Polêmica

Prisão de ex-governadores do Rio levanta debate sobre atuação da Justiça

Especialistas apontam incremento do autoritarismo e violação de direitos no país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Ex-governador Anthony Garotinho sendo transferido do hospital para Bangu nesta quinta (17)
Ex-governador Anthony Garotinho sendo transferido do hospital para Bangu nesta quinta (17) - Vladimir Platonow/Agência Brasil

As recentes prisões de dois ex-governadores do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PR) e Sérgio Cabral Filho (PMDB), foram um dos assuntos mais comentados nesta semana. Um vídeo que mostra o primeiro, acompanhado por sua filha Clarissa Garotinho, recusando-se a ser transferido de um hospital para o presídio de Bangú deu ares dramáticos ao caso. Entretanto, para especialistas, apesar da sensação de combate à impunidade, as ações trazem em seu bojo um grande risco: a legitimação da violação de direitos e garantias fundamentais.

Garotinho foi detido após um pedido do Ministério Público Eleitoral (MPE). Ele é acusado de cadastrar ilegalmente pessoas no programa Cheque Cidadão em troca de votos. Já Cabral foi preso por conta de desdobramentos da operação Lava Jato, da Polícia Federal, por ter sido apontado em delações como parte de um esquema de propina em troca da concessão de obras públicas no estado para empreiteiras.

Tão surpreendentes quanto as próprias detenções, reações críticas às duas prisões vieram de adversários políticos de ambos. O deputado federal Wadih Damous (PT) escreveu em seu perfil de Facebook: "Não nutro qualquer simpatia política por Garotinho, mas não posso me calar diante de mais essa arbitrariedade cometida pelo estado policial instalado no país".

Colega de Damous na Câmara, Glauber Braga, integrante do PSOL (legenda que sempre esteve na oposição no Rio de Janeiro), aponta que os métodos utilizados podem desencadear um processo sistemático de desrespeito a direitos.

“Cunha preso há um mês, Garotinho preso ontem, Cabral preso hoje... Mesmo que todos os meus adversários sejam presos não celebrarei o sistema penal brasileiro. A comemoração da cana de alguns hoje pode ser a legitimação do processo sem garantias para todos amanhã!”, escreveu na mesma rede social.

Crítica

“Tecnicamente, essas prisões - incluindo a de Cunha - não são necessárias. São ilegais. A maioria dos presos nesses casos cumpre todos requisitos para responder o processo ou a investigação em liberdade. É a exceção que está se tornando regra”, diz Patrick Mariano, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), advogado popular e escritor. “Comemorar essas prisões é um brinde ao autoritarismo”, pondera.

De acordo com Mariano, a realidade de medidas excepcionais não é algo novo na realidade brasileira. “O contexto de desrespeito a garantias individuais já faz parte do cotidiano de milhões de pessoas. Por exemplo, os mandados de busca e apreensão coletivos nas favelas -- inclusive, determinados pelas polícias de Garotinho e Cabral -- são atos de exceção. Com relação aos pobres, o estado de exceção já existe há muito tempo”, compara.

Integrante do coletivo de Advogados pela Legalidade Democrática e ex-integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Rodrigo Mondego argumenta que, no Brasil, "a gente tem no Brasil o direito penal do inimigo", ou seja, que é comum que as leis não sejam iguais para todos.

"Sempre houve um inimigo que é passível de sofrer violações de direitos humanos. É como se ele fosse menos humanos que as outras pessoas”, afirma ele. “Se antes já havia exceção, o contrário do Estado de Direito, nas favelas, quando se amplia isso, mesmo que seja contra políticos de direita ou elementos fisiológicos como Cabral e Garotinho são, se cria uma jurisprudência para atacar a esquerda, como já está acontecendo”, argumenta Mondego.

Ele aponta que, apesar da satisfação popular ao assistir a medidas contra políticos tradicionais, tais ações reverberam em ações contra os pobre.

