Nordeste

Indústria da seca dificulta convivência das comunidades do Piauí com a estiagem

As fontes secam e o estado já se encontra em seu quinto ano de seca severa

Piauí, Especial para o Brasil de Fato |
Há dois anos que o poço de Francisco Lima secou, e passou a irrigar suas plantações sozinho e manualmente.
Há dois anos que o poço de Francisco Lima secou, e passou a irrigar suas plantações sozinho e manualmente. - Sarah Fontenelle

Agosto chega e já prenuncia com seus ventos quentes, o elo perdido, talvez nunca encontrado, ou apenas imaginado entre o sertanejo e as palavras poeticamente duras e nordestinamente eternas da grande reportagem de Euclides da Cunha, em Os Sertões.

Ainda era agosto quando ficar, mesmo à sombra, em Teresina, capital do Piauí, tornou-se uma tarefa por demais esgotante. Então é outubro, B-R-O-BRÓ (expressão da junção das últimas sílabas dos meses mais quentes do ano: setembro, outubro, novembro, dezembro) chegou e confirmou prognósticos: a capital pega fogo. A cidade que apenas “fritava”, como já anunciavam as pichações em seus muros, agora está em brasas. Segundo dados do Programa de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), somente nas duas primeiras semanas de outubro foram 695 focos de incêndio identificados. Lá vão casas, histórias, memórias, panelas, lágrimas, futuros.

A grande indústria da seca hoje já não precisa criar seus cenários de guerra onde gados, plantas secas e meninos de “bucho inchado”, quase a gritar a morte, eram os personagens preferidos dos coronéis para arrecadar dinheiro para seus bolsos, pretensamente “solidários” em acabar com a seca. Seus viventes nem bem sabiam o que era isso, mas conviviam com seu semiárido, nos explica a pesquisadora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Maria Sueli Rodrigues Sousa. Conviver era diferente, era lidar bem com o umbu que ora frondosamente florava e dava frutos, e ora lhe caía até a última folha, remodelando a paisagem com seus galhos secos. Desesperados eles? Talvez sim, talvez não. Conviviam.

Daí veio a colonização moderna e implantou modos de vida, plantas que precisavam de uma sazonalidade para vingar e animais de grande porte. Com esses animais se construiu até o vaqueiro, famoso de nossa história.

Hoje, Dona Vera, da comunidade rural de Oeiras, a 271 km de Teresina, conta que há 30 anos mora nesse chão. Vontade de sair até dá, mas ali é sua terra. Quando ali chegou, era terra possível de viver, até a água era potável, coisa difícil de encontrar. E encontra, se esforçando, como a figura imaginada e criada, com a lata d’água na cabeça “que agonia, lá vem Vera”. O dia vem raiando e um estridente “te alevanta meninu, que o baleco já cantou na estrada”, em um bom pativez, não pode ser ignorado pelo sertanejo que já sabe que daqui a pouco o sol vai querer torrar.

“Quando cheguei era outro tempo. A chuva hoje é muito pouca, os invernos são fracos. Água não tem. Eu desço pra pegar água e trago na cabeça”, explica Dona Vera, mesmo resignada, ainda vendo vantagem porque teve uma certa melhora com um pequeno arranjo.

“Da semana passada pra cá puxaram água do outro lado, aí ficou mais próximo”. O rio até que não lhe fica tão longe, mas “não dá pra beber. Antes a água dava pra beber, tinha muita água limpa. Mas hoje em dia não, tem lugar que corta que os bichos ficam tudo com sede”, explica.

Da tragédia criada à indústria estabelecida

Se muitos se esforçaram para mostrar que o nordeste era lugar de horror e de morte pela falta de água, o que gera a indústria da seca é justamente a crise que passava a indústria canavieira. “Os coronéis em crise pegaram dinheiro do governo federal para a região, transformando isso em grande tragédia. Daí então, D. Pedro diz que daria a última costela para acabar com a miséria desta região. Esta demanda dos coronéis vai ser incrementada por uma cultura como as músicas criadas por Luiz Gonzaga, a literatura de Raquel de Queiroz, de outro lado com uma agricultura e pecuária incompatível”, diz Maria Sueli.

