Dois soldados israelenses com ar adolescente e fuzis M16 nos encaravam do final da rua enquanto seguíamos Imad Abu Shamsiyeh, um palestino de 45 anos, até a casa onde ele nos contaria sua história. O caminho era uma continuação da Shuhada Street, rua na cidade de Hebron (Cisjordânia), que tem acesso restrito para palestinos, sendo ostensivamente controlada por checkpoints (postos militares que controlam a movimentação da população palestina em Gaza e na Cisjordânia) e militares.
Mesmo com uma deficiência na perna que o deixa manco, Imad caminhava rapidamente. Cruzou o checkpoint impaciente, ignorou os soldados que guardavam o portão de sua casa e nos recebeu com café árabe enquanto esperávamos a chegada de seu amigo e tradutor, Badee Dwaik. No final da entrevista fomos surpreendidos por dois colonos israelenses, vestidos com trajes ortodoxos judeus, em cima do telhado da casa de Imad, vigiando. "Eles não podem estar aqui", reclamou Badee aos soldados, que, com olhares raivosos, pediram para os colonos se retirarem.
Imad e Badee fazem parte da organização Human Rights Defenders in Palestine e foram responsáveis pela filmagem e divulgação do vídeo que expôs para o mundo a execução do palestino rendido Abed Fatah Al-Sharif, 21 anos, pelo soldado israelense Elor Azaria, 20 anos, no dia 24 de março de 2016. Por conta do vídeo e da condenação inédita de um soldado na corte militar de Israel no último dia 4 de janeiro, Imad vem sendo ameaçado de morte e perseguido pelas forças israelenses, que tentam encontrar brechas para prendê-lo a qualquer custo.
"Os israelenses me ligaram duas horas depois da filmagem do vídeo e me convocaram para um interrogatório na cadeia militar, que fica ao norte de Hebron. Eu estava com medo de ir para lá porque muitos palestinos são assassinados nessa área e me recusei a ir. Depois de muitas ligações combinaram o interrogatório em outro local. Me perguntaram a origem do material e se eu havia feito alguma edição, depois mandaram eu assinar um papel. Desde então venho recebendo ligações de ameaças no meio da madrugada. Um número desconhecido me ligou, disse que eu me arrependeria do que fiz e que me queimariam vivo. Tem imagens minhas com o aviso de 'procurado' na internet, outra que me chama de cachorro e diz que minha perna fede, porque tenho deficiência", contou Imad, enquanto seu amigo mostrava as ofensas que receberam em um notebook.
Prisões administrativas
Na realidade, Imad já foi preso onze vezes desde a Primeira Intifada palestina, que teve início em 1987, quando participava da Frente Popular Pela Libertação da Palestina, o mesmo grupo político da consagrada guerrilheira Leila Khaled. Boa parte das prisões do ativista, entretanto, foram administrativas, um procedimento que permite que as forças militares israelenses mantenha prisioneiros sem acusação ou julgamento, sob justificativa de supostas "informações secretas".
O mecanismo é garantido pelo Artigo 285 da legislação militar à qual a população palestina da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza está submetida. Israel entende a política como a chave principal na prevenção de ataques terroristas. A lei é uma das responsáveis pela estatística alarmante que vitima os palestinos: aproximadamente um quarto de sua população masculina já foi presa. Segundo Hanan Hammoudeh, ativista da Addameer, associação que cuida dos direitos civis dos presos políticos palestinos, "é uma das maiores taxas de encarceramento por população em todo o mundo".
De acordo com as estatísticas de outubro de 2016 divulgadas pela Addameer, são atualmente 7 mil prisioneiros políticos palestinos em Israel, sendo 720 presos administrativos. "Aproximadamente 800 mil palestinos foram presos desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, sendo que 40% dos homens e meninos já foram presos em algum ponto de sua vida. A partir dos 14 anos qualquer palestino pode ser preso, sempre pela corte militar. Qualquer agrupamento com mais de 10 pessoas e movimento político é considerado ilegal, assim como protestos e manifestações. Os prisioneiros são torturados e obrigados a assinar confissões em hebraico, sob pressão e sem conhecimento da língua", explicou Hanan.
