CRÔNICA

Tardes azulejadas

Para Fátima, minha mãe

Recife |
Roberto Efrem Filho - ou Beto, como gosta - é do Recife e, vez ou outra, atrapalha-se com as palavras.
Roberto Efrem Filho - ou Beto, como gosta - é do Recife e, vez ou outra, atrapalha-se com as palavras. - Arquivo pessoal


Com vovó, aprendi dor. Aprendi doce japonês. Aprendi jardim e quintal. Banana machucada pela manhã, pão torrado à noitinha, o jabuti paquiderme devorador de flores murchas de papoulas vermelhas. Vovó dizia "cágado", mas era jabuti. Aprendi mangas-rosa, traques de massa, o cachorro Congue, mangas-espada, bandeirinhas e fogueiras de São João, o cachorro Sultão. Aprendi os três reis magos do presépio na estante da sala e o coração sagrado de Jesus e as imagens do santuário de paredes de vidro sobre a cômoda com tampo de mármore branco. Aprendi deus. Se um dia acreditei nalgum, foi no deus-através-de-minha-avó. Era quem guardava meu sono na cama de campanha. Aprendi carnaval. E que Mainha nasceu em 1º de março de 1954, um sábado de Zé Pereira, veja só, enquanto minha avó, insuspeita, espreitava as janelas da maternidade a procura dos clarins no Bairro de São José. Com vovó, aprendi dor. Às tardes do terraço de azulejos amarelos, ela se alojava ao lado do menino, cadeira a cadeira, e desatava sua história. Luiza, a mãe morta de tuberculose após o seu nascimento. O segundo casamento de Oscar, seu pai. Os maus-tratos da madrasta Cláidy. Os castigos. O afastamento de meu bisavô. A mudança para a casa de Tia Macrina – chamavam-na “Quininha” e eu, que não a conheci, desde sempre sinto sua falta. A Escola Normal. Ali, no prédio em que hoje funciona a Câmara de Vereadores, defronte à Faculdade de Direito. Vovó sentava a um banco no Parque 13 de Maio e se sonhava estudando na Faculdade. Eu estudei. O seu concurso para o Banco Ultramarino Brasileiro, ao fim Banco do Estado do Rio de Janeiro, “onde sua mãe também trabalha, meu filho”. Eu me lembro das marcas roxas de carimbo nas mãos de Mainha e daquela luz de fim de dia na Rua do Imperador, no centro do Recife. O casamento com meu avô. As duas filhas mortas ainda durante a gestação. Os vícios de meu avô. A Casa Grande quase perdida no jogo de cartas. “Eu não assinei, Beto”. As enchentes do Rio Capibaribe. A cheia de 1966. A cheia de 1975. “Aquela lama, tudo perdido, sua mãe pequena, Ricardo pequeno, aquela lama, por pouco não me afogo na Caxangá”. Águas preenchiam a tarde azulejada. Aqui e acolá, vovó chorava. Tantas vezes contasse, tantas vezes chorava. Vovó doía. Sim, em mim. Devotamente, eu a assistia e, com a experiência, tornei-me capaz de adivinhar cada lágrima. Seus prenúncios. Vovó punha as mãozinhas aos olhos. Eu, em meu canto, esquadrinhava a envergadura dos seus gestos. Com vovó, aprendi dor. Há vezes de solidão em que choro e, se posso, sigo ao espelho para encontrá-la. Vovó nunca se despediu de mim. Nem quando cantamos “Carinhoso”, na noite de seu falecimento. Os vincos de meu rosto de homem de trinta e dois anos vivem a mulher que ela foi. Em Ana Lia, está vovó. Elas se conheceram na noite em que levei vovó para entrar na Faculdade. Vovó chorou aos pés da escadaria. Em Mariana, está vovó. Mariana sequer desconfia, mas assim que me mostrou o ramo de jasmim na tatuagem de seu braço esquerdo, vovó disse baixinho às minhas saudades: “olha, Beto, o jasmim está cheirando no sereno”. Com vovó, aprendi dor. Com vovó, aprendi toda palavra.

 

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