Entrevista

“O futebol está engessado a uma estrutura que está condenada”, afirma Afonsinho

Em entrevista, ex-jogador do Botafogo fala sobre o cenário político do futebol no Brasil e no mundo

Fazendo Media |
“Os dirigentes tratam dos contratos, do marketing, televisão, do volume de dinheiro, e delegam a um camarada. Não se preocupam com o time, as características das contratações deixam isso muito evidente”, criticou.
“Os dirigentes tratam dos contratos, do marketing, televisão, do volume de dinheiro, e delegam a um camarada. Não se preocupam com o time, as características das contratações deixam isso muito evidente”, criticou. - Fotos: Eduardo Sá/Fazendo Media

Afonsinho, como é chamado o ex-craque do Botafogo, também é conhecido por seus posicionamentos políticos. Além de pioneiro na questão do passe livre do jogador de futebol, fez também resistência à ditadura militar em sua época. Com uma linha de pensamento semelhante, assumiu a coluna semanal do seu amigo e falecido Sócrates na revista Carta Capital. Neste espaço fala sobre o esporte como um todo, o futebol e o cenário político nacional e mundial.

Continua após publicidade

Na entrevista ao Fazendo Media, Afonso Celso Garcia Reis não poupa críticas à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federação Internacional de Futebol (FIFA). Ligando a política ao futebol, diz que ambos têm estruturas arcaicas e precisam ser refundados. Defensor da criatividade e da valorização do esporte, é contra a financeirização do futebol e da imposição do preparo físico frente à técnica. Afonsinho não apresenta muitas esperanças na atual seleção brasileira que, segundo ele, tomou um caminho que reflete todo o futebol e a política nacional.

Em relação à modernização do futebol, um termômetro muito simbólico nesse sentido são os novos estádios, sobretudo o nosso Maracanã. Como você enxerga essas mudanças?

Com essa pergunta dá para enquadrar bem sem perder as coisas pequenas e grandes, é tudo muito coerente com o momento do mundo. Há um predomínio do que se chama neoliberalismo, uma “desideia”, uma perversidade que infelizmente está dominando o mundo. Não tem contraponto como antigamente, quem está mandando faz o que quer. Há coerência no que está acontecendo: correntes migratórias, o golpe na Turquia e no Brasil, é um momento da história que se reflete em tudo. Tem uma ligação direta do grande com o local.

Tanto na sociedade como um todo, quanto no esporte e no futebol em específico?

A política no mundo, salvo uma coisa ou outra, apresenta uma insegurança que se reflete. Quem está mandando vai impondo a sua maneira de ver o mundo e a vida. E os estádios de futebol, por exemplo, com uma concepção elitista. Você não pode parar no tempo, é legal ter uma condição melhor, mas é uma contradição porque quanto mais entra dinheiro o espetáculo cai e perde qualidade. Você tem mais recursos e formas, mas não há um equilíbrio.

O fiasco da seleção na Copa do Mundo e um golpe político em que as pessoas usam a camisa da CBF como símbolo é muito coerente: não muda nada. As coisas ficaram escancaradas, porque é um valor cultural do Brasil com uma importância enorme para a população e totalmente descontrolado. Ficamos chocados com a fragilidade política da nossa população. E houve aquela votação estarrecedora do golpe na Câmara, quer dizer, o povo é dirigido e as leis são feitas por aquele tipo de poder. É muito chocante o momento que vivemos, e nessa semana a disputa para a presidência da Câmara como se estivesse tudo às mil maravilhas.

Você falou de uma contradição: nunca foi movimentada tanta grana no futebol, no entanto os clubes estão todos endividados. Como se explica?

É tudo muito coerente, no futebol é possível ver claramente. A CBF seria uma congregação de clubes, né?E os clubes estão totalmente fragilizados, o futebol é um dos grandes negócios do momento e caminhou desta maneira. Só se cuida dos contratos, que são cada vez mais complicados. Envolvem muitos interesses, então leva um tempo para renovar ou contratar os jogadores. O poder maior é o da televisão, as competições de natação serão às 22h porque é o horário do público americano. Tem que cuidar do interesse, produz-se esse volume de dinheiro mas totalmente sem controle.

