Golpe no Brasil

A ideologia das (contra)reformas e um governo temerário

A consciência prática do governo Temer precisará ser diuturnamente desvelada e combatida

Curitiba |
Os discursos de Temer têm uma tônica central: a construção de uma resposta “naturalizada” para o Brasil sair da crise em que efetivamente está metido
Os discursos de Temer têm uma tônica central: a construção de uma resposta “naturalizada” para o Brasil sair da crise em que efetivamente está metido - Vitor Teixeira

Consumado o golpe de estado no Brasil, por meio da consolidação do impedimento presidencial votado pelo senado federal, Michel Temer, o mais novo presidente ilegítimo do Brasil, pediu holofotes a fim de expressar sua ideologia para os próximos dois anos e quatro meses de governo usurpado que lhe restam.

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Toda ideologia, como se sabe, expressa uma consciência prática. Não é mera inversão ideal da realidade. O governo golpista de Temer expressou tal consciência prática em seus pronunciamentos públicos do último dia 31 de agosto, data fatídica de mais uma ruptura constitucional no Brasil.

Seus discursos, tanto o improvisado na primeira reunião ministerial quanto o oficial em rede nacional, têm uma tônica central: a construção de uma resposta “naturalizada” para o Brasil sair da crise em que efetivamente está metido. E esta resposta é dada por Temer via a velha conhecida ideologia das (contra)reformas.

Para introduzi-las, Temer foi bastante sincero – e a medida de sua sinceridade foi exatamente a de não ter vergonha de publicizar sua estratégia narrativa para o próximo período. Na prática, a proposta do mais novo governo temerário é a de inculcar na população a necessidade de (contra)reformas, apaniguar-se com os golpistas do congresso nacional notadamente via partidos da reação (hoje, na situação) e propalar internacionalmente o quão estável e democrático é o país.

Às vésperas de uma viagem para a China, o não mais interino presidente avaliou que “no plano internacional, eles tentaram muito e conseguiram, até com algum sucesso, propor, dizer que aqui no Brasil houve golpe”. A referência a “eles”, no caso, é a todos os que defenderam o mandato de Dilma Rousseff, membros do governo, políticos, movimentos sociais, intelectuais, jornalistas e população em geral. A propósito, a difusão da desconfiança quanto à legalidade/legitimidade do processo que se desdobrou no Brasil materializou-se, inclusive, em posições oficiais de governos como os de Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador e Uruguai questionando o processo de destituição presidencial no Brasil. O ministro temerário das relações exteriores, José Serra, não demorou em criticar o “autoritarismo” dos governos “bolivarianos”; mas não houve um pio sequer, como já era de se esperar, de avaliação a respeito das relações com a China comunista.

Como se pode perceber, a geopolítica internacional não está alheia ao golpe que se desdobra no Brasil. Se, em 1962, a presença de João Goulart na China gerou uma crise política no Brasil para que ele não assumisse a presidência da república, agora, em 2016, Temer considera seu grande trunfo ter sido “convidado” para ir fazer negociatas (em suas palavras, “tentar trazer recursos para cá”) com a superpotência asiática.

Legitimado internacionalmente, Temer tem certeza de que conseguirá conquistar sua legitimidade interna por intermédio de dois artifícios. O primeiro deles é o de encontrar cumplicidade com o necrosado sistema político brasileiro. Deixou ele muito evidente, em seu discurso para os ministros, que quer compor uma grande “grei administrativa” – na linguagem pré-medievalizada de Temer, “grei” pode significar tanto agrupamento quanto rebanho... – sem ter um “partido único” conduzindo o governo, mas dando espaço para que todos tenham acesso a seu quinhão nas políticas públicas. Trocando em miúdos, a rapinagem está liberada e é bom se apressar, já que o governo-pirata, que não passou pelo crivo das urnas, só durará dois anos e quatro meses (supondo que as eleições de 2018 estejam garantidas e que o golpe foi dado com prazo para acabar – lembrando que em 1964 a intervenção militar também tinha prazo para terminar e durou mais de vinte anos...).

Já o segundo artifício será o mais importante dentre todos eles. Trata-se não mais da política real das negociatas internacionais ou das mamatas políticas internas, mas da inculcação no povo de que é preciso mexer no que sobrou de bem-estar social no estado brasileiro.

