Retrocesso

Hillary não se apresentou como alternativa ao cenário atual, dizem analistas

Eleições nos EUA representaram rechaço ao sistema político tradicional

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Candidato republicano teve o apoio decisivo da classe operária branca
Candidato republicano teve o apoio decisivo da classe operária branca - Ali Shaker/VOA

A surpreendente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais estadunidenses representa, entre outros fenômenos, uma rejeição a representantes tradicionais do sistema político. É o que pensam especialistas como o canadense Sean Purdy, professor de História da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, uma das principais questões para se compreender o resultado da disputa foi o fato de que a candidatura de Hillary Clinton não representou, aos olhos da população dos EUA, uma alternativa viável ao atual contexto do país.

A questão econômica, aliada à força de setores conservadores na sociedade dos EUA, foi preponderante, em sua opinião. “Me parece que o Partido Democrata não ofereceu nenhuma alternativa econômica para as pessoas preocupadas com emprego e com a crescente desigualdade”, afirma Purdy.

Os dados da votação no país apontam que, além dos tradicionais votos conservadores, principalmente em áreas rurais, um dos fatores decisivos para a eleição de Trump foi o apoio da classe trabalhadora branca do centro-oeste dos EUA. Enquanto Hillary se saiu melhor em grandes metrópoles, em cidades menores, principalmente no coração industrial do país, o republicano foi vitorioso.

Purdy vê também no sistema bipartidário dos EUA um dos limites que levaram à eleição de Trump. "A falta de uma alternativa, um partido social-democrata, trabalhista ou socialista, faz uma grande diferença na política dos EUA", avalia o professor.

Ele lembra que, antes da Segunda Guerra Mundial, havia uma tradição de terceiros partidos com relativa força, incluindo socialistas. A adesão massiva dos sindicatos aos democratas, em sua opinião, diminuiu a representatividade e as possibilidades políticas no país.

Questões de classe

O professor de História diz que o resultado das eleições é um “desastre” e um “claro e enorme retrocesso”, mas só foi possível por conta da inabilidade dos democratas. Sua opinião é de que, por conta da insatisfação da população, candidatos não associados à política tradicional tinham mais chances, incluindo o próprio Trump.

“O partido democrata não conseguiu ler o que estava acontecendo. Hillary ofereceu um programa das elites neoliberais do Partido Democrata, quando a situação precisava de um outsider, como Bernie Sander ou Jill Stein. Eles colocaram a pior insider possível. À época das primárias, todas as pesquisas mostravam que Sanders tinha uma margem maior de votos sobre Trump”, diz. “Hillary ofereceu o mesmo tipo de neoliberalismo que o Partido Democrata está fazendo desde os mandatos de Bill Clinton”.

O professor lembra que a família Clinton é associada ao fim do Estado de Bem-Estar nos EUA e à expansão do sistema penitenciário, que penaliza desproporcionalmente negros, latinos e indígenas.

O jornalista estadunidense Nathan Singham diz que “Trump foi um candidato não convencional. O público rechaçou as elites políticas tradicionais. Muitas pessoas se sentiram marginalizadas politicamente, observando os dois candidatos e não se sentindo representadas por nenhum”.

Nesse contexto, Purdy vê a eleição de Trump como um desejo por mudança, ainda que em uma direção equivocada: “Foi um voto de insatisfação. Há questões de classe muito importantes envolvidas. Hillary ganhou 88% dos negros, mas só 65% dos latinos. Para eles [que votaram nele], questões econômicas tiveram mais importância que o próprio racismo [de Trump]. Hillary ganhou por pouco entre jovens e mulheres. Ela também não conseguiu oferecer alternativas a esses setores”.

O jornalista afirma que, além das bandeiras reacionárias, um dos elementos centrais da campanha de Trump é a crítica a acordos de livre comércio: “O Nafta, por exemplo, foi um desastre para os mexicanos e para os cidadãos dos EUA. Ele apelou às pessoas que sofreram os efeitos dos acordos de livre comércio, captando os votos de setores marginalizados, inclusive latinos e asiáticos”.

Polêmicas

Conhecido por declarações machistas, racistas e contrárias aos imigrantes, Trump não era o favorito na disputa. Pesquisas apontavam Hillary na liderança das intenções de votos. Envolvido em uma polêmica após o vazamento de um vídeo no qual relatava atitudes abusivas contra mulheres, o republicano viu parte de seus correligionários o criticarem durante a campanha.

Importantes figuras do Partido Republicano, como John McCain, Colin Powell e até mesmo o ex-presidente George W. Bush, criticaram Trump ou se recusaram a se manifestar.

Para Singham, "é cedo para analisar todos os impactos da vitória de Trump, mas todos seremos afetados de algum modo". Ele afirma que um dos aspectos mais problemáticos na política de Trump se referem a minorias.

"É muito preocupante: muitas vezes durante sua campanha, ele afirmou o desejo de deportar 11 milhões de imigrantes", recordou. Outra questão que o espanta é a recusa do republicano em aceitar o aquecimento global como um fenômeno real.

Ele pondera que, além de a plataforma de Trump ter apresentado poucas propostas concretas do ponto de vista da execução - “sem explicar os detalhes” -, o republicano pode enfrentar problemas com o próprio partido. Singham especula, por exemplo, a polêmica promessa de construção de um muro entre os EUA e o México pode enfrentar resistências, mesmo que o eleito tenha maioria no Parlamento.

“Ele necessita do apoio do Congresso, em um contexto em que muitos republicanos deram as costas a ele e têm como prioridade a redução de gastos”, diz. Além do próprio muro, Singham pensa que esse objetivo do partido pode limitar outras propostas, como “armar ainda mais as polícias”, que impactaria de maneira determinante a vida de minorias raciais, especialmente negros.

Política externa

Do ponto de vista global, Purdy observa que Trump não deixou clara sua linha para a política externa. Entretanto, em sua opinião, mesmo nesse aspecto a candidata democrata se diferenciava muito pouco dele.

“Na política externa, Trump é um coringa. A gente não sabe o que ele vai fazer. Ele não tem nenhuma política consistente. Hillary tem: uma política externa agressiva e bélica”. O historiador lembra do apoio da democrata à invasão do Afeganistão, de seu envolvimento no "escândalo na Líbia" e da vinculação com a ala mais extremista da direita israelense.

“Eu não tenho ilusões de que, na política externa, Trump será melhor do Hillary. Mas muita gente sabia que ela tem uma linha mais agressiva que o próprio Obama. Com Trump, nós temos que pensar em possibilidades piores, mas não acho que seria muito diferente com ela”, afirma.

Futuro

Vendo um cenário “muito difícil”, Singham vislumbra a possibilidade de "que talvez se crie um espaço para a esquerda nos EUA", a partir do que também entende como rechaço aos políticos tradicionais.

"O discurso que tem sido usado há décadas de votar no 'mal menor' também levou a isso, acaba abrindo uma porta para a direita. Eu espero que nos próximos anos haja mais esforços para se construir uma alternativa. Nesse momento, considero que o mais importante é fortalecer movimentos sociais, como o Black Lives Matter", finaliza Purdy.

Edição: Camila Rodrigues da Silva

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