Visibilidade Trans

"Vivo abaixo da linha da invisibilidade", diz ativista trans Sissy Kelly, aos 60 anos

Quantas histórias carregam as mulheres transexuais ou travestis que driblaram a expectativa de vida de 35 anos?

Nlucon |
Sissy Kelly chegou a ser internada em uma clínica por ser efeminada e teve trajetória como profissional do sexo
Sissy Kelly chegou a ser internada em uma clínica por ser efeminada e teve trajetória como profissional do sexo - Lucas Ávila

Quantas histórias e segredos carregam as mulheres transexuais ou travestis que conseguiram driblar a baixíssima expectativa de vida de 35 anos e chegaram à terceira idade? Quais foram as artimanhas para superar as violências e transfobias múltiplas e institucionalizadas? E de qual maneira vivem, gozam e enfrentam a velhice?

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A mulher travesti Sissy Kelly, de 60 anos, tem muita história para contar. Recentemente, enviou uma mensagem:"Amigo, estou muito cansada. Gostaria de realizar um trabalho sobre minha vida com você. Obrigada se puder realizar esse sonho". E nos fez ir para Belo Horizonte, graças a ajuda de Lucas Ávila, para um bate-papo pessoal emocionante e que vai transformar todos vocês.

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Sissy se define ativista trans afetiva em prol da cidadania, dignidade e direitos humanos de mulheres transexuais, travestis, da terceira idade, soropositivos e da população de rua. Categorias que ela já vivenciou uma a uma, saboreando as dores e as delícias de ser quem é. E de enfrentar guerras de intolerâncias e invisibilidades.

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Natural de Aimorés, interior de Minas Gerais, ela já morou em Brasília, na Bahia e na Europa. Atualmente mora na República Maria Maria, em Belo Horizonte. Antes disso, chegou a ser internada em uma clínica por ser efeminada, teve trajetória como profissional do sexo, experiência nas ruas, além de conviver há 31 anos sendo positiva e com dependência química. 

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Essas e outras histórias de superação você confere abaixo:

Sissy, vim para BH mediante a um pedido seu. Depois de ter dado entrevista para tantos jornalistas, o que te motivou a me chamar? E o que você quer tanto falar?

Eu gosto muito das suas entrevistas, elas são consistentes e o seu trabalho tem visibilidade positiva, que gosto muito de ver. E eu gostaria de falar para você todo o contexto da minha vida, desde a infância, fazendo os recortes de invisibilidades que não são falados, até agora. Afinal, é muito linda a vida e tudo, mas nem todo mundo teve a oportunidade de ser bem-sucedida. 

Mas aos 60 anos você se considera uma pessoa malsucedida? 

Não digo que sou uma pessoa malsucedida, mas eu não consegui ter uma condição financeira boa... É que eu já tive moradia e hoje já não tenho mais. Contraí HIV/Aids, tive trajetória de rua, sou dependente química... E, mesmo com todas essas vulnerabilidades, consegui chegar aos 60 anos. Então acho que não sou uma perdedora, sou uma ganhadora. Sou uma guerreira que deu certo. Sou um projeto de Deus que deu certo.

A gente sabe que expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos e... 

Eu superei essa expectativa, pois estou quase o dobro. Nos meus documentos está que vou fazer 60 anos, mas na verdade vou fazer 61. 

A sensação é de que você é uma sobrevivente? 

De certa forma sim, quando vejo que muitas amigas tiveram uma trajetória bem mais curta. De outra, não. Sobreviver é não viver, e eu vivo intensamente a vida. Eu sou ativista social, estou reconstruindo o laço familiar... Acredito que não sou uma sobrevivente. Eu vivo. 

E como é a sua vida aos 50/60? 