No futebol estão colocando os jogadores pra jogar às 11h no sol a pino…

Jogou 11h em Recife, é uma coisa impraticável. É preciso muita fragilidade para se impor uma coisa dessas. E a noite para quem trabalha vai acabar que horas o jogo? Quando as coisas têm um domínio absoluto não correm bem, é preciso haver um equilíbrio. Por isso digo que não é uma ideia, um pensamento, uma estrutura, é uma perversidade. Para fazer dinheiro, porque a expressão deles é essa, vale tudo. A regra é essa, estamos vivendo um tempo que vai ficar na história como vergonhoso. Temos recursos, mas se relacionando de uma maneira tão pobre. As expressões culturais, que são o sentimento da vida das pessoas, de uma maneira ultrajada.

No futebol somos reféns da Champions League, lá estão os melhores jogadores do mundo, inclusive os brasileiros. Admiramos a qualidade, mas o tipo de futebol que se joga também não é isso tudo. A ideia de futebol também não é melhor, é correspondente da maneira como se pensa e vive no momento. Mas sou pela esperança, porque se eu não acreditar no homem e em mim, que negócio é esse? Então é uma coisa grave e séria, mas acredito na superação. Embora temos um horizonte no mínimo nebuloso.

Em termos de gestão, tivemos na CBF uma espécie de reinado do Teixeira. Entrou o Marin, que já está afastado por corrupção. Com o Del Nero muda alguma coisa?

Não muda nada, estão fazendo algumas medidas mas é cedendo anéis para não perder os dedos. É uma estrutura medieval, isso é que precisa mudar. É uma confederação que domina de forma absoluta o futebol no Brasil e não tem o menor controle da população, uma coisa que mobiliza o povo e utiliza seus símbolos. É um valor da população, mas com um privatismo ridículo. Não defendo a estatização como solução, mas a soberania da população sobre aquilo que é seu valor não se pode deixar de lado. É preciso ter algum controle, é uma coisa deprimente. Você perde uma Copa em casa da maneira como perdeu e não muda nada, isso é mais uma coisa coerente e chocante se lembrarmos a votação de impeachment na Câmara.

E depois ainda veio a Copa América, que não passamos da primeira fase…

A Olimpíada é daqui a 20 dias, hoje (19) a seleção se apresenta, mas com que características? O treinador há 15 dias ainda era o Dunga acumulando com a seleção principal, quer dizer, é algo totalmente desconjuntado. Como podemos fazer algo com consistência e firmeza numa organização, cujo dirigente principal está preso e o outro não pode sair do país? Estamos bem encrencados.

Você explicou que o primeiro passo do direito trabalhista no futebol veio no governo Jango, e agora temos salários colossais. Nesse universo neoliberal como fica o jogador?

Os negócios, os contratos, deixam os clubes fragilizados. Há uma movimentação agora com o Bom Senso, o Pelo Brasil, o Pró Fute. A FIFA implodiu, o que acontece aqui na CBF é reflexo de lá também. A própria FIFA propôs alterações, porque não cabe mais essa forma de organização. Os capitalistas americanos não podem ficar de fora desse grande negócio, então fizeram uma intervenção porque o mecanismo de funcionamento deles é incompatível. É impraticável seu sistema funcionar numa estrutura medieval, não têm como justificar a participação. Agora estão chegando com força total os chineses, os japoneses e coreanos já estão há algum tempo, e tem o futebol feminino também. E a FIFA pela sua característica estrutural foi englobando outras coisas, como o futebol de salão. Quer dizer, é esse imperialismo apesar do desgaste da palavra. É essa a razão das intervenções militares mundo afora, a questão do petróleo e outras, a reação dos árabes e mulçumanos, etc.

O Bayern Munich, que é uma das quatro melhores equipes do mundo, contratou o treinador mais badalado que é o Guardiola. Houve uma incompatibilidade com aquela maneira rígida alemã, mas é um grande treinador e uma grande economia. E os interesses são de tal forma, que seis meses antes é permitido fazer um pré-contrato com outra equipe se você já sabe que não vai ficar. Então ele se anunciou como treinador do Manchester City, e cruzou nas quartas de finais com o clube que já era contratado. Ele era treinador dos dois praticamente. Aberrações assim mostram claramente o que está acontecendo.