Temer, ladeado por seus cavaleiros do apocalipse, dá suas péssimas novas: reformas do estado, da previdência e do trabalho. No entanto, como todo anjo decaído, apresenta sob a aura de luz o que em essência não passa de trevas. Na verdade, Temer lança mão de uma mancolejante novilíngua. A reforma do estado aparece como estipulação de “teto para despesas públicas”; a reforma da previdência, que não tem sua nomenclatura modificada, explica-se como garantia de pagamento de futuros benefícios aos segurados, em risco por conta das dívidas que o estado tem (e já que o governo é como uma família, é preciso adequar os gastos com o supérfluo – e no caso o supérfluo são os aposentados e pensionistas e não os juros da dívida, é óbvio); e a reforma trabalhista se apresenta como modernização da legislação do trabalho.

No topo da pirâmide argumentativa de Temer encontra-se a reforma do estado. Poderia ser dito que se está falando de uma rebresserianização do estado brasileiro, sem Bresser Pereira (ministro da reforma administrativa neoliberal do estado, no governo FHC, e hoje eminente opositor do golpismo). O principal e mais terrível instrumento do qual Temer pretende lançar mão é a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 241, cujo teor carrega a marca de criar um “novo regime fiscal” e, na prática, significa que por vinte anos as despesas estatais ficarão congeladas segundo os valores nominais do ano de 2016 (com pequenas correções anuais). Não resta a menor sombra de dúvida de que a proposta de saída da crise para Temer é flagelar o povo brasileiro, que tanto necessita dos serviços públicos fundamentais, que vão desde a educação e a saúde, até a segurança pública, o transporte e a infraestrutura.

Como corolários da reforma fiscal do estado (um ajuste fiscal elevado à vigésima potência), restam as reformas da previdência e trabalhista. Na previdência, os direitos dos trabalhadores aposentados (ou por se aposentar) serão atingidos em cheio. Aumento da idade mínima para se aposentar, desvinculação da aposentadoria com relação ao salário mínimo e privatização da seguridade social parecem ser as questões básicas que serão pautadas, não se devendo surpreender a sociedade brasileira caso outras novidades, que não se pode antecipar, venham a surgir.

Em realidade, a reforma da previdência também entra na novilíngua temerária por representar a “volta dos que não foram”. Infelizmente, uma profunda reforma nesta área ocorreu sob a batuta de Lula, em 2004, e atingiu em cheio o funcionalismo público. Ocorre, porém, que na ideologia difundida pelas classes dominantes brasileiras o funcionalismo público é um setor privilegiado da classe trabalhadora, que deve ter seus direitos minados. Amplos setores da população concordam com esta ideologia. Agora, contudo, terão de amargar o mesmo feitiço e os direitos dos trabalhadores da iniciativa privada também serão solapados, como já o foram os do setor público – e sem respeito a direitos adquiridos, como atestam as propostas de regras de transição para trabalhadores que já estão integrados às regras do jogo atual.

Por fim, a reforma trabalhista, que Temer e seus ministros preferem dizer que é tudo – modernização, adequação, garantia – menos reforma, será a finalização de processo já desencadeado por Dilma. No afã conciliatório de escapar da crise política, Dilma em seu segundo mandato operou, por meio de sua base no congresso, um giro neoliberal em suas políticas de governo até então caracterizadas como neodesenvolvimentistas. Nada mais em vão. Sem o povo, não se debela crise política alguma. E o legado disso será não exatamente a volta dos que não foram, mas enfim a chegada dos que já estavam próximos. A aposta da burguesia brasileira, associada ao capital internacional, será a de fazer prevalecer o negociado sobre o legislado, jogando na lata do lixo da história o que se conquistou, a duras custas e limitadamente, na legislação trabalhista nacional. E o mais trágico: os vários setores da burguesia contam com a boa vontade de amplas esferas sindicais – ou já totalmente cooptadas ou severamente enfraquecidas durante as duas últimas décadas.

Como fica evidenciado, a estratégia do novo governo golpista de plantão é a da recomposição da burguesia brasileira em torno da agenda neoliberal, em novos patamares – e isto fica didaticamente explícito nos discursos de Temer do dia 31 de agosto. Sua ideologia se corporifica em uma nova narrativa para apresentar o sentido da coisa pública no Brasil, propondo-se a dar os braços para o capital internacional e abraços no fisiologismo politiqueiro interno. Tudo isso mediado pela práxis que combinará contrarreformas com uma novilíngua. Os alvos: as finanças públicas, a previdência e a regulação do trabalho.

A consciência prática do governo Temer precisará, então, ser diuturnamente desvelada e combatida. O Brasil entra em um novo ciclo de sua história. É o fim do pacto de classes que levou à constituição de 1988 e ao sistema político da nova república. Trata-se, agora, da república da ordem ilegítima e do regresso. Diante disso, não restam alternativas: constituinte ou barbárie!

*Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e militante da Consulta Popular.

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