Entrevista

“Lei Antiterrorismo foi concebida pra reprimir os movimentos sociais”, avalia jurista

Beatriz Vargas, professora da UnB afirma que nova lei é vaga e oportuniza interpretações voltadas à opressão da esquerda

Brasília (DF) |
Alexandre de Moraes explica operação da Polícia Federal que resultou na prisão de 10 pessoas supostamente ligadas ao Estado Islâmico
Alexandre de Moraes explica operação da Polícia Federal que resultou na prisão de 10 pessoas supostamente ligadas ao Estado Islâmico - José Cruz/Agência Brasil

A operação da Polícia Federal que resultou, nessa quinta-feira (21), na prisão de 10 pessoas supostamente ligadas ao Estado Islâmico reacendeu o debate sobre a Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260). Sancionada em março deste ano pela presidenta afastada Dilma Rousseff, a legislação é criticada por movimentos sociais e pesquisadores que interpretam a medida como uma ferramenta de opressão dos grupos tradicionalmente alinhados à esquerda.

É o que pensa a jurista Beatriz Vargas, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Ela conversou com o Brasil de Fato sobre a nova legislação, abordando ainda o contexto de perseguição política dos movimentos sociais na atual conjuntura brasileira e o papel da academia jurídica diante do processo que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff.

Confira abaixo a entrevista.

Brasil de Fato - Qual a sua opinião sobre a Lei Antiterrorismo? Você acha que o Brasil precisava de uma legislação como essa?

Beatriz Vargas - Não. Primeiro, porque nós não temos terrorismo. Segundo, porque o ordenamento penal vigente dá conta de repressão, violência à pessoa e violência ao patrimônio. Terceiro, porque acho que essa Lei Antiterrorismo acabou sendo concebida pra reprimir os movimentos sociais. O texto dela não tem nem clareza suficiente, então, acaba que, na prática, a legislação pode ser usada pra que se cometam arbitrariedades contra os movimentos.

Tem alguns pontos da lei que poderiam interferir mais nas ações dos movimentos de rua durante um evento como as Olimpíadas, por exemplo?

De modo geral, o que posso falar é que existem umas previsões na legislação que são muito fluidas, ambíguas e, portanto, abertas, podendo abrigar qualquer coisa. Principalmente porque, no meu modo de ver, uma ação terrorista visa necessariamente algum tipo de mudança de poder. Não deixa de ser um crime de natureza política, e a lei não garante isso. Veja, por exemplo, que um black bloc pode ser enquadrado numa legislação dessa, o que é uma coisa absurda porque não existe na atuação dele nenhum tipo de motivação de mudança de poder, de regime, nada disso. É uma manifestação que não tem essa dimensão.

Em se tratando da perseguição política aos movimentos, o que está por trás da tentativa de criminalização desses grupos?

Estamos vivendo atualmente um contexto de virada à direita e há uma intenção de criminalização de qualquer ato, como se o direito penal fosse o grande moderador social. Se a gente ameaçar com um castigo, a gente consegue a adesão das pessoas à legalidade. O que leva a isso é uma série de coisas.

Temos uma sociedade conservadora, racista, punitivista. No geral, a gente tem uma opinião pública que aceita tortura contra preso comum, que não se sensibiliza com o genocídio de jovens negros que ocorre todo dia, etc. E, mais que isso, temos hoje o contexto do golpe, que, quando vai se consolidando, acaba criando uma espécie de anomia (ausência de lei).

Ele quebra a regra e libera as pessoas pra determinados atos que numa situação institucional estável não aconteceriam. Acho que há uma instabilidade no contexto do golpe que acaba propiciando este tipo de resposta: mais violência policial e perseguição aos movimentos sociais, que são geralmente associados à esquerda.

Até pouco tempo atrás, era impensável imaginar, por exemplo, um chamado pra uma CPI da UNE, como a gente viu aí no Congresso. Outra coisa também inimaginável era utilizar contra o MST a legislação da organização criminosa, a Lei 12.850/2013, para enquadrar o movimento nesse conceito. No meu entender, isso ocorre dentro de um contexto de instabilidade política provocada pelo processo do golpe.