A vida de uma travesti ou mulher transexual de 50 ou 60 anos é diferente de uma para outra, depende de como essa travesti se encontra perante a sociedade. Se a gente for comparar a minha vida com a de outras travestis da minha idade, eu vivo abaixo da linha da invisibilidade. Sou institucionalizada. Mas eu acredito que minha idade biológica não é a minha idade mental e nem física. Sou uma pessoa ativa, apesar de ter doenças crônicas e minhas limitações. Só lembro que tenho 60 anos quando me canso ou quando me assusto com a pele ou com a magreza. Mas quando estou bem nutrida, bem tranquila, nem me dou conta que já são 60 anos. Inclusive tenho uma vida sexual prazerosa e ativa.

Como você lida com a solidão? 

(Respira fundo). Procurando ser feliz com as pessoas que estão ao meu redor, onde eu estou. Sejam elas quem for. Não adianta a gente estar infeliz com o que está longe, sem procurar ser feliz com as pessoas que estão ao nosso lado. Lamento muito pelo vínculo familiar fragilizado ou rompido, mas às vezes a gente participa de outro arranjo familiar e não valoriza esse outro arranjo familiar. Como sou uma pessoa que está sempre institucionalizada, eu procuro estar em paz com essa família e ser feliz ali junto com eles.

Tem gente que diz que a terceira idade é a melhor idade. Tem alguma coisa de bom em envelhecer? 

Essa coisa de melhor idade é fantasia (risos). A melhor idade é a juventude, até os 40 anos. Quem consegue aposentar e vai viajar, até pode ser que a vida continue legal. Mas a realidade de quem não tem dinheiro, não existe a melhor idade na terceira idade. Os problemas de saúde se agravam. Mas a gente perde tanta coisa com a terceira idade, que a gente tem que ganhar algo também, né? Para responder a sua pergunta, digo que de positivo na terceira idade é que a gente fica mais realista, a gente não tem que agradar tantas pessoas para ter amizade, a gente ganha mais sensibilidade, ganha mais conhecimento e a verdade. 

Hoje você é referência para as novas gerações, assim como outras também são para as novas gerações. Mas quando você era criança ou adolescente, quem eram as referências de vocês? 

Quando eu comecei a iniciar a minha transição, aos 17 anos, lá em Vitória, no Espírito Santo, muitas foram referências para mim. Mas nenhuma supera uma que veio do Paraguai, a Layla. Ela já tinha 40 a poucos anos, linda, loira, ativa e profissional do sexo. Eu nunca tinha visto uma travesti com a idade dela, mas acabou sendo uma referência para mim. E Anyky Lima, que apesar de ser quase da mesma idade que eu, também tive como referência, porque ela já era hormonizada, consciente do que queria, tinha um comportamento bastante feminino.

Você percebe que hoje em dia temos muito mais meninas se empoderando e se assumindo como trans muito mais cedo?

Sempre existiram pessoas trans, mas não como hoje em dia. Hoje, se você for ao centro de Belo Horizonte é muito difícil você não cruzar com uma pessoa trans. Antes, nós ficávamos em guetos, na zona boêmia, porque a polícia mexia menos com a gente nesses espaços. Como era lugar de prostituta, eles nos deixavam lá e chamavam a gente de viado. A gente vivia com salão de beleza, com restaurante, cada uma tinha o seu comércio, outras se prostituíam dentro das boates ou trabalhavam no centro da cidade. Hoje eu percebo que as travestis e pessoas trans já vem mais prontas que antes. Elas não tinham a transição ou o processo que a gente tinha naquela época...

Eu vi que Sissy é o nome que você ganhou da sua mãe. Como se deu o contato com a sua família? 

O meu nome de registro é Idelci e como ela tinha dificuldade de falar, ela me deu um apelido: Sissy. Eu tive a sorte neste sentido, mas eu venho de uma família de pequenos agricultores ali de Aimorés, Minas. Uma família até então normal, até que começo a me descobrir uma pessoa diferente, que tem uma identidade de gênero diferente do que eles desejavam. A partir desse momento começam os conflitos, eu não tive com quem falar e sofri as consequências. Nos anos 60 e 70, não se falava em transexualidade e a homossexualidade era considerada crime e doença mental. Eu cheguei a ser internada aqui em Belo Horizonte, no hospital Galba Veloso. E também na Clínica Pínel. E quase fui parar em Barbacena como pessoa louca. 