O dinheiro, os negócios e contratos, falam mais alto que o espetáculo em si?

Um clube por sua natureza tem associados, mas não, ele tem um dono. Um magnata tailandês, num país de diferenças sociais absurdas, ou outro magnata da indonésia. O povo da indonésia vive essa falsidade de comprar um dos times mais caros do mundo. E no basquete e no esporte americano são franquias, que andam fazendo aqui também. Tinha um clube que um ano estava em Osasco e noutro em Presidente Prudente. Como isso se dá na prática? O torcedor é o time dele, sua camisa, é uma paixão, na essência uma forma de liberação no esporte.

O João Saldanha foi visionário ao dizer que um dia a camisa de futebol ficaria como o uniforme da Fórmula 1, cheia de propaganda?

Isso já é a esculhambação, o fim de linha. Quanto mais tem marca, mais aquilo está rifado. Andaram ridicularizando ao dizer que de um jogo para o outro mudava o patrocinador. O torcedor quer que seu time seja campeão, tanto faz de qual lado vem o dinheiro, mas é uma descaracterização muito grande. Quando um clube tem um jogador identificado com ele, formado no clube, é muito importante. O torcedor conhece, é algo que faz parte e mostra a intensidade e energia aplicada ali. Sem isso não tem emoção, coração, não faz sentido. Ainda mais num esporte coletivo, embora os maiores recursos estejam na Champions League lá não é um futebol de encantamento.

Veja um exemplo de valorização muito claro. Vai jogar Real Madrid e Barcelona, que tem os seus valores mais aguerridos, não tinha até dois anos patrocínio em massa. A Espanha até foi campeã do mundo valorizando o futebol. Ao ver os dois times, a diferença de qualidade física é enorme. A França agora na Eurocopa, com exceção do Griezmann, mostrou que existe uma linha de jogador a metro e a quilo. O objetivo não é o melhor futebol, a arte e a criatividade, é uma questão de força. Já houve de privilegiar isso, e foi o caminho equivocado que o futebol brasileiro tomou. Quando você prepara um time, existe a qualidade técnica, a preparação física, a organização dentro do campo, que é o papel da comissão técnica, nem é o treinador mais. A Islândia apresentou dois técnicos, envolve muita coisa, mas existe uma ordem de prioridade. Você organiza e prepara tecnicamente em função do futebol, mas há uma inversão ao valorizar mais a preparação física. Aqui no Brasil cria esse desarranjo, aí a qualidade cai e acontecem essas coisas. Essas distorções vão ficando muito evidentes. O espetáculo caiu, o montante de dinheiro explodiu no esporte e isso desafortunadamente num predomínio absoluto da ideia neoliberal. Esse é o resultado prático para onde levamos o futebol brasileiro.

Isso também se reflete nas torcidas, veja que a brasileira e a argentina, por exemplo, são totalmente emotivas e festeiras. Mas a própria concepção dos estádios novos prevê cadeiras e barras de seguranças que impedem suas manifestações, além das novas regras.

A Alemanha rivaliza hoje com a Espanha no melhor futebol, o mais criativo, ela que tem tanta rigidez mas partiu para um caminho da qualidade. Vale lembrar que há pouco tempo a Espanha não ia a lugar nenhum nas Copas e era chamada de Fúria, uma ideia muito mais ligada ao espetáculo de tourada. Era uma coisa de choque, nervosa, diretamente ligada à situação política de rescaldo da ditadura franquista. E mudou o seu rumo mantendo uma consistência econômica, mas produzindo o espetáculo de futebol. Valorizando o produto, na linguagem capitalista. No caso do Brasil, ficou escancarado que tomou um rumo errado. O papel do treinador é uma coisa ridícula, mentirosa, eles não são reconhecidos. O que aconteceu? Os dirigentes tratam dos contratos, do marketing, televisão, do volume de dinheiro, e delegam a um camarada. Não se preocupam com o time, as características das contratações deixam isso muito evidente. Isso falando do futebol, mas está na sociedade de uma maneira geral.