Tortura
Segundo os dados oficiais da Addameer, pelo menos 75 palestinos já morreram sob tortura nas prisões israelenses desde 1967. "Os soldados geralmente vêm durante a noite e levam você direto para tortura. Assinam um papel e te transferem para uma cadeia específica para pessoas que estão presas em regime administrativo, ela fica no deserto de Naqab (sul de Israel). Eles possibilitam que você vá à corte uma vez, te colocam na cadeia de acordo com um "arquivo secreto" e você não sabe porque está preso, eles afirmam que há uma razão, mas não te dizem qual é, e você só sabe que vai ficar lá por seis meses. O pior é que às vezes te liberam depois dos seis meses, você volta para a sua família por horas e eles voltam afirmando que renovaram sua sentença e te prendem de novo por mais seis meses", disse Imad.
Para Badee, que já foi preso 13 vezes mas nunca pelo regime administrativo, a tortura é "a hora mais difícil da prisão". "Você não pode encontrar nenhum representante de direitos humanos, às vezes há um membro da Cruz Vermelha para 7 mil prisioneiros. Te colocam em um quarto, amarram suas mãos e tampam seu rosto com um gorro sem furos para enxergar ou respirar. Ele é imundo porque já foi usado por muitos antes. Em alguns casos colocam o prisioneiro em salas muito frias e depois muito quentes, ou põem músicas altas e não te deixam dormir, te deixam em pé e te dão choques. Eu passei 72 horas amarrado em uma cadeira. Dessa forma eu vi dois palestinos morrerem, um deles também era de Hebron. Antigamente a tortura era mais física, mas depois de um tempo começaram a fazer uma tortura mais psicológica. Essa fica com você por mais tempo, não desaparece".
Uma matéria publicada no último dia 24 pelo maior jornal de Israel, o Haaretz, expôs depoimentos dos próprios soldados israelenses responsáveis por interrogatórios sobre os métodos de tortura utilizados. Um dos interrogadores não identificados entrevistados pelo jornal afirmou que "os métodos utilizados são cuidadosamente escolhidos para serem efetivos o bastante para quebrar o espírito do suspeito, mas sem causar dano permanente". Durante a reportagem, ele cita alguns dos métodos utilizados: dar tapas; colocar o prisioneiro amarrado em uma cadeira sem encosto, forçado-o a se dobrar de costas; e deixar o prisioneiro algemado e ajoelhado com suas costas contra a parede por longos períodos de tempo.
Familiares
A alta taxa de prisões arbitrárias também afeta negativamente os familiares dos prisioneiros. No campo de refugiados Aida, localizado na cidade palestina de Belém, as famílias sofrem sistematicamente com o controle, ameaças e até mesmo sequestro de crianças pelo exército israelense, que semanalmente atravessa o muro grafitado que separa o campo do território anexado por Israel e realiza ações militares.
May Hessin Darwish é funcionária do Lajee Center, um centro cultural e educativo para refugiados do Aida. Há quase quatro meses ela teve seu filho de 16 anos, Mohammed, levado pelo exército israelense para a prisão militar de Ofer, localizada em Ramallah. "Ele foi brincar na rua e os soldados vieram e o roubaram de Aida. Depois me chamaram para avisar e perguntar se ele tinha algum problema de saúde que deveriam saber. Então o levaram. Eu não consigo sentir nada bom, desde que ele foi levado tudo que aconteceu é ruim. Ele não volta para casa, não dorme com a gente", lamentou May.
Com expressão triste, embora sempre sorrindo, a mãe explica que o menino foi levado sob acusação de jogar pedras nos soldados durante os "clashs", manifestações rotineiras realizadas no campo, marcadas exatamente por crianças e adolescentes jogando pedras nos soldados e sendo reprimidos por bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral. "Ele também bateu em um soldado um dia que vieram prender pessoas do campo", explicou.
May pode visitar o filho apenas duas vezes por mês, por 45 minutos e o vendo através do vidro da prisão. "Ele sempre fala que está com medo da prisão, que é muito ruim e que quer voltar para casa. Ele não gosta de criar problemas com ninguém, só fica lá sentado, pensando. Ele sempre foi assim. Quando ele foi preso eu fui a uma organização que apoia os prisioneiros pedir um advogado, mas não sei nada sobre a situação dele. No mesmo dia da prisão do meu filho prenderam o primo dele, mas já o liberaram. Ele gostava de estudar eletrônica… Vou visitá-lo de novo no dia 5 de fevereiro", contou.