Como você conseguiu escapar das clínicas?

Dentro do Galba Veloso, passei por três vezes. A gente ficava numa triagem de 72 horas e, depois, a gente era transferida para um hospital. O período maior que eu passei foi na Clínica Pinel, aos 15 anos. Lá, eu tive alguns relacionamentos amorosos, aprendi a usar drogas e a tomar hormônio. Tinha um enfermeiro, que me ensinou a não tomar o medicamento, pois ele deixava a gente com um quadro chamado impregnada, sem jogo nos braços, nas pernas, e caída no pátio. Ele me ensinou a colocar o remédio no canto da boca e que jogasse tudo fora quando outra enfermeira fosse embora. Só que outras pessoas usavam esse mesmo medicamento amassado no cigarro e usava como droga. E foi esse enfermeiro que me deu fuga numa festa junina de 1972. Eu fugi.

E o que fez depois que fugiu?

Fui trabalhar numa padaria até completar os 17 anos e meio. Eu queria me alistar no Exército, mas chegando lá eles disseram: “Você está descartado”. Por mais absurdo que possa parecer, eu tinha esperança que o Exército fosse a oportunidade de ter uma profissão, de me livrar da solidão e do preconceito. Como eles disseram que eu não servia, fui para Vitória, do Espírito Santo. E comecei a trabalhar na zona boêmia como faxineira, e fui quase escrava das donas-de-casa. 

Escrava? O que você recebia pelo trabalho? 

Um prato de comida e um lugar para ficar. Mas muitas vezes eu comia o resto do prato das prostitutas e dos cabeleireiros. Porque eu só poderia comer depois que eu lavasse toda a louça do restaurante. Mas a fome era tão grande que eu ia lavando e pegando as sobras. Mesmo assim, muitas vezes eu fui colocada para dormir na rua, pois elas diziam: “não está trabalhando direito, então não vou te dar um teto”. Até que eu arrumei um homem que começou a pagar as minhas contas. 

Não foi nessa época, aos 17, que você também começou a trabalhar como profissional do sexo?

Pois é, foi tudo muito rápido. Esse homem começou a me sustentar e, dali pra frente, eu aprendi a ser profissional do sexo. Comecei a ir com outras travestis para o centro de Vitória. E aos poucos eu trabalhando pelos interiores do Espírito Santo e Minas Gerais com show de strip-tease... Muitas vezes as empresárias de clubes sabiam que havia travestis com peito de hormônio e mandavam ir buscar a gente. Eu fui em Ilhéus, na Bahia, só para mostrar os meus seios para alguns fazendeiros de cacau. Isso em 1974.

Hoje em dia a gente tem uma fila para cirurgias e o processo transexualizador... Como é que você construiu o seu corpo naquela época? 

Quando cheguei em Vitória do Espírito Santo já existiam algumas travestis e transexuais que usavam hormônio. E uma foi receitando para a outra. Mas logo o hormônio já não era mais suficiente para a gente. O Brasil era visto como exportação de travestis e transexuais para a Europa, e o modelo da mulher brasileira na Europa era a de muito seio e muito corpo. Então, em 1980 eu fiz a primeira aplicação de silicone industrial e fui toda bombada para a Europa. Também fiz cirurgia plástica antes da hora e sem necessidade, só para dizer que tinha feito. Muita loucura. A travesti tem pressa, ela quer tudo para hoje, não quer nada para amanhã. 

O silicone industrial, apesar de ilegal, ainda é uma realidade. Qual é a sua opinião sobre esse produto? 

É tão contraditório dizer que eu não concordo com a aplicação do silicone, porque apesar dos muitos problemas que ele me trouxe, ele também me deu muito prazer. Ele adequou o meu corpo à minha mente. Nós não tínhamos outro produto e não tínhamos dinheiro para usar outro produto. Hoje já não temos essa necessidade tão grande, já que não temos essa cobrança. O padrão de beleza pode ser feito só com uma hormonização acompanhada pelo endocrinologista. A gente também vê bem menos travestis e transexuais usando o silicone industrial e investindo apenas em uma prótese. E mesmo assim, o hormônio traz problema se você não se cuidar. Esses dias nós perdemos uma travesti muito bonita de Uberlândia, que teve uma embolia por causa do uso inadequado do hormônio. 

