Crônica

Marisa Letícia, como ela aguenta?

"Obrigado por tudo. Pela luta, pelo exemplo, pela coragem, pelo tostex, pelo carinho", diz Camilo Vannuchi em despedida

Especial para o Brasil de Fato |
Velório de Marisa Letícia mobilizou cerca de 20 mil pessoas, segundo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde ocorreu a cerimônia
Velório de Marisa Letícia mobilizou cerca de 20 mil pessoas, segundo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde ocorreu a cerimônia - Paulo Pinto/AGPT

1986. São Bernardo do Campo. Eu tinha acabado de completar 7 anos de idade e acompanhava meu pai num dia de intensa atividade política. Assessor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e militante do PT, meu pai estava envolvido, naquele mês de setembro, na campanha de Lula para a Câmara dos Deputados, mais precisamente para a Constituinte. A noite caiu e ainda faltava uma última agenda a cumprir. Vai ficar tarde para mim. "Deixa ele aqui com os meninos", ela convidou. Ele era eu. Fiquei. Havia uma sala pequena, uma TV ligada, outros três garotos de diferentes idades distribuídos entre sofá e tapete. Carrinhos. Um e outro boneco da Marvel ou da Liga da Justiça. Talvez dos "Comandos em Ação" — minha memória já acusa o impacto inevitável dos 30 anos que nos separam dos eventos aqui narrados. Tinha também um menino de 1 ano naquela casa, por certo guardado em segurança em algum outro cômodo. Adultos entravam e saíam, buscavam camisetas e bandeiras, discutiam o noticiário, telefonavam.

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Lembro que a mulher que havia me convidado para passar a noite ali com seus filhos colocou sobre um balcão dois pacotes de pão de forma, um pote de manteiga, um saco com queijo fatiado e outro com presunto. "Você cuida deles?", perguntou para o garoto mais velho, já adolescente. O rapaz, de uns 15 anos, começou a fazer "tostex" pra todo mundo. Eu adorava tostex. Ainda adoro. Uma coisa, no balcão, me chamou atenção. Havia ali garrafas de refrigerantes enormes, de plástico, as maiores do mercado, com 2 litros cada uma, lançamento recente no Brasil. Eu nunca tinha visto aquilo. Só conhecia as garrafas de 1 litro, de vidro, retornáveis, e as de 300 mililitros, "KS", todas de "casco", como se dizia. Acabou tudo rapidinho. O refrigerante e os dois pacotes de pão. Como comiam, aqueles meninos... Estranharam minha recusa em aceitar um segundo sanduíche. "Nessa casa é três pra cada um", brincou a mãe, orgulhosa dos moleques. O apetite dos moleques era proporcional à capacidade de fazer bagunça, eu notei. Cresci sozinho com minha mãe, embora visitasse meu pai semanalmente, às quartas-feiras e em fins de semana alternados. Em setembro de 1986, eu tinha apenas uma irmã de 1 ano e esperava nascer a segunda. Apenas nas férias convivia com os primos, em casas cheias e movimentadas como aquela, com muita farra, barulho e confusão. E aquela mãe, em especial, dava ordens aqui, instruía ali, ajeitava acolá, tudo ao mesmo tempo. Como ela aguenta? — pensei.

2007. Brasília. Tive a oportunidade de escrever e publicar um livro sobre a trajetória de um executivo, então sexagenário, que comandara por 30 anos uma empresa de metalurgia e mineração, líder mundial em sua especialidade. Tendo se aproximado de Lula ainda nos anos 1980, construíra uma relação de respeito e colaboração que, no início do século 21, culminara num convite para que ele, o executivo, assumisse a presidência do Instituto Cidadania, organização não-governamental liderada por Lula da qual o metalúrgico teve de se afastar ao assumir a Presidência da República, em 2003. Fomos a Brasília fazer um jantar de lançamento do livro. A mulher que, duas décadas antes, insistira para que eu aceitasse um segundo tostex, agora representava o Presidente da República.

Havia meia dúzia de ministros ali. Alguns empresários. A mulher circulava, transitava, falava com todos, e ao mesmo tempo parecia não estar ali. Discreta. Num determinado momento, engatamos uma conversa rápida, fugidia. Alguém na roda sugeriu que eu fizesse um livro sobre ela. "Quem sabe", ela disse. A conversa migrou para o dia a dia no Alvorada, tão diferente da casa de pau-a-pique em que ela nascera. O palácio presidencial passara por reformas. Ela nos revelou o estado em que havia encontrado o imóvel. Prestes a completar 50 anos, o edifício projetado por Oscar Niemeyer tinha rachaduras, goteiras, infiltrações, paredes descascadas. A primeira-dama falou também sobre a Granja do Torto, as festas juninas, a condução da reforma, a administração de tudo. Dois anos antes, havia estourado o escândalo do Mensalão, uma porrada no PT e em Lula, agora chamado de ladrão: um abalo sísmico que quase impossibilitou o segundo mandato e que fez boa parte da opinião pública se voltar contra o presidente, a mulher e os filhos. Como ela aguenta? — pensei.