Hoje o cenário da escassez diante de tanta degradação e super exploração do ser humano e da natureza é algo dado, falta mesmo é quem queira achar a raiz que levou a esta impossibilidade de conviver com a região que tem, sabidamente, irregularidades de chuvas.

Pois bem, é provável que até asas brancas tenham batido asas pra voar, pois está tudo secando. As fontes secam e o Piauí já se encontra em seu quinto ano de seca severa, apesar de se imaginar que esse ano tinha grandes possibilidades de se abrir em chuvas. Como reflexo desta situação, dois açudes piauienses já estão no volume morto e um já é considerado seco. Segundo dados do estudo Monitor de Secas, coordenado pela Agência Nacional de Águas (ANA), no sudeste do estado, o açude de Fátima, localizado no Rio Macacos, município de Picos, está com apenas 0,22% de sua capacidade, com 40 mil metros cúbicos do total de 1,8 milhão. Este açude é de responsabilidade da Prefeitura.

Na mesma região, a situação no açude Cajazeiras, na cidade de Pio IX, também é grave. De 24,7 milhões de metros cúbicos, hoje o reservatório está com 110 mil metros cúbicos, o que representa apenas 0,44% da sua capacidade. O outro açude bastante comprometido é o Barreiras, no município de Fronteiras, hoje com 2 milhões de metros cúbicos de uma capacidade total de 52,8 milhões, ou seja 3,79%. Com estes índices, os três reservatórios já estão no volume morto, que é uma reserva de cerca de 20% da capacidade do recurso hídrico. No norte do Estado, numa área repleta de carnaubais, o açude Caldeirão em Piripiri, há 32 anos sangrava e em 2016, isso não aconteceu.

Para amenizar a situação o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) utilizou cinco máquinas de perfuração de poços artesianos na região do semiárido piauiense para manter o fornecimento de água nas comunidades mais carentes.

Os poços, esses que sempre que o negócio pega os diferentes governos (municipal, federal ou estadual) passam a fazer “alguma coisa”, juntos com os carros pipas, não são garantia, pois seguem sendo elementos da indústria da seca. “A água do poço não dá pra labutar”, explica Vera. Segundo a professora Maria Sueli, o problema é que nunca se pensou em convivência com o semiárido como uma política pública, resistindo apenas nas iniciativas de movimentos sociais e organizações como a Cáritas Brasileira e a Articulação do Semiárido (ASA).

“Poços não são adequados, porque no semiárido a parte de cristalino (grande rocha no subsolo) tem pouca água, e a que tem é salobra. O semiárido do Piauí é diferente, porque tem mais água, mas como nos outros tem pouca e a água retirada do chão não tem retorno, o melhor é não retirar. O melhor é guardar a água da chuva, porque aí você evita um monte de erosões e outros tipos de problemas”, destaca Maria Sueli. Além disso, ela lembra que os gastos para perfuração de poços são altos e não são garantia de que se encontrará água.

É essa a realidade do agricultor Francisco Lima, de 65 anos. O poço Cacimbão, de sua propriedade, na zona rural de Campo Maior, secou já há dois anos, e ele precisa irrigar suas plantações sozinho e manualmente, pois o poço tubular que possui tem uma fenda, o que gera desvio de parte da água, e alguns canos do seu sistema de irrigação entupiram.

Sentado em sua cadeira de espaguete e com as bochechas bem queimadas pelo sol, ele conta que dos seus 60 hectares de terra, quase tudo está seco. “Tá fraco demais. Uns 60% a 70% foi perdido este ano. Milho não deu quase nada. Melancia não prestou. Mandioca tem uns 'pezinvéi', bem pouquim”. Vindo ainda menino do Ceará para a localidade Varjota, onde vive até hoje, Seu Chico, como é conhecido, é agricultor porque a vida exigiu, não por escolha. É o único ofício que conhece. “Não acho muito bom não, mas não tem outra profissão”, explica.

No bojo do pacote da indústria da seca também estão os grandes açudes, que não refletem mais que alguns votos nos períodos eleitorais. São as práticas mais comuns de propaganda governamental de combate à seca . Segundo Maria Sueli, grandes barragens e açudes são danosos pois esses grandes espelhos d’água evaporam. “O ideal mesmo é a construção de cisternas e barreiros trincheira, estes últimos têm pouco espelho de água e são mais aprofundados”.

Edição: José Eduardo Bernardes

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