O nome que você usava na época em que trabalhava como profissional do sexo era Sônia Kelly, né? A Sônia finalmente havia encontrado a liberdade? 

Ela era livre até determinado momento. A prostituição foi, sim, uma imposição da sociedade, porque o que me sobrou foram as esquinas. Mas quando eu me encontrei na prostituição eu juntei o útil ao agradável. Eu não fui escrava da prostituição, eu via na prostituição a oportunidade de momentos prazerosos. Eu gosto de me prostituir até hoje, eu gosto das luzes do carro vindo sobre mim. Eu gosto do carro parando, me perguntando o preço. Até hoje vou para a rua para ver essas coisas acontecendo comigo. 

De alguma maneira a prostituição também mexe com a autoestima, é isso? 

Mexe, mexe com a vaidade. Quando o homem pergunta quando a gente está cobrando, a gente tem uma afirmação de que não está tão derrubada assim (risos). Mas eu acredito que a prostituição é um trabalho rentável e que o ganho é imediato, mas que também se gasta demais. Eu acredito que estamos mudando muito, pois já vemos muitas pessoas travestis e mulheres transexuais que recusam ser profissionais do sexo e que buscam outras oportunidades no mercado formal e trabalho. Elas vão do ensino fundamental até a faculdade. Mas ainda precisamos trabalhar muito essa questão, pois mais de 90% estão trabalhando nisso, né? Muitas vezes por imposição.

O que você sugere para mudar esse quadro? 

Eu não concordo muito com cotas, mas muitas vezes a gente precisa dar uns três passos para trás para podermos dar quatro para a frente. Eu acho que uma parceria com empresas, reduzir os impostos das empresas que contratarem LGBT, pode ser feito com grande êxito. Alguma coisa precisa ser feita de imediato, pois temos grandes profissionais aí, mesmo atrizes e atores, que não conseguem trabalhar por causa da LGBTfobia.

Qual é o paralelo que você faz sobre a visão que a sociedade tinha da travesti de ontem e de hoje? 

Hoje nós temos mais visibilidade, temos mais espaço de diálogo e de fala. Mas a sociedade ainda nos vê da mesma forma que nos via antigamente: como um homem que se traveste de mulher, um produto apenas sexual para satisfazer o homem. A sociedade não consegue nos ver na fila de emprego, como professora, como advogada, nem como médica, nem como nada. Mas lá na esquina, como profissional do sexo, ela consegue nos ver. Ou seja, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. A gente já avançou muito, mas nesse aspecto ainda estamos estagnadas.

Você passa por tratamento de saúde há bastante tempo... Como foi para você se descobrir soropositiva e com hepatite C?

O boom da aids foi em 1982 e a gente via muitas pessoas morrendo, pois elas não sobreviviam a doença. Acho que a depressão era o fator fundamental para que elas morressem, e o vírus naquela época eu acredito que eram mais fortes, e menos domados pelos medicamentos. Porém, mesmo com todas as mortes, a gente sempre achava que a aids era a coisa do outro ou da outra. Nunca uma coisa que a gente poderia ter. E por mais que a gente se cuidava, a gente acabava caindo em contradição ao se apaixonar, ao ver que o homem era bonito e se deixar levar a uma situação de risco.

A primeira vez que soube que cogitei ser soropositiva foi quando voltei ao Brasil em 1986 e fui colocar uma prótese de silicone. O médico pediu uma bateria de exames – até porque eu fazia uso da heroína e tive que tomar remédio para desintoxicar – e entre esses exames veio o pedido do HIV. Pedi para a minha irmã ir buscar o exame, mas eles disseram que não poderiam entregar para ela, somente ao meu médico ou ao Centro de DST/Aids e hepatites virais. Naquele momento, eu fiquei com tanto medo de saber o resultado que não fui pegar o exame. Em 72h, peguei um voo e voltei para a Europa.