“As pessoas acham que só porque os alvos são adversários, não vai sobrar para elas depois. Já apanhei como advogado em manifestações contra Cabral. Ver ele preso dá um grau de satisfação. É algo humano, mas pensando de maneira racional, quando se amplia o estado de exceção, os de baixo vão sofrer mais ainda. Em vez de democratizar a barbárie, deveria se democratizar o estado de Direito”, complementa.

Autoritarismo

Para Rodrigo e Patrick, as ações recentes dos órgãos de sistema de Justiça representam uma concentração de poder político em estruturas que tem extrapolado seus limites legais de atuação. “É uma ascensão política do Ministério Público e do Judiciário sem precedentes”, aponta Mariano.

Mondego afirma que, hoje, há no Brasil uma “juristocracia” que não tem encontrado limitações institucionais. “O poder absoluto que o Judiciário tem hoje permite que ele faça o que quiser com qualquer pessoa”, critica.

Ele cita o caso de uma fiscal de trânsito processada e condenada por ter afirmado a um juiz que ele não era Deus. Outro exemplo foi o da juíza que determinou a prisão de uma jovem em uma cela masculina, o que a submeteu a reiterados estupros por dois meses. “A punição para essa juíza foi passar um mês em casa, recebendo. Ou seja, um mês de férias”, relata.

Ele continua afirmando que a prisão de políticos desrespeitando garantias legais “aumenta o poder desse tipo de figura. Existe um estado de exceção no Brasil feito por quem deveria julgar as leis. Não vai ser essa nova clientela do sistema carcerário que vai sofrer mais, vai ser a clientela antiga, que já sofre muito. Se eles fazem isso porque não gostam do Sergio Cabral, imagina o que podem fazer com o MST, por exemplo. Aliás, o que já fazem”, pontua, mencionando o caso de invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes pela Polícia Civil, no início do mês de novembro.

Origens

Segundo Mariano, a origem da atual situação pode ser demarcada com o surgimento recente de legislações que reforçaram a atuação policial do Estado.

“O componente presente é o do espetáculo. O que há de novo no cenário são novas leis, aprovadas inclusive durante a gestão petista, que reforçaram o Estado policial, que tem criado 'herois', como tem se achado os procuradores e juízes do Brasil”, afirma.

O advogado explica que as chamadas leis Contra Organizações Criminosas e Anti-Terrorismo criaram novos crimes com definições vagas, dando um “cheque em branco” que possibilita a “criminalização de qualquer pessoa”. Como exemplo, ele cita a própria investigação contra Dilma Rousseff (PT), baseada na primeira lei. “Um rapaz, em junho de 2013, foi preso por portar vinagre [Mariano se refere ao caso de Rafael Braga, que ainda está preso]. Integrantes do MST tem sido acusados com base na mesma lei”, explica.

O próximo passo nesse sentido, segundo ele, é o Projeto de Lei (PL) 4850 de 2016, batizado e proposto pelo Ministério Público e que flexibiliza garantias e direitos existentes no processo penal.

“É uma ação demagógica de setores do MP. Usaram dinheiro público para uma coleta de assinaturas em apoio [ao projeto]. Uma campanha milionária. Nenhum cidadão pego na rua responderia negativamente se questionado se é favorável a medidas contra a corrupção”, critica Mariano. “As medidas propostas são inconstitucionais, como a prova ilícita, que, se colhida de boa-fé, teria validade. Traduzindo: se alguém é torturado 'de boa-fé', a prova valeria. Sem contar a restrição ao Habeas Corpus... São uma série de absurdos”.

Mariano finaliza dizendo que a sensação de justiça com as recentes prisões é uma “uma ilusão de ótica”. “Temos uma população carcerária cuja grande maioria foi pega por furto, roubo e drogas. Esse é público do sistema penitenciário. Os casos da Lava Jato não chegam a 1%. É uma falácia que rico está indo para cadeia. Sérgio Moro perdoou quase 400 anos de pena para quem fez delação premiada, que hoje estão cumprindo penas irrisórias, em casa”, analisa.

Edição: Camila Rodrigues da Silva

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