Debate

“A saúde não pode se isolar”, diz médico popular sobre articulação política

Thiago Henrique Silva defende que a saúde seja parte da estratégia de luta pela garantia de direitos

Saúde Popular | Brasília (DF) |
Médico Thiago Henrique Silva, da secretaria nacional da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares
Médico Thiago Henrique Silva, da secretaria nacional da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares - Cristiane Sampaio

A defesa intransigente do direito universal à saúde é a grande bandeira da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP), criada em 2015 como resposta às articulações conservadoras que avançavam no Brasil. No intuito de fazer contraponto a esse movimento, diversos profissionais de cunho progressista se aglutinaram para promover o discurso da humanização da saúde e lutar contra a precarização dos serviços ofertados na área, numa militância que hoje abarca o país e que tem ânsia de crescimento.

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“Agora queremos apontar pra novos desafios – atrair mais gente, formar quadros, fazer cursos de formação e estratégias de trabalho de base que liguem o médico popular ao povo”, explica o médico Thiago Henrique Silva, da secretaria nacional da Rede, que esteve em Brasília no mês de dezembro para participar da III Plenária Nacional do movimento. Na ocasião, ele conversou com o Saúde Popular e apontou os pontos-chave do horizonte de luta do movimento, englobando o combate à mercantilização da saúde, a qualidade da formação dos profissionais e os demais elementos que atravessam o debate ideológico no campo da medicina.

No que se refere à articulação política organizada, o médico defende que a saúde seja parte integrante de um grande movimento programático e estratégico da luta pela garantia de direitos. “Nós não podemos nos isolar e entendemos que, se isso acontecer, vai ser um erro fundamental”, acredita.

Confira abaixo a entrevista.

Saúde Popular: Qual a importância dessa III Plenária Nacional da Rede de Médica e Médicos Populares e para onde ela aponta?

Thiago Henrique Silva: É a nossa terceira plenária nacional e é um momento em que estamos conseguindo dar um bom salto de qualidade. Ela significa um acúmulo de avanços que a gente teve na rede nesse período de  um ano de vida. Apesar de só ter um ano, ela já consegue se organizar no Brasil inteiro, em vários estados, estamos dando dinâmica e vida interna aos núcleos da Rede. Queremos atrair mais gente, formar quadros, fazer cursos de formação e estratégias de trabalho de base que liguem o médico popular ao povo. O avanço significa na prática crescer com qualidade, disputar ideologicamente a medicina e o conceito de saúde dentro da categoria médica, fazendo também uma ligação mais orgânica com o povo.

Neste atual contexto político, quais pontos da cartilha da Rede seriam prioritários?

O primeiro deles é afirmar que saúde não é uma mercadoria. Esse é o nosso ponto basilar:o médico popular compreende que saúde não é mercadoria e luta tanto na prática cotidiana quanto na luta política organizada de forma coletiva para afirmar isso, para dizer que é um direito social, humano. A partir disso a gente desdobra as outras ações: como a gente vai fazer essa disputa na prática médica, dentro dos currículos das faculdades de Medicina, lidando com os desafios da formação e, fundamentalmente, como a gente vai disputar esse ideal na sociedade.

Nós sabemos que há um conjunto de forças políticas atuando sobre a administração pública pra fortalecer a ideia de que saúde é um gasto. Como a Rede faz esse contraponto do ponto de vista ideológico? Há uma tentativa de diálogo, por exemplo, com o Ministério da Saúde, ou vocês não operam nesse nível?

Com esse Ministério da Saúde que está aí, não, porque não reconhecemos um governo golpista. Com eles a gente não vai dialogar, e sim exigir [conquistas], construindo forças. A gente vai ter alianças com o Conselho Nacional de Saúde, os sindicatos, frentes de esquerda e até setores de centro para construir forças. O grande problema é que quem defende o direito à saúde hoje é minoria na sociedade brasileira ou pelo menos na disputa política, porque cada vez mais estão querendo tratar a saúde como um produto. A ideia da gente, nesse plano político mais geral, é construir um campo unitário amplo na saúde, com uma boa correlação de forças, com alianças dentro da classe trabalhadora, para fazer a defesa desse direito e tentar resistir a esses ataques, porque hoje nós vivemos um período mais de defensiva. E viver esse período significa não deixar privatizar mais do que já foi privatizado; é tentar lutar contra isso, contra a falta de acesso, não deixar que fechem unidades de saúde, como UPAs, CAPS, ou seja, não retroceder. E daqui vamos tentar avançar.

Que relação há entre essa visão da saúde como mercadoria e a formação dos profissionais da medicina?

Há uma relação bem forte. Os currículos de medicina são orientados por essa ideologia há anos. Isso é uma coisa secular, não só da medicina, mas da saúde como um todo. A cabeça dos profissionais é formada pra ajudar a reproduzir o capital dentro do setor da saúde. É uma forma de entender a patologia e de tratar a doença que vai, em última análise, ajudar a comprar um produto, a comprar medicamentos, a fazer cirurgias que vão consumir produtos, a internar no hospital, etc., ou seja, coisas que movimentam a engrenagem da economia na saúde, vamos dizer assim. E o que nós queremos agora é justamente colocar isso em xeque. O campo da reforma sanitária já construiu boa parte da análise crítica em relação a isso. Muito se perdeu nesses últimos tempos, mas nós precisamos resgatar o que foi feito com força e em novas bases.