Entrevistei um garoto e ele disse que o pior do hiv/aids é o preconceito. Tanto da sociedade quanto das próprias pessoas... 

Sim, eu tinha preconceito comigo mesma. Eu achava que era uma pessoa que havia morrido em vida. Eu nem queria ter mais relação sexual com ninguém, porque eu acreditava que eu estava podre por dentro. E naquela época a estimativa de vida de uma pessoa soropositiva também era de três ou quatro anos. Quando eu cheguei no Brasil, o Cazuza morreu e eu pensei: “A próxima pessoa sou eu”. Embora eu também tenha vido com hepatite C, eu não me preocupava muito, porque nem se falava sobre hepatite. E ela foi tratada e curada há 15 anos. Sobre ser soropositiva, fiquei dois meses em casa sem fazer nada, até que um dia a minha irmã falou: “Você precisa se cuidar”. E eu disse: “mas eu vou morrer mesmo”. E ela disse que eu só morreria se eu quisesse.

Daí você foi buscar tratamento?

Levantei de madrugada, peguei um ônibus – e naquela época o hospital Sarah atendia todos os públicos – e eu fiz os meus exames lá, deu positivo e eles me encaminharam para o ADIP. Fiquei esperando que a morte me levasse, mas ela não me levou. Eu fui para o GAPAS, Grupo de Apoio a Pessoas com Aids, comecei a trabalhar com prevenção e preconceito. Fui capacitada e contratada para um projeto que tinha: “Previna-se na prostituição”, que trabalhava com essa população de travestis, transexuais, boys que trabalhavam na prostituição. Mas eu não estava feliz. Então, quando o Brasil ganhou a Copa de 1994 eu percebi: “A Aids não me quer não, eu vou sair por aí”. E vendi o meu apartamento.

Com 31 anos sendo positiva, o que você aprendeu?

A valorizar um pouco mais da vida, a família, os amigos e a saúde mesmo.

Você acha que aprendeu a se cuidar mais? 

Sim, muito mais. Depois que voltei a praticar sexo, nunca mais tive prática sexual sem camisinha. Eu voltei a me cuidar mais e também a cuidar do meu próximo muito mais. Porque a partir do momento em que eu cuidasse do meu próximo, eu também estaria cuidando de mim e não pegaria mais nenhuma DST, que complicaria muito mais a minha saúde. Para você ter uma ideia até nos meus sonhos e fantasias sexuais eu uso camisinha. 

Não sei se é ignorância da minha parte. Mas é comum existir uma pessoa que é positiva há 31 anos? O que os médicos dizem? 

É algo quase comparado como a experiência de uma travesti se casar de ou uma travesti arrumar um emprego. E eu percebo que a minha história agrada aos médicos. Ele veem que me cuidei e que venci. Porque hoje temos uma população jovens de gays que vem descobrindo a sorologia positiva e que chega ao hospital debilitado e não sobrevivendo. Nós estamos perdendo os nossos jovens gays para a aids hoje, assim como nós perdemos as nossas jovens travestis para a violência. Isso não tem tanta visibilidade quanto a violência, mas acontece. 

O que as pessoas precisam saber ainda hoje sobre hiv/aids?

Que a aids ainda é uma doença fatal, caso você não se cuide. E que só os fortes sobrevivem. Comparo com a prostituição: se você não tiver um jogo de cintura, sendo travesti e profissional do sexo, você vai morrer na esquina. O HIV é da mesma forma, se você não se cuidar, não mudar os seus hábitos, não mudar a noite pelo dia, não tiver uma alimentação saudável, não tiver uma adesão ao tratamento, não tiver uma redução de danos nas drogas, se não tiver um preparo psicológico, se não tiver em paz com você mesmo, ele não vai te deixar sobreviver. Hoje, o hiv é mais domado, sim. E os efeitos colaterais são menos agressivo que antes. Mas isso não basta.

