cogitado entre as partes, mas ainda não assinado .

A entrevista foi realizada durante o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos em Defesa – ENABED, no início de julho, em Florianópolis (SC).

BdF-PR/ILEA - O que são estes três acordos de Defesa que o Brasil firmou nos últimos tempos com os Estados Unidos?

Estes acordos foram assinados na gestão do Ministro Nelson Jobim. Dois deles assinados em 2010, e um em 2011. Em março de 2010 foi assinado o DCA, que é um acordo de cooperação em Defesa [Defense Cooperation Agreement – DCA], que funciona como um guarda-chuva para que várias parcerias de nível profundo aconteçam. Por exemplo, compra de materiais e serviços que envolvem tecnologia sensível, intercâmbio cultural, acadêmico de pesquisadores e cientistas. No mesmo ano, em novembro, foi assinado um segundo acordo chamado GSOMIA [Acordo sobre Proteção de Informações Militares Sigilosas], que prevê o tratamento de informações militares sigilosas de forma pareada. Então, o mesmo tratamento que nós daríamos a informações ultra-secretas, secretas ou confidenciais seria compartilhado com os Estados Unidos, sob a garantia que eles dariam o mesmo tratamento e vice e versa. No ano seguinte foi assinado o terceiro acordo que prevê a cooperação de uso pacífico do espaço exterior da estratosfera, do espaço, para a criação de estruturas para o monitoramento da Terra, para exploração espacial. É um acordo bastante ousado.

Quais são os motivos pelos quais estes acordos estão parados?

Eles estão parados, mas não literalmente parados. O DCA e o GSOMIA foram efetivamente aprovados pelo Congresso brasileiro no ano passado, de forma muito rápida, antes da visita da presidente Dilma aos Estados Unidos. Mas eles não têm nenhuma efetividade ainda. O acordo espacial, este sim está parado, não entrou em vigor porque não foi aprovado pelo Congresso. Só foi assinado pelos respectivos ministros do Brasil e dos Estados Unidos, nessa relação bilateral. Assim como toda a história das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, muito do que se faz são acordos retóricos, que prenunciam uma nova fase de confiança, de estreitamento das relações. Mas, como todos os outros, eles não têm efetividade.

Relações ‘espinhosas’

Todos os analistas qualificam as nossas relações com os Estados Unidos como ‘espinhosas’, difíceis. Há desconfiança de ambos os lados, de que não somos parceiros confiáveis. Há um grande antiamericanismo também no Brasil, no meio acadêmico e no meio militar, que vêem os Estados Unidos não como amigos efetivos, mas como empenhados em não permitir que o Brasil exerça uma liderança regional, que desponte no cenário como um player importante no sistema mundial. Essa falta de confiança mútua, que só se agravou nos últimos anos com as denúncias do site Wikileaks, com as denúncias do Edward Snowden. 

Como você observa este cercamento do Brasil por bases militares estadunidenses nos países vizinhos, inclusive agora com mais uma base na Argentina?
É reflexo desta desconfiança, que foi aprofundada recentemente com os governos de centro-esquerda, não totalmente alinhados com os valores ocidentais e com a ideologia de combate ao terrorismo, que é a grande estratégia atual dos Estados Unidos. Isso só reflete mesmo o imperialismo, uma situação de projeção de poder que os Estados Unidos têm na sua região mais próxima. Eles não vão deixar de defender seus interesses vitais na região, se for necessário. Então eles estão preparados para tudo.

Você falava de um quarto acordo que, pelas cláusulas que ele coloca, necessitaria basicamente uma submissão completa dos interesses do Brasil aos interesses dos Estados Unidos.

Seria o MOU [Memorando de Entendimento], um terceiro acordo tipo guarda-chuva, e o quarto na ordem dos que foram sendo assinados desde 2010. Não é exatamente submissão. 'N' países têm assinado este acordo com os Estados Unidos. É um acordo e nos garantiria o estafe de país qualificado para a compra de materiais que envolvem tecnologias sensíveis. São acordos que não exatamente implicam numa submissão. Implica simplesmente numa parceria comercial aberta, em que há cláusulas restritivas de usuário final, por exemplo. Mas não é estranho ao que acontece em acordo dessa natureza. Seria um acordo que promoveria uma confiança recíproca maior. Eu coloco como desejável para o Brasil, mas ele está longe de acontecer.

Em que medida você avalia que a descoberta do Pré-sal, que coloca o Brasil entre os países com grande reserva de petróleo, faz com que o país esteja em rota de conflito mais explícito com os Estados Unidos?