Qual foi o contexto de surgimento da Rede e o que levou a essa aglutinação de vocês em torno desse ideal de saúde?

O que nos levou a isso foi a reação conservadora desde 2014 pra cá, principalmente depois das reações ao “Mais Médicos” que a gente viu acontecer dentro da categoria. A primeira categoria que foi à rua contra o governo Dilma foram os médicos… A gente viu essa coisa avançado e aí nós consolidamos um grupo que tentou pensar uma alternativa dentro da categoria para organizar os médicos e médicas progressistas,  que não se viam nos sindicatos, nos conselhos, nas federações e associações da categoria. Nós queríamos criar uma rede que avançasse na construção de uma organização progressista no campo popular também pra disputar a categoria médica.

Temos aí o fantasma da PEC 55 atingindo o setor da saúde e também outros segmentos. Como a Rede percebe esse tipo de iniciativa governista?

É uma iniciativa para desmontar o direito social no país, para reduzir os investimentos nessas áreas enquanto se aumenta a torneira dos gastos com o capital financeiro para pagamento de títulos da dívida pública. Essa é a questão que está colocada. Essa é uma PEC de ajuste macroeconômico internacional que está sendo imposto ao Brasil e o governo age como lacaio mesmo para corresponder a isso. A ideia da gente é combater a PEC 55.

Que outras iniciativas do governo atual na área da saúde vocês têm tentado combater?

Nós já nos posicionamos contra os planos de saúde populares e a questão do avanço dos planos de saúde em geral, do incentivo à criação de mais planos. Também vemos com preocupação a questão do desmonte da parte estruturante do “Mais Médicos”, que diz respeito à formação médica, então, são inúmeras iniciativas deste governo que nos deixam vigilantes e nos levam a tentar construir iniciativas contrárias.

Na plenária ocorrida em Brasília, em dezembro, foi discutido, por exemplo, o problema da manipulação das informações de conteúdo político no Brasil. Foi dito que há um discurso de crítica geral à saúde pública sem valorização daquilo que já foi conquistado. Com relação ao SUS (Sistema Único de Saúde), que conquistas alcançadas precisam ser mais destacadas?

O SUS conquistou muitas coisas, como a questão da população materno-infantil, ampliou muito a rede de atenção básica, o que ajudou a diminuir no país os índices de hipertensão e diabetes de forma exorbitante; ampliou transplantes hepáticos e renais, etc. Além disso, ele cobre cirurgias e medicamentos de alto custo, então, tem muito avanços.  Tem uma série de seis artigos publicados pelo The Lancet, que é uma revista médica internacional muito respeitada, que mostra avanços hercúleos que o SUS trouxe e que nenhum outro país – no período histórico em que o Brasil  construiu – conseguiu fazer ao nível mundial, então, foi um grande avanço. Mas agora o SUS é um gigante com os pés de barro, porque ele fatalmente está sendo minado pelo governo golpista.

Do ponto de vista desse trabalho e dessa ideologia que vocês reproduzem, Cuba continua sendo uma referência?

Com toda certeza. É uma referência para gente do ponto de vista de como ter um país pequeno que mal tem condições de produzir a própria energia, mas que investe nos direitos sociais como uma prioridade absoluta, principalmente em educação e saúde. O modelo cubano de medicina inspirou o mundo. E, do ponto de vista da medicina preventiva, inspirou o mundo todo numa tentativa de resgatar os valores dessa medicina, que são os valores da solidariedade, do cuidado, de estar o tempo todo ligado com o povo, construindo a saúde da forma mais universal possível.

Qual é o lugar desse discurso hoje em termos de foco de resistência nos cursos de Medicina?  

Ele está em vários lugares, mas nós somos absolutamente minoria dentro dos cursos e a gente vem abrindo o debate ideológico para que consiga fazer essa disputa numa situação melhor.

Mas como é a relação de vocês com os médicos que não absorvem esse discurso?

Nós tentamos sempre abrir o franco debate, um debate honesto, ideológico e de convencimento. Nós sempre tentamos, mas sabemos que tem um núcleo ideológico dentro da categoria médica que não é passível de convencimento, e aí é combate mesmo. É no combate de ideias como parte da luta de classes.

Neste atual contexto de avanço conservador, que espaço vocês da Rede acham que pode existir para tentar somar mais forças nesse movimento pela saúde?

Fora da saúde, porque não é só dentro da nossa área que a gente vai resolver isso. É na Frente Brasil Popular, por exemplo, como espaço amplo e articulador da maioria dos movimentos populares do país, com uma numa perspectiva de programa estratégico, e não individual, e com a saúde inserida dentro de um contexto geral. Nós combatemos a ideia de que a saúde deve se isolar. Nós não podemos nos isolar e entendemos que, se isso acontecer, vai ser um erro fundamental.

Edição: Juliana Gonçalves

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