Eu fiquei sabendo que depois que você voltou para o Brasil, você passou por um processo de destransição de gênero. É verdade?

É... Quando me descobri soropositiva, fiquei com medo de morrer e ir para o inferno. A gente nasceu numa religião cristã, né, então aprendeu que o LGBT vai para o inferno. Mas quando a gente está na boemia, a gente até pensa: “um dia vou parar para me redimir com Deus”. Aí, quando você recebe um exame de sorologia positiva, você fica um tempo usando droga e passa. Mas quando você fala “vou me cuidar”, você quer correr atrás dos seus prejuízos. Você quer ir para o céu, quer estar junto de Jesus. E a solução para isso era deixar de ser travesti, porque ser travesti era visto como pecado. 

Então eu passei a me travestir de homem e fiquei uma coisa meio andrógina. Tanto que tem uma foto na porta de casa (veja acima) que eu acho horrível. Estou de boné e sandálias raider. Eu dizia: “Quero sandálias raider, eu sou homem” (risos). Mesmo quando eu fui trabalhar no GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção a Aids), eu trabalhava para travestis, eu não ia de travesti. Eu usava um camisão largo, parei de tomar hormônio... 

E o que fez cair a ficha de que ser travesti não era pecado?

Como eu te disse, após a Copa de 1994, quando assisti a vitória do Brasil ao lado de muitas pessoas soropositivas vimos juntos, eu me libertei e passei a celebrar a vida. Comecei a conhecer o espiritismo e ele me libertou desse medo de Deus, desse medo de ser travesti e de não ir para o céu. Eu entendi que ser travesti não era pecado, que não era crime, que não era escolha. Comecei a entender mais sobre gênero. Foi quando eu comecei a participar do movimento LGBT em Uberlândia. E daí voltei a me depilar, a tomar hormônio, a ser feliz, me casei... Foi legal.

Depois de anos trabalhando na prostituição, tendo uma vida inclusive na Europa, você também teve experiência nas ruas. Como você se encontrou como pessoa em situação de rua?

Normalmente, quando as pessoas saem das casas dos pais, sem apoio, e não querem trabalhar como escravas, elas vão parar nas ruas mesmo. E mesmo trabalhando sem receber nada, por qualquer motivo, o patrão manda você para a rua. Naquela época, nós éramos muito mais exploradas que hoje. Então, desde que eu saí de casa, eu dormi na rua diversas vezes. Para mim, foi se tornando muito fácil jogar tudo para o alto e ir para a rua. Porque eu via na rua o meu espaço, a minha moradia certa.

Com o tempo procurei a não me sujeitar ao capricho das pessoas. Eu preferia ir para a rua, que me submeter a um serviço escravo, aos maus tratos. Eu trabalhava a troco de uma moradia, mas depois jogava para o alto e ia parar na rua. E isso ficou comum na minha vida. Então, quando eu cheguei na Europa e me vi fragilizada em dependência química, e já não ganhava tão bem para o uso da heroína, fui para as ruas de novo. Em Lisboa tive a maior trajetória de rua.

Existia diferença entre as pessoas em situação de rua no Brasil ou em Lisboa?

Em Lisboa eu sentia que eles eram mais acolhedores com as travestis. Então a gente tinha mais conforto, mesmo em situação de rua. A gente procurava algum parque, algum castelo abandonado, e já tinha até mesmo televisão, fogareiro... A assistência social é muito boa e o programa de redução de danos te oferece vale transporte e quase não existem albergue. O que existe são hotéis contratados pela assistente social. E ainda tem duas refeições por dia e leva duas refeições para a casa. Você janta, você topa uma sopa bastante saudável e leva um pão, um chocolate ou um suco. Isso em 1989, 1991. Mesmo sendo população de rua, a gente ainda consegue se prostituir e ter um dinheirinho. Mas no Brasil essas coisas são mais complicadas, apesar de Belo Horizonte ser uma das melhores cidades para as pessoas em situação de rua. O mineiro é muito acolhedor, é muito legal. 