Para uma ação unilateral por parte da potência norte-americana, teria que haver o mínimo de respaldo na comunidade internacional, mesmo sendo à revelia do Conselho de Segurança da ONU. Assim que foi feita a invasão do Iraque em 2003, após os atentados de setembro de 2001. Se alegou [a existência de] armas de destruição em massa. O Brasil se posicionou muito contrário a isso, ele queria que tivesse inspeções da ONU para aferir se essas armas existiam exatamente. Mas foi voto vencido. Houve uma ação unilateral, com base no combate ao terrorismo. Por mais ilegítimo que seja, isto ainda tem um respaldo da comunidade internacional, porque os Estados Unidos foram atacados em seu território e tem o ‘direito’ de revidar. No caso do litoral brasileiro é bem diferente. Uma ação militar norte-americana no litoral brasileiro é uma coisa que não se vislumbra no curto prazo. Seria ofender todas as regras de convivência, todos os valores que eles dizem que defendem.

Acordos comerciais

Entretanto, com as medidas governamentais recentes do governo Temer, é mais fácil eles conseguirem isso via acordos comerciais, com o fim do monopólio da exclusividade da Petrobras para fazer a prospecção do Pré-sal, com a participação de empresas de capital dos Estados Unidos. É muito fácil eles terem acesso à riqueza e a essa mineração toda, dada a estrutura de investimento deles ser muito maior. Ganhariam as licitações, ganhariam as reservas de exploração, sem necessidade de nenhuma indisposição militar. Seria muito mais barato, muito mais tranquilo e acho que é por aí que eles estão agindo. Todo esse apoio ao governo Temer escancarado também pode ser entendido nesse contexto de querer pegar o Pré-sal. Esta é a minha opinião. 

Em que medida você vê mudança desse governo interino na relação com os Estados Unidos, considerando as posições do ministro das Relações Exteriores, José Serra?

É uma guinada extraordinária. Se não houver uma resistência da sociedade civil organizada, da classe política, em barrar algumas ações do Ministério de Relações Exteriores, haverá um escancaramento do atendimento dos interesses dos Estados Unidos, em nome da livre iniciativa, do fim das barreiras, e coisas que anunciam para os outros, mas não praticam. No caso, os Estados Unidos ainda fazem os protecionismos deles. Eu vejo com pesar. Acho que cai no 'entreguismo', para usar o jargão. É uma pena que nós estejamos abrindo mão de que a engenharia nacional, a base tecnológica nacional - [desenvolvidas] de maneira um pouco mais demorada, um pouco mais lenta, mas de forma muito mais sustentável e de forma a garantir as riquezas - se revertam em avanço e prosperidade para o país. Do jeito que pode acontecer na gestão do Serra, é bem possível que empresas transnacionais se enriqueçam de forma incalculável à revelia do desenvolvimento nacional. Seria realmente lamentável ao extremo.

Como você vê a posição das Forças Armadas em relação a este estreitamento do Brasil com os Estados Unidos?

As Forças Armadas são plurais, há várias vertentes. Em todas as forças singulares, no Exército, na Marinha e na Aeronáutica, têm gente que está agora contestando e questionando este estreitamento como perigoso e antiestratégico. Mas tem gente que está, na minha opinião, se informando bastante pela grande mídia, não de uma forma mais profunda. Se iludindo com essas falsas informações de que é o único caminho a ser seguido, de que realmente deixar nas mãos do Estado não funciona, de que corrupção é o mal pior e impossível de ser combatido, de que é melhor mesmo um Estado mínimo não presente no setor econômico, e que é melhor mesmo que as multinacionais cuidem disso. Há também um escalão das Forças Armadas que, vamos dizer, mal influenciadas por essa ideologia toda, não está fazendo a contestação. Mas existe uma boa parte fazendo a contestação, felizmente. É um setor mais crítico da expertise das Forças Armadas.

Sobre o acordo aeroespacial, há a possibilidade de uma cláusula de alugar a Base de Alcântara para os Estados Unidos. A Base de Alcântara já foi foco de muita luta da população brasileira contra a presença dos Estados Unidos. Não parece um pouco paradoxal que o governo petista tenha feito um acordo dessa natureza?

Exato. Na verdade, o acordo não prevê o aluguel da base. Ele é bem em linhas gerais, sobre cooperações de todos os níveis, e um aditivo do acordo indicaria que o aluguel da Base pudesse financiar o programa espacial brasileiro. Isso foi cogitado, falou-se em números e o montante de investimentos anuais seria muitas vezes superior ao que o que se gasta hoje com o programa espacial. Mas note-se que esse aluguel não foi escrito, foi cogitado que seria um aditivo desse acordo. O acordo, sim, foi assinado, mas não menciona nada desse aluguel da base de Alcântara. Entretanto, os termos dessa concessão seriam bem diferentes (daquilo) que o Fernando Henrique Cardoso, no seu governo, em 1996, propôs ao Congresso, e que foi rejeitado, felizmente, pela Comissão de Defesa e Relações Internacionais mista da Câmara e do Senado. Naqueles termos, era uma alienação territorial. Um cidadão brasileiro teria que ter um passaporte e o visto dos Estados Unidos para entrar na Base. Não seria nesses termos, e sim um aluguel de instalações pontuais, na hora dos lançamentos, com começo, meio e fim. Não seria uma alienação territorial.