2009. São Paulo. Repórter numa revista mensal, fui convidado pelo diretor da publicação a escrever uma reportagem contando a prisão do Lula em 1980 e esmiuçando os 31 dias em que o sindicalista ficou detido no DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social), entre abril e maio daquele ano. Era dezembro, agora, e o plano era publicar a matéria na edição de janeiro de 2010, meses antes de a prisão completar 30 anos. Mais da metade do eleitorado brasileiro em 2010 não estava vivo em 1980 ou não tinha idade para acompanhar as notícias. Era o início do último do governo Lula. Nunca antes na história deste país um presidente terminara o mandato com tamanha popularidade. Seria no mínimo curioso relembrar o período em que ele, por dedicar sua vida à luta por democracia e justiça social, foi chamado de "inimigo do Estado". Procurei a primeira dama. Depois de entrevistar um monte de gente, incluindo cinco companheiros de cela, veteranos do sindicato, amigos próximos e o próprio Lula, estava numa festa quando tocou o celular. Era ela. Busquei o canto mais silencioso, o mais distante possível da pista, e fiz a entrevista ali mesmo.

Ela me contou sobre 1980. As greves. A perseguição. As ameaças. Os carros pretos e sem identificação que rondavam sua casa nas semanas que antecederam a prisão. A manhã em que bateram na porta e levaram seu marido. As visitas ao marido no xadrez. A mobilização dos operários e das operárias. A marcha das mulheres. Das histórias, fui sensibilizado com uma em especial. Um dos filhos, provavelmente o mais velho, então com 9 anos, não queria mais ir à escola. Os colegas o chamavam de filho de bandido, e aquilo doía demais. Nele e nela. A mulher de Lula sentira ali, pela primeira vez, a crueldade que podem ter as crianças quando o discurso de ódio, dos pais e da opinião pública, é constante. Como ela aguenta? — pensei.

2016. São Paulo. Policiais federais realizam buscas no apartamento em que Lula vive com a mulher em São Bernardo. Abrem armários, reviram objetos, espalham documentos. Lula é levado para prestar depoimento no aeroporto, local escolhido para viabilizar sua condução imediata a Curitiba. Apartamentos dos filhos também são invadidos e revirados. Vazam gravações telefônicas abusivas, ilegais. Grelo duro. STF acovardado. Tchau, querida. Num dos áudios reproduzidos na TV e na internet, não se escuta a voz do ex-presidente, mas a voz daquela mulher que me convidou para passar a noite em sua casa e me ofereceu um segundo tostex quando eu tinha 7 anos. Conversa privada, com o filho. Dois seres humanos acossados, perseguidos como em 1980. O cerco é violento e desproporcional. Não respeitam nada. O filho do Lula isso, a nora do Lula aquilo. Anos antes, quando Lula enfrentou um câncer, houve a torcida para que ele morresse. Ela lhe fez a barba. A alcova também foi devassada. O noticiário, com escárnio, inventou uma namorada para Lula. Depois um apartamento, depois um sítio. Até vir o indiciamento. Dele e dela. Como ela aguenta?

2017. São Paulo. Uma crise hipertensiva fez romper um aneurisma cerebral na mulher do Lula. O AVC foi grave, gravíssimo. Foi preciso embolizar, procedimento cirúrgico realizado para conter o sangramento intracraniano. "Tem que romper no procedimento", escreveu um neurologista num grupo de WhatsApp. "Daí já abre a pupila. E o capeta abraça ela." Nas rádios, editoriais e obituários optavam por reproduzir o áudio vazado ilegalmente em que ela e o filho comentavam os panelaços, sem disfarçar a intenção perversa de mostrar, quantas vezes for preciso, que aquela mulher fala palavrão.

Não há constrangimento na perseguição. É enraizada. É absoluta. Ampla, geral, irrestrita. A confraria do ódio se divide entre duas correntes de pensamento: há os que torcem por sua morte, de um lado, e, do outro, os que temem o que pode acontecer depois que a campanha sistemática contra Lula e família fizer sua primeira vítima. Mas a mulher de Lula, filha de pequenos agricultores de ascendência italiana estabelecidos na periferia de São Bernardo do Campo, babá aos 9 anos, operária aos 13, viúva aos 19, grávida de 4 meses, quando o primeiro marido foi morto num assalto, responsável por costurar a primeira bandeira do PT, ela insiste em permanecer viva. Os médicos anunciaram a ausência de fluxo cerebral, mas o coração insiste em bater. A família já autorizou os procedimentos para uma possível doação de órgãos, mas ela ainda respira. A sedação foi suspensa há mais de 24 horas, mas o pulso ainda pulsa. Como ela aguenta? Como ela aguenta, meu Deus?

Marisa Letícia Lula da Silva, obrigado por tudo. Pela luta, pelo exemplo, pela coragem, pelo tostex, pelo carinho. Agora é com a gente. "Todos juntos somos fortes", escreveu um amigo nosso numa velha canção. "Ao teu lado há um amigo que é preciso proteger", diz outro verso da mesma música. Seguiremos em corrente. O bastão é nosso. Teus filhos seguem unidos, calejados por tantas tormentas, e sairão desse episódio mais fortes. Lula voltará. Até porque nunca nos deixou. De esperança em esperança. Na esperança sempre.

* Camilo Vannuchi é jornalista e escritor

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