Hoje em dia as travestis e mulheres transexuais em situação de rua podem ficar na ala feminina?

Ainda não. São Paulo é o único estado que conseguiu ter um albergue LGBT. Estamos iniciando agora e se fala que em Brasília tem uma casa para travestis e transexuais. Normalmente essa casa comporta umas 20 ou 30 travestis, mas na verdade podem ir 50, 60. Mas a minha experiência maior é em Belo Horizonte, onde eu moro, convivo e faço esse trabalho junto com a comunidade Amigos de Rua e no comitê de Monitoramento e Assessoramento da Pessoa em Situação de rua. Nós tivemos um Senso aqui em Belo Horizonte para a população de rua em 2012 e descobrimos que éramos quase 2000 pessoas em situação de rua, e as travestis e transexuais eram 0,8%. Umas 18 pessoas.

Esse público aumentou, mas para sermos acolhidas em uma república precisamos passar seis meses em um albergue para só depois disputar uma vaga dentro do perfil das repúblicas. Mas as travestis não poderão ser acolhidas em casas de mulheres, porque a única casa de mulher que nós temos em BH é esta daqui, Maria Maria, que hoje funciona com toda a sua capacidade. Não tem nem vaga para mulheres cisgêneras, quanto mais para travestis e transexuais. Eu fui a primeira transexual que está aqui. 

Como você chegou nesta casa de acolhimento?

Vim pela Pastoral de Rua. Nós temos outra pessoa, que não sei se ela se apresenta como travesti ou transexual, mas ela também encaminhada pelo centro Pop de Belo Horizonte. Ela é casada e tem uma deficiência. O marido dela teve que se ausentar por alguns meses e o serviço de assistência social trouxe essa pessoa aqui até que o marido dela volte para que ela vá para o albergue de família, que fica ali na Pompéia. E ela espera ser contemplada pelo Minha casa, Minha Vida. Hoje, há duas famílias homoafetivas na Pompéia, eu na casa Maria Maria, mas serviço social e Comitê em Situação de Rua informaram em relatório que tinham arrumado solução para o público LGBT, pois já existiam dois equipamentos que acolhiam. Mas eu questiono: se temos 0,8%, cadê as outras pessoas?

O que você acha que a população em geral pensa sobre a população de rua e que não corresponde com a realidade? 

Para a população em geral, a população de rua é marginal, é vagabunda, é preguiçosa, não quer trabalhar. Porque muitas vezes as pessoas aproximam da população de rua, não sendo população de rua, trazendo esse estigma para a gente de traficante, marginal. São pessoas que infiltram no nosso meio e acabam fazendo com que nós sejamos vistas como marginais ou pervertidas. Esquecem que existe na população de rua, assim como em qualquer outro local, filósofos, médicos, engenheiros, serventes de pedreiro, pedreiro. Mas a partir do momento em que você tem uma trajetória de rua, você não tem mais oportunidade no mercado de trabalho. Assim como uma pessoa que passou pelo sistema prisional não tem mais oportunidade também. É um país de heterocisnormativo, né? A partir do momento em que perguntam o seu endereço, e o seu endereço é de uma instituição, eles te descartam automaticamente. 

O que levam uma pessoa a ficar nessa situação? Temos algumas histórias recorrentes?

O que leva uma pessoa a ter uma situação de rua é o vínculo familiar fragilizado ou rompido. Normalmente a maior parte é masculina porque socialmente quem cuida dos filhos é a mãe, as mulheres. Porque elas, apesar do sofrimento que tem, geralmente não abandonam o filho. Já o homem joga isso tudo para o alto e vai para a rua. Fica com vergonha porque não pode pagar a conta de luz, conta de água, sustentar a família, começa a usar álcool e pode começar a usar outras drogas e vai para a rua. E é difícil sair da rua, porque não há um trabalho de resgate de cidadania, não tem uma resposta, o estado não oferece nada que presta para a população de rua, nós não temos uma saúde integral para a população de rua. E é complicado, muito complicado.

Depois de tanta luta, por que você ainda insiste em ser militante?