Como se dá esse embate político-ideológico do ponto de vista jurídico? É possível afirmar, por exemplo, que a doutrina está mais alinhada à direita?

Não sei se seria possível afirmar exatamente isso, mas o que se pode dizer é que o instrumento do direito, o instrumento jurídico existe para ser usado de todos os modos. Outra coisa é a aplicação dele, a interpretação que as instituições fazem dele. Nós chegamos num ponto em que o nosso ordenamento jurídico começou contemplando uma série de avanços do ponto de vista de legislação social, dos direitos e das liberdades individuais.

Nós podemos dizer que temos um ordenamento relativamente avançado quanto a isso, pelo menos compatibilizado com todo um instrumental internacional de direitos humanos. Na prática, a aplicação desse instrumental pelas instituições é que tem sido insatisfatória, deficitária, e acho que essa é uma tendência da Justiça, que é sim uma instituição mais conservadora. Podemos dizer que a cúpula da Justiça é mais conservadora.

Qual seria o papel da academia numa conjuntura como esta atual?

O professor José Geraldo [ex-reitor da UnB] me convidou recentemente pra uma série de seminários sobre como fazer tese em tempos de golpe. A gente discutiu como pesquisar no direito hoje dentro deste contexto e nós chegamos à conclusão de que devemos utilizar a nossa pesquisa pra fazer uma verdadeira resistência ao desmonte desse edifício de direitos que a gente tem.

Não posso afirmar que já chegamos a um patamar satisfatório, claro, mas estávamos construindo esse arcabouço de regras protetivas de direitos individuais e coletivos, e a sensação que temos agora é de que isso está sob ameaça, no sentido de uma reversão. Então, temos que ter uma postura de resistência e denunciar esses cortes, esses regressos, pra gente não chegar numa segunda fase de ter que voltar à posição de conquista de direitos, porque nós já havíamos conquistados muitos direitos de minorias, mulheres, negros, índios, como as cotas, a união homoafetiva, a utilização de nome social pelos transgêneros e uma série de outras coisas.

O que a gente tem visto agora é um discurso conservador que tem avançado e conquistado apoio de uma camada expressiva da sociedade brasileira. Num primeiro momento, nosso papel é de fazer a denúncia disso, resistir. Isso significa fazer pressão e fornecer aos quadros políticos e legislativos os elementos, dados e informações reais pra que se possa compor a politica de resistência.

O que não podemos é voltar ao patamar pré-Constituição de 88, que era o de conquistas de direitos, porque nós já estávamos na fase de avanço desses direitos. Não podemos voltar à trincheira de reconquista de direitos perdidos. Então, o papel da universidade é muito este de suprir o campo político de dados empíricos sobre o mundo real, sobre o funcionamento das instâncias decisórias dos três poderes e de fazer um discurso de resistência.

Por fim, que caminho a senhora acha que os movimentos devem traçar diante deste contexto de criminalização e turbulência política?

Penso que eles devem tentar manter uma pauta de articulação política e tentar unificar as suas bandeiras com outros movimentos, trabalhar em comunhão de interesses com o movimento sindical, por exemplo, naquilo que for possível em termos de pontos comuns, e levantar bandeiras relacionadas à condução econômica do país e à reforma política.

Acho que essas são as duas bases que têm sido mais atacadas pelo governo provisório. Estamos vendo uma política econômica voltada à manutenção de altos juros, com prioridades para os rentistas, e na linha de destroçar a previdência pública e incentivar a previdência privada, além da desvinculação de receitas. 

A gente precisa pensar nisso e os movimentos sociais devem tentar se juntar aos demais movimentos pra lutar pela tributação do capital, que é uma coisa que, infelizmente, nenhum dos dois governos do PT chegou a fazer, e tentar produzir uma reforma política consistente. O país precisa disso.

Edição: Camila Rodrigues da Silva

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