Há um sentimento na sociedade contra os salários dos jogadores e dos políticos. Muita gente apaixonada por futebol se desiludiu, e diz: “Ah, esses caras ganham pra caralho aí e não querem nem saber, não vou dar moral pra eles, não…” Como você, que militou na questão trabalhista do jogador, vê isso?

A minha preocupação principal é que o jogador sempre foi uma figura simpática, um ídolo, adorado, aí acontece esse distanciamento. Os estádios estão vazios no Brasil, a palavra que você mais escuta é: não consigo ver mais de 15 minutos… A Copa América foi um vazio, ela rolando e gente assistindo a Eurocopa. Ih, é mesmo, o Brasil jogou ontem, diziam. Olha a que ponto chegamos, as pessoas nem sabem. Os jogadores descaracterizados, porque nessa fase do dinheiro os clubes preparam para vender e não pra fazer um bom time de futebol. As condições do trabalho são feitas para o mercado, palavra que os próprios capitalistas descaracterizaram. Mercado não precisa ser uma coisa descontrolada e perdida.

Saindo um pouco das críticas, quais seriam as proposições que poderiam dar uma oxigenada nessa estrutura?

Como a coisa bateu no fundo, principalmente no futebol brasileiro, então na FIFA eles mesmos sabem que precisa mudar. Mas não tem uma mudança profunda, existem acertos para continuar o negócio. Por isso a corrupção da venda da Copa do Mundo não me impressiona. A Lava Jato, que já se arrasta há anos, pode levar para o resto da vida porque estão todos comprometidos. A regra é essa: se você não dançar conforme a música, fica fora do baile. Existem as cabeças que sustentam isso, o que é imperdoável. Qual o meu sentimento diante da desmoralização da política? Você não pode viver sem ela, pagamos imposto em tudo, então a questão é participar. Mas diante desse quadro como não temos horizonte de mudança de regra radical, revolucionária, é melhor focar em algo fundamental numa linha mestre. Reforma política, por exemplo, juntar todas as forças sem deixar de atuar noutros pontos. Fechar num determinado objetivo, porque precisa mudar radicalmente. Prova maior disso é que a ditadura aqui no Brasil eles chamavam de revolução, então a necessidade de mudança é tão evidente que os conservadores e reacionários botam o nome de revolução no seu movimento.

A estrutura do esporte é sustentada por uma bancada, admite-se que esse poder é dominado por cartolas, mas a própria imprensa chama de bancada da bola o que eu acho um absurdo. Agora faço parte da Associações de Garantias do Atleta Profissional (Agap), e ao ver as estruturas nós poderíamos ter uma bancada da bola porque existem esportistas com mandato público. Mas não, na Comissão Especial que está tratando da Lei Pelé é raro ver alguém com pensamento progressista. Fica travado com um monte de partido, desse mato não sai cachorro. Estamos submetidos a um superpoder absolutista, temos que viver essa desgraça. E cuidar das mínimas coisas, das nossas relações pessoais e de trabalho.

Sua inquietação é em relação à falta de participação nas decisões?

Isso é o concreto, como chegamos a esse ponto? O futebol está engessado a uma estrutura que está condenada. Um valor tão grande como o futebol significa, e faz uma Copa em casa como essa. Aconteceu a manifestação pública dos representantes políticos, a desmoralização pública deles, então vivemos submetidos a essa situação desgraçada. Uma coisa maravilhosa como é a história do futebol e da possibilidade do nosso país, então eu acredito nisso. Vivo essa amargura, mas sou francamente pela esperança.

Você falou de golpe, mas não explicou. Por que acredita que houve um golpe no Brasil?

Não sou petista, tenho muitos amigos fundadores e que admiro no PT e outros partidos, mas foi uma ruptura democrática escancarada. Não tem como negar. É muito evidente que precisamos de um conjunto político completamente diferente do que está aí. É preciso se refundar o Brasil politicamente, acontece uma repetição de outras situações da história brasileira. Elites contrariadas arrumam um jeito de tomar o poder. Sei da integridade do Genuíno, da Dilma, só que ficou um negócio que perdeu o controle. Não basta ser boas pessoas, são quadros respeitáveis, mas como você vai negar o desarranjo e o desacerto escancarado? Então deram um golpe e tomaram o poder, o que é pior ainda.

Edição: ---