Há muitas informações de possíveis sabotagens no caso dos foguetes que falharam e no caso, principalmente, da morte de 21 cientistas brasileiros numa explosão [no dia 22 de agosto de 2003, no Maranhão]. Como você avalia isso? Seria possível uma sabotagem, considerando inclusive as denúncias de Snowden?

São possíveis, obviamente. A Teoria Realista em Relações Internacionais informa que os acordos estão aí para serem rompidos. Na hora em que os interesses vitais dos Estados estão em jogo, a Teoria Realista diz que nenhum expediente vai deixar de ser usado, mesmo considerado antiético ou anticivilizado. Então, possível é, plausível também é. Os Estados fazem espionagem, uso de expedientes escusos e antiéticos. Isso é o dia-a-dia das ações dos Estados. Obviamente não está no discurso, não está admitido. Agora, cai na vala das teorias conspiratórias. Bastante plausível, bastante impossível, mas inconfirmável, por enquanto.

Qual o rombo dessas mortes para todo esse processo de pesquisa?

Foi devastador. Essas mortes foram um baque muito significativo para o desenvolvimento da ciência espacial brasileira. Muito difícil de recuperar esse capital humano, porque você considera que são 30, 40 anos de pesquisa para cada cabeça pensante que se foi. Você repõe materiais, repõe orçamentos, mas a formação dessa expertise é difícil de ser reposta, não é assim da noite para o dia que ela é feita.

Conforme esses acordos se consolidarem, com o aprofundamento das relações de defesa entre Brasil e Estados Unidos, a partir o que foi feito no governo Dilma, o que vai mudar na geopolítica na América Latina?

O Brasil tem esse protagonismo na porção Sul do continente. Mudaria muita coisa. Durante o plano Colômbia, em 1995, os Estados Unidos solicitaram que as nossas Forças Armadas se engajassem no combate ao chamado narcoterrorismo das FARC, do grupo revolucionário da Colômbia, e que seria financiado pelo narcotráfico. As Forças Armadas Brasileiras sempre se recusaram, não consideram esse um papel de Defesa. Na nossa história, felizmente, mesmo nos governo militares, nós temos esse marco doutrinal de nunca permitir uma base americana no nosso território. Nessa época do plano Colômbia, foi solicitado base de apoio. Mas nós sempre tivemos essa resistência. Eu acho que isso vai continuar. Mesmo que esses acordos vingassem, e nós tivéssemos cooperações e inteligências mais profundas, acho que seria bastante diferente do que acontece com os nossos vizinhos, que são muito mais permeáveis a essa influência dos Estados Unidos. Por exemplo, no Paraguai, na Colômbia, principalmente, na Argentina agora.

Dois grandes países

Acho que mudaria um pouco da geopolítica, mas com aspectos positivos, de estabelecer ainda mais a paz regional, porque daí realmente não teríamos perspectivas futuras de conflitos entre os dois grandes, Brasil e Estados Unidos. Que hoje se projeta quando, por exemplo, o Exército fala de proteção da soberania da Amazônia e fala assim: 'imaginemos uma potência do Norte, hipotética, não sei qual, fazendo uma incursão, uma invasão territorial, nos termos de guerra de resistência, tipo guerra do Vietnã. Como nós faríamos uma estratégia de dissuasão, uma guerra de guerrilha?’. Você coloca no horizonte hipotético que isso venha a acontecer. Se nós tivéssemos os acordos, diminuiria ainda mais as chances de isso efetivamente acontecer. 

A partir do teu exemplo hipotético, é justamente na Amazônia também que há a presença de militares norte-americanos fazendo exercícios e treinamentos.

Fazem. Há oficiais ou soldados graduados das Forças Armadas norte-americanas que fazem exercícios, mas sob nosso monitoramento. Fazem curso do Centro do Exército de Instrução de Guerrilha na Selva. Fazem até certo nível. O nível super profundo eles não fazem. Mas o nível tático eles gostam de fazer. Outras nações amigas também fazem. As Forças Armadas estão atentas à presença de ONGs internacionais, a grande maioria de matriz estadunidense. Muitas são chamadas fajutas, falsas ONGs, que estão fazendo biopirataria de essências, tronco, caules. Isso acontece, mas nada que, por exemplo, prenuncie uma ação territorial. Isso está fora do horizonte plausível.

 

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