Segundo a coordenadora de projetos da Lajee, Amani, que traduziu o árabe de May para a reportagem, o Centro acompanha a situação dos prisioneiros e descobriu que já são 30 crianças refugiadas do Aida presas em Ofer. Os dados da Addameer mostram que existem pelo menos 400 palestinos menores de idade em prisões israelenses, sendo que aproximadamente 700 crianças palestinas são processadas anualmente nos territórios ocupados da Cisjordânia, passando pelo mesmo tipo de julgamento que os adultos e sendo presas nos mesmos locais. Desde os anos 2000, mais de 12 mil crianças palestinas foram detidas. Os dados mostram ainda que a acusação mais comum contra as crianças é justamente "atirar pedras", um crime punível sob lei militar por até 20 anos de prisão.
Dentro do Lajee Center é difícil encontrar alguém que nunca teve seus familiares presos. A jovem Shatha Alazzeh, responsável pela unidade ambiental do centro, também relatou sua história à reportagem. Seu marido, o bombeiro Khaled Alazzeh, foi preso duas semanas após seu casamento, em 2014, sob acusação de "compartilhar mensagens políticas no Facebook". "Eu não acho que seja uma boa razão para prender pessoas, mas nós já sabíamos que ele seria preso. Amigos nossos que já estavam presos nos contaram. Toda garota do mundo sonha em ir para a lua de mel e eu fui para uma 'cadeia de mel'", disse, dando risada.
"Quando abrem o portão azul do muro significa que vão prender pessoas no campo. Na noite que o prenderam vieram 20 soldados, todos mascarados, apontaram uma luz forte para a minha casa e forçaram o meu sogro a mostrar onde vivíamos, mesmo que já soubessem. Ele já é velho, colocaram uma arma nas costas dele apenas para ele "entregar" o próprio filho. Bateram no meu marido e me mandaram ficar quieta. Primeiro não me deixaram visitá-lo, depois me levaram em um ônibus por 13 horas até a prisão de Ofer, sendo que demora uma hora para chegar lá. Ficaram andando em círculos. Quando vi meu marido ele estava muito magro. Do lado dele vi uma criança pequena visitando o pai através do vidro e chorando por não poder tocá-lo. Foi o período mais difícil da minha vida", continuou Shatha.
Resistência
Khaled ficou preso por apenas quatro meses, mas o estresse decorrente da prisão fez com que Shatha adoecesse. Até hoje ela é medicada para uma doença crônica na tireóide que desenvolveu na época. O caso também prejudicou sua vida acadêmica. Mestranda em estudos ambientais, Shatha diz que foi impedida de continuar sua pesquisa em Boston (EUA) por conta da prisão de seu marido.
"O consulado americano não me deu o visto. Perguntaram muito sobre meu marido e se eu já havia sido presa. Eles leem e veem tudo o que escrevemos, mesmo nas redes sociais e no WhatsApp. Hoje eu vejo os soldados com a mesma raiva que via antes, mas quando você passa por algo pessoalmente, essa raiva aumenta. Agora eu sei como as famílias dos prisioneiros se sentem", afirmou.
As consequências para ex-prisioneiros políticos nos territórios ocupados da Palestina envolvem principalmente a limitação do deslocamento. Segundo Badee, existe uma "listra negra" que impede a circulação das pessoas. "É difícil ser reintegrado na sociedade depois de ser preso, achar emprego. Se você fica preso por muito tempo é mais difícil passar pelos checkpoints. Um dia eu estava guiando um tour e os soldados pegaram minha identidade e me deixaram três horas esperando, sem razão legal para isso. Nós não podemos ir para Jerusalém, muito menos Tel Aviv e Jaffa. Isso porque eu fui preso antes dos Acordos de Oslo, há muito tempo. Já o Imad não pode nem sair do país. Ele tentou sair a convite da ABC (emissora de televisão estadunidense) para falar sobre a nossa resistência em um programa, mas quando chegou na fronteira os israelenses o prenderam por horas e confiscaram todo o seu material, sua câmera".
A câmera de Imad, com a qual ele gravou o assassinato do caso Azaria e muitas outras violações de direitos humanos, na opinião de seu companheiro, é sua maior forma de resistência. "Nós vemos a câmera como o principal meio para expor os crimes de Israel. Algumas pessoas assistiram ao assassinato mas não tiveram coragem de filmar, não são todas as pessoas que estão prontas para encarar os resultados. Na resistência não violenta todos sabem quem você é, e descobrimos que essa é a melhor forma de mostrar as violações para a comunidade internacional. A questão palestina está conectada com o mundo todo. Nossa resistência nunca parou, pode ter oscilado, o que é natural, mas nunca parou", opinou Badee.
Edição: Vivian Fernandes e Ivan Longo