Globalização

Movimentos defendem criação de tribunal internacional para julgar transnacionais

Equador e África do Sul levaram a proposta de criação de um tratado sobre o tema às Nações Unidas

São Paulo (SP) |

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Poluição causada pela exploração petrolífera no Lago Agrio, no Equador. Caso foi levado à corte de arbitragem na Holanda
Poluição causada pela exploração petrolífera no Lago Agrio, no Equador. Caso foi levado à corte de arbitragem na Holanda - Julien Gomba

Nos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos é impossível, atualmente, que empresas transnacionais sejam processadas e julgadas. Reivindicação histórica de movimentos populares, a ideia de se criar uma regulação que obrigue corporações a respeitarem direitos humanos foi levada à Organização das Nações Unidas (ONU) pela África do Sul e pelo Equador.

Ambos países levaram ao Conselho de Direitos Humanos da ONU uma proposta de resolução para a criação de um tratado vinculante entre os Estados-membros da entidade. A proposição foi aprovada em 2014 por maioria simples.

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“A ideia do tratado seria estabelecer um mecanismo que possa punir penal e civilmente as empresas que geraram situações de violação de direitos humanos - sejam civis, políticos ou econômicos e culturais”, explica Flavio Valente, diretor da Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar (Fian), organização não-governamental que acompanha a discussão.

Segundo Valente, a responsabilização internacional de companhias poderia se dar através da vinculação de uma condenação em escala nacional a outros países ou a própria criação de um órgão jurisdicional para processar empresas.

Contexto

“Nos últimos 30 anos, desde a instituição do Consenso de Washington, começa um ajuste estrutural, que promoveu uma redução do tamanho dos Estados nacionais. O fato é que, neste período, surgiram mais de três mil acordos bilaterais feitos com uma cláusula que estabelece o local no qual se resolvem as disputa jurídicas [relacionadas ao acordo]”, aponta Valente. “As divergências entre investidores privados e Estados não se resolvem em jurisdições públicas, mas sim por uma consultoria jurídica privada, uma empresa de arbitragem. Essa empresa toma decisões irrevogáveis e irrecorríveis. Os governos não têm sequer o direito de divulgar o seu conteúdo”.

Ou seja, a partir de acordos comerciais entre dois países, quando um deste resolve processar uma empresa – por exemplo, por poluição – do outro, a companhia é julgada em última instância por um “tribunal” privado.

O próprio Equador, por exemplo, enfrenta uma disputa história com a Chevron, companhia acusada de ter contaminado parte de seu território com a exploração de petróleo. Em situações como essa, por conta dos acordos, ainda que os países condenem as empresas, estas recorrem à arbitragem, que, de forma geral, condena os Estados ao pagamento de multas, por terem violado a imagem das companhias.

“Hoje, isso está acontecendo com quase todos os países. A Indonésia, por exemplo, tem mais de 60 tratados bilaterais e já foi punida por conta de vários. O México gastou mais de U$ 250 milhões em situações como essa”, critica Flavio.

O Estado não pode proteger os direitos humanos de sua população, porque, se proteger, vai ser processado e multado. As empresas de arbitragem, adoram, já que ganham muito dinheiro com cada caso: “É uma redução da soberania nacional. Não há regulação dos atos das empresas, porque o governo, mesmo que queira, fica com medo. Ao mesmo tempo, não há possibilidade pelo Congresso ou pelo Judiciário. Sem levar em conta a presença e influência das transnacionais nesses espaços”, diz.

Histórico

“Os movimentos sociais sempre pleitearam que houvesse algum tipo de espaço e norma que obrigassem as empresas a respeitarem os direitos humanos. Tanto no sentido de respeitaram as legislações nacionais, como também impedindo o lobby que elas realizam nos Legislativos”, afirma Tchenna Maso, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Apesar de proposta em 2014, a ideia, de acordo com Maso, nasceu na década de 70: “Esta é uma discussão histórica. Ela aparece pela primeira vez em um discurso de [Salvador] Allende no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ele fala que era necessário regulamentar o poder corporativo que estava crescendo. Isso foi em 1972, no ano seguinte ocorre o golpe no Chile”.

Neste sentido, a ONU chegou a criar um órgão para tratar da questão, mas tal experiência foi interrompida. “A partir disso [proposta de Allende], outros países - com a União Soviética fazendo uma contra-hegemonia [nas Nações Unidas] - começam a construir um centro. Dentro das Nações Unidas, até os anos 80, havia um observatório das transnacionais, que produzia documentação da ONU sobre o tema. Por uma série de pressões das próprias empresas, esse centro chega ao fim”, relata.

Razões

A proteção de direitos humanos em casos relacionados a empresas busca um modelo que, ciente dos atuais limites das autoridades públicas, não esvazie sua responsabilidade.

“Nem todos sistemas nacionais abarcam todas as violações de direitos humanos. Os mecanismos nacionais, especialmente o Judiciário, são também grandes violadores. Na prática, há um conluio entre as empresas e a Justiça. Criar esse instrumento é ir para além do Estado, que, hoje, não tem mais capacidade de proteger direitos”, diz Tchenna.

Por outro lado, “deve-se pensar que tipo de Estados nós temos hoje. Há Estados que violam direitos em articulação com essas empresas. É isso que se quer combater concretamente. O desafio é pensar como imputar essas empresas sem esvaziar o papel político estatal. Uma das formas, por exemplo, seria pensar que, nessa corte [a ser criada], a transnacional e o Estado devem ir juntos para o banco dos réus”, explica.

Ela também defende a recriação de um observatório, mas com participação das entidades da sociedade civil e livre da influência das companhias: “Uma grande discussão é que as empresas não podem participar de um processo que irá debater sua regulamentação”.

Articulação

Mais de mil entidades da sociedade civil de todo o mundo vem se articulando em torno da “Aliança pelo Tratado”. Além disso, uma campanha internacional - “Desmantelar o Poder Corporativo” - foi lançada com o objetivo de debater e construir uma proposta para o conteúdo do possível tratado.

“Como só o Equador e África do Sul podem retirar a resolução, há uma pressão enorme sobre eles”, diz Flavio. De acordo com ele, tais interesses e manifestaram na votação da resolução no Conselho de Direitos Humanos da ONU: “Ficou claro: votaram favoravelmente países da Ásia, África e América Latina. Contrários, os EUA e a União Europeia”.

“Existe uma disputa entre o que é mais importante: garantir a segurança dos lucros ou os direitos humanos dos cidadãos”, finaliza.

Edição: Camila Rodrigues da Silva

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