Porque é isso que me mantém viva. Eu ocupo minha mente e sou feliz na militância. Quando eu não encontro nada para fazer na militância, é como se eu tivesse perdido todo o meu valor. A militância é um vício também, a gente nunca aposenta da militância. A partir do momento em que eu não posso militar de corpo, eu milito pelas redes sociais. Ou então a gente passa o bastão para outra pessoa. E hoje eu decidi que não vou fazer mais parte do GT de Cidadania Trans, mas eu tenho a minha suplente que vai ficar no meu lugar. 

Fica complicado, porque as nossas reuniões atravessam o dia todo, e quando a gente mora numa instituição, a gente tem um horário para alimentação e, se a gente for comer fora, acaba gastando muito. E o Estado não pode pagar a diária de uma travesti ou transexual que trabalha? Eu fiz uma proposta para o coordenador da Diversidade de Belo Horizonte, que só volto a trabalhar no GT a partir do momento em que eles vieram me buscar em casa, me levar em casa e me pagar uma diária no dia da reunião. Estou esperando uma resposta.

Ou então estou preferindo hoje ficar com o município. Porque o Estado é muito grande, e se eu conseguir construir alguma coisa aqui no município de Belo Horizonte, isso já visibilidade para outras regiões. No contrário, eu fico na militância da população de rua , que também é muito prazerosa para mim.

Como você avalia a militância trans?

Ai, meu Deus, vão pedir a minha cabeça na bandeja (risos). Mas eu não posso criticar não, para ser sincera. Eu tenho que aceitar cada uma dentro do seu trabalho e somar com elas. Eu acho que não podemos criticar jamais, porque se nós chegamos aonde chegamos é por causa da militância, sim. Ninguém é perfeito, não existe curso ou faculdade para ser militante, como não tem faculdade para ser vereador, e eles fazem muito menos que nós militantes. Muitas vezes nós mesmas fazemos os serviços dos gestores. Então eu brinquei no início da resposta, mas eu não posso criticar não. Cada pessoa trabalha dentro daquilo que acredita e do que pode fazer. Nós somamos. Não estamos aqui para rachar. Se a gente for rachar, nós vamos perder neste atual momento político do Brasil. 

Qual é o principal direito que as pessoas trans precisam ter hoje? 

Saúde integral é fundamental, vendo realmente o que significa saúde integral do homem trans, da mulher trans, da travesti. Educação garantida, de qualidade e grátis. E moradia para a população trans em situação de rua, porque é uma população doente. É muito difícil você não ver uma trans que esteja na rua e que não esteja doente. Como uma pessoa pode ir para uma escola ou para um curso se ela não tem moradia, se exigem que essa pessoa esteja limpinha em sua higiene pessoal, se essa pessoa vai cuidar de sua higiene pessoal na rua? Você não vai cuidar da sua doença crônica se estiver na rua, né? E trabalho, trabalho. Precisamos dar trabalho para a população LGBT. 

Qual é o conselho que você daria para a nova geração trans? 

Que se cuide, se ame, se informe, que a vida é prazerosa, sobretudo se cuide da violência atual, da sua saúde. Não se hormonize por conta própria, não faça o uso do silicone industrial e, se fizer, faça com redução de danos, com responsabilidade. E que procure a trabalhar a questão de gênero dentro da família, pois o nosso ponto maior de apoio é na família. A partir do momento em que a gente tem apoio da família, a gente tem coragem de enfrentar a sociedade. Se a nossa família não nos apoia, é muito difícil encontrar alguém que nos apoie. E isso pode mudar tudo.

Link original aqui.

*Neto Lucon é jornalista da Puc-Campinas e pós-graduado em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário. Escreveu para os sites CARAS Online, Virgula e Estadão (E+), Yahoo!, Mix Brasil, no jornal O Regional e para a revista Junior. É autor do livro-reportagem "Por um lugar ao Sol", sobre pessoas trans no mercado de trabalho. Tem quatro prêmios de jornalismo, sendo dois voltados para as questões trans, Claudia Wonder e Thelma